16/02/21

QUE FORMA SE HÁ DE DAR ÀS ARMAS EM COBERTORES

Que a sociedade baixo-medieval era superemblematizada é uma das frases mais eloquentes de Pastoureau: de fato, qualquer coisa podia ser armoriada.


Do Tractatus de insigniis et armis (1358), de Bártolo de Sassoferrato:

(33) Quandoque depinguntur in cooperturis lectorum, et tunc debet inspici actus in quo debet esse cum stat in suo proprio esse. Sunt enim in cooperturis lectorum quædam partes quæ dependent circum circa lectum, quædam quæ plane jacent super lectum; et in parte jacenti forma pingendi assumatur a forma hominis jacentis in lecto, in parte vero pendenti assumatur forma hominis recte stantis.

(33) Às vezes pintam-se nos cobertores das camas. Deve-se, então, observar a postura em que deve estar quando está no seu próprio ser. Com efeito, há nos cobertores das camas certas partes que pendem dos dois lados em volta da cama, algumas que se estendem rentes, acima da cama. Na parte estendida, tome-se a forma de pintar da forma de um homem deitado na cama. Porém na parte pendente, assuma-se a forma de um homem que está em pé.

Comentário:

Até as colchas? Sim. Como diz Michel Pastoureau em artigo de 1987, "[l]a société aristocratique du Moyen Age finissant est une société suremblématisée[; l]es emblèmes sont partout, exprimés par des formules variées en tous lieux et sur tous supports" (1). Com efeito, o grande cronista Fernão Lopes, ao narrar o casamento de Dona Beatriz, filha do rei Dom Fernando I, com Eduardo de Norwich, filho de Edmundo de Langley, duque de York, em 1381, revela-nos a existência de um precioso e apreciado objeto:

Capítulo 130
Como el-Rei declarou por o papa de Roma e esposou sua filha com o conde de Cambrig.
Segundo ouvistes em seu logar, el-Rei Dom Fernando tiinha declarado por aquel que se chamava Clemente VII, cuja parte favorizava el-rei de França e el-rei de Castela e algũus outros senhores. E quando os ingreses veérom, porquanto tiinham com o papa de Roma, Urbano VI, nom ouviam missa de nenhũu frade nem clérigo português. Estonce disse o conde a el-Rei que el viinha pera o servir e ajudar em sua guerra contra el-rei de Castela, que era cismático, teendo com ũu papa que estava em Avinhom, e que se el quiria que o Deus ajudasse em sua guerra, que desse obediência ao padre santo de Roma e que desta guisa lho enviava el-rei, seu senhor e padre, dizer e todo o conselho de Ingraterra, porquanto eram certos que aquel era verdadeiro papa e outro, nom. E el disse que lhe prazia e outorgou de o fazer assi. E quando veo aos 19 dias do mês d'agosto, na festa da degolaçom de Sam Joam Baptista, el-Rei Dom Fernando, havendo maduro conselho com o arcebispo de Brágaa e outros leterados hómẽes de seu reino, juramentados sobre ũa hóstia sagrada na see catedral da dita cidade, pubricamente presente todo o póboo, declarou Urbano VI seer verdadeiro papa e outro, nom, e isto presente os ingreses e muito outro póboo. E logo em esse dia, a hora de terça, esposou el-Rei sua filha, a ifante Dona Beatriz, per palavras de presente, com Eduarte, filho do conde de Cambrig, moços muito pequenos. E fôrom ambos lançados em ũa grande cama e bem corregida, na câmara nova dos paaços d'el-Rei. E o bispo d'Acres e o de Lisboa e outros prelados rezárom sobre eles, segundo costume de Ingraterra, e os beenzêrom. A cama era bem emparamentada e a cubricama, dũu tapete preto com duas grandes figuras de rei e de rainha na meatade, todas d'aljôfar graado e meão, segundo requeria onde era posto, a bordadura d'arredor era toda d'archetes d'aljôfar e dentro iguaes feguras d'aljôfar, broladas das linhágẽes de tôdolos fidalgos de Portugal com suas armas acerca de si. E este corregimento de cama foi depois dado a el-rei Dom Joam de Castela, quando casou esta ifante Dona Beatriz, segundo adeante ouvirees. E era havuda em Castela por mui rica obra, qual outra i nom havia. E fôrom estes esposoiros feitos com esta condiçom: que morrendo el-Rei Dom Fernando sem havendo filho de sua molher, que este Duarte e sua esposa sobcedessem o reino depós sua morte, outorgando isto tôdolos fidalgos e fazendo-lhe menagem por tôdalas vilas e cidades e fortelezas do Reino. E depois desto, no mês de setembro, aos 8 dias dele, foi pubricada, presente el-Rei e o conde e muitos senhores e prelados, ũa lêtera do papa Urbano em que privava de todo bem e honra eclesiástica Roberte, que se chamava Clemente VII, e isso meesmo tôdolos cardeaes e pessoas leigas que lhe dávom conselho e favor e ajuda, assi pubricamente come em ascondido, excomungando-os que nom podessem seer assoltos senom pelo papa, salvo se fosse em artigo de morte, dando seus bẽes e eles por servos a aqueles que os tomassem, outorgando-lhe ainda aqueles privilégios que dam a aqueles que vão em ajuda da Terra Santa. (Crônica d'el-Rei Dom Fernando; grifo meu)

Ou seja, bem antes do primeiro livro, o armorial mais antigo de brasões gentilícios portugueses foi bordado numa colcha! Ainda que não se tenha conservado, como, em geral, aconteceu às peças têxteis, não faltam testemunhos plásticos dessa "superemblematização". Eis um exemplo:

Detalhe das pinturas murais da conquista de Maiorca, encontradas no Palau Aguilar, hoje sede do Museu Picasso, em Barcelona, conservadas atualmente no Museu Nacional d'Art de Catalunya.
Detalhe das pinturas murais da conquista de Maiorca, encontradas no Palau Aguilar, hoje sede do Museu Picasso, em Barcelona, conservadas atualmente no Museu Nacional d'Art de Catalunya.

A imagem acima, pintada entre 1285 e 1290, traz o acampamento de Jaime o Conquistador, rei de Aragão, levantado para assaltar a cidade de Maiorca (hoje Palma), fato acontecido em 1228. No primeiro plano, veem-se a tenda deste e a de Hugo IV, conde de Empúries. As armas do rei (de ouro com palas de vermelho, depois quatro) não figuram apenas na veste cujas mangas lhe saem pela cota, mas também na cobertura do seu assento e no tecido da própria tenda. As armas do conde (de ouro com faixas de vermelho, depois faixado de ouro e vermelho, de seis peças) figuram igualmente na sua veste e tenda, mas se divisa, ainda, o seu escudo, pendurado numa haste.

Rei Filipe VI discursando no Senado da Espanha em 2015. Ao fundo, vê-se um repostero com as armas dessa instituição, que são as mesmas do estado num escudo oval, debruado de azul, rodeado pelo colar da Ordem do Tosão de Ouro e, acima, por um listel de azul que sai da coroa, carregado da legenda SENADO DE ESPAÑA em letras de ouro. Imagem disponível no site institucional.
Rei Filipe VI discursando no Senado da Espanha em 2015. Ao fundo, vê-se um repostero com as armas dessa instituição, que são as mesmas do estado num escudo oval, debruado de azul, rodeado pelo colar da Ordem do Tosão de Ouro e, acima, por um listel de azul que sai da coroa, carregado da legenda SENADO DE ESPAÑA em letras de ouro. Imagem disponível no site institucional.

Para acabar, menciono um belo costume espanhol: é muito comum que as instituições públicas ostentem as suas armas numa espécie de tapete ricamente bordado, chamado repostero em castelhano, o qual fica exposto num lugar de honra ou destaque, como plenários, sacadas, janelas, palanques etc. É um resquício das práticas heráldicas têxteis, digamos assim.

Nota:
(1) "A sociedade aristocrática da Idade Média tardia é uma sociedade superemblematizada; os emblemas estão por toda a parte, expressos por fórmulas variadas em qualquer lugar e sobre qualquer suporte." (tradução minha)

Nenhum comentário:

Postar um comentário