Ao longo da história os brasões e as bandeiras foram submetidos a relações diversas e interessantes.
Foi intenção minha retomar a atividade do blog no ano passado abordando a interessante relação dos brasões e das bandeiras, especialmente pela projeção da bandeira ucraniana em todo o mundo após a Rússia ter invadido aquele país. No entanto, um acontecimento funesto levou-me a escrever sobre outro assunto e só agora pude voltar ao velho interesse, que desenvolverei nesta primeira série de postagens em 2023.
Se entendermos por bandeira qualquer pano preso a uma haste e que recebe certo valor semiótico, as bandeiras são muito mais antigas que os brasões e também mais transculturais. Com efeito, muito antes de surgir a heráldica, os romanos tinham os seus vexilla (donde o termo vexilologia, o estudo das bandeiras): panos presos a uma trave pendente de uma haste e que distinguiam certas unidades militares (vide a postagem de 27/01/2021). Depois, graças à seda, tecido forte e leve, e ao seu comércio, desenvolveram-se e difundiram-se do Oriente para o Ocidente as bandeiras tal como as concebemos até hoje: quadriláteras ou alongadas e hasteadas pela vertical.
Na verdade, como razoei na postagem de 31/01/2021, os testemunhos sigilares permitem aventar-se que não foi a pintura do escudo para identificar o guerreiro em meio à batalha que deu origem ao brasão, mas sim a bandeira que, no começo do século XII, identificava o senhor feudal no norte da França e, possivelmente, todos aqueles que o serviam e lutavam por ele. Mais que isso: os tecidos de modo geral influíram no surgimento da heráldica (vide a postagem de 10/02/2021).
Bandeiras do pontífice e do imperador romanos no De ministerio armorum (fol. 9r do códice Latin MS 28, conservado na John Rylands Library, Manchester). |
Além disso, durante o período clássico da armaria o brasão aparece com tanta frequência reproduzido em forma vexiloide que não é desatinado postular que o escudo se tornou o campo das armas por antonomásia porque sofreu uma abstração, fundamental para a difusão da heráldica além do seu âmbito militar originário, ao passo que como objeto real a bandeira era a principal insígnia concreta. Isso está especialmente patente no armorial português mais antigo ou feito por um arauto português em 1416, conhecido como De ministerio armorum (códice Latin MS 28, conservado na John Rylands Library, em Manchester, Inglaterra).
Diferentes espécies vexilares segundo Pedro de Gracia Dei no Blasón general y nobleza del universo, 1489 (disponível na Biblioteca Digital Hispánica). |
Pedro de Gracia Dei, rei de armas dos Reis Católicos da Espanha, no seu Blasón general y nobleza del universo (1489), diz que:
Las órdenes tienen un pendón caudal redondo al cabo, como este de la cruz; los jinetes y celadas un guion de una punta, como este blanco y negro; los duques, condes, cavalleros y grandes hombres un estandarte complido con dos puntas; las cibdades y pueblos una bandera con dos lenguas, según esta presente; los que lievan bastimento al real una guía con dos lengüetas; el bastimento una divisa como esta de las bandas; el artellería una muestra luenga, segund esta de las faxas; los oficiales del rey un falón con dos puntas, como este blanco y negro; la gente de la mar una grípola pequeña y cuadrada, como esta de las ondas; los nobles del reino un palón con una punta, como esta de la F; las guardas del rey un pendón luengo, como estos roeles; la batalla real una seña cuadrada, como esta que parece; el rey un guion de una punta. (1)
Evidentemente, é preciso lê-lo com cautela, pois esquemas como esse costumam tentar apreender uma realidade menos regular, mas ilustra, de todo modo, a "hiperemblematização" que, segundo Michel Pastoureau (leia-se a postagem de 16/02/2021), caracterizou a sociedade aristocrática da Idade Média tardia.
Seja como for, desde então os brasões e as bandeiras foram submetidos às relações mais diversas e interessantes. Assim, há bandeiras que são translações de brasões e há brasões que são translações de bandeiras; há bandeiras que têm as cores de certos brasões e brasões que têm as cores de certas bandeiras; e há bandeiras que não se vinculam a nenhuns brasões. Para começar esta série, as bandeiras nacionais dos países europeus ilustram tudo isto, de modo que discirno seis grupos delas:
- Bandeiras heráldicas: Áustria (1786), Albânia (1912) e Malta (1964);
- bandeiras de cores heráldicas: Espanha (1785), Bélgica (1830), Alemanha (1848), Hungria (1848), Mônaco (1881), Ucrânia (1918), Polônia (1919), Letônia (1921) e Luxemburgo (1972);
- bandeiras cruzadas: Inglaterra (1348), Escócia (meados do séc. XVI), Grã-Bretanha (1606), Dinamarca (segunda metade do séc. XIV), Grécia (1822) e Suíça (1841);
- cruzes nórdicas: Suécia (1663), Noruega (1821), Islândia (1913) e Finlândia (1918);
- a Statenvlag e as tricolores eslavas: Países Baixos (1664), Rússia (1693), Sérvia (1836), Croácia (1848), Eslovênia (1848), Bulgária (1879), Tchéquia (1920) e Eslováquia (1939);
- bandeiras revolucionárias e contrarrevolucionárias: França (1794), Itália (1798), Vaticano (1825), San Marino (1829), Romênia (1848), Andorra (1866), Portugal (1911), Estônia (1918), Lituânia (1918), Irlanda (1922), Bielorrússia (1951/1995) e Moldávia (1990);
- bandeiras pacificadoras: Chipre (1960), Macedônia do Norte (1995), Bósnia e Herzegovina (1998) e Montenegro (2004).
O ano entre parênteses é a data da primeira adoção da bandeira pelo estado.
(1) "As ordens têm um pendão caudal, redondo na ponta, como este da cruz; os ginetes e celadas, um guião de uma ponta, como este branco e preto; os duques, condes, cavaleiros e grandes homens, um estandarte comprido com duas pontas; as cidades e povoados, uma bandeira com duas línguas, segundo esta presente; os que levam mantimento ao arraial, uma guia com duas linguetas; o abastecimento, uma divisa como esta das bandas; a artilharia, uma mostra longa, segundo esta das faixas; os oficiais do rei, um gonfalão com duas pontas, como este branco e preto; a gente do mar, uma grímpola pequena e quadrada, como esta das ondas; os nobres do reino, um palão com uma ponta, como este do F; as guardas do rei, um pendão longo, como estas arruelas; a batalha real, uma signa quadrada, como esta que aparece; o rei, um guião de uma ponta." (tradução minha)
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