23/11/23

BANDEIRAS CONTRARREVOLUCIONÁRIAS: VATICANO

A representação do estado por cores é tão revolucionária que teve de ser adotada até pelos seus opositores.

É de conhecimento geral que o Vaticano é o menor estado soberano do mundo. Como os demais microestados europeus, é remanência de uma sociedade ordenada por laços de vassalagem que se escalavam até o príncipe, diferentemente da sociedade contemporânea, já que desde a Revolução Francesa o ideal é formar uma nação e constituir um estado. Daí que Andorra, Liechtenstein, Luxemburgo, Mônaco e San Marino tenham precisado construir identidades nacionais diferentes da catalã, austríaca, alemã, francesa e italiana.

Bandeira do Vaticano.
Bandeira do Vaticano.

Com efeito, se hoje ainda estranha que haja uma cidadania vaticana, quando no Vaticano falta população nativa, na Itália pré-unitária, onde abundava essa população, porque os Estados da Igreja se estendiam do Lácio à Romanha, devia parecer cada vez mais incompatível a constituição de um estado-nação com o poder temporal do papa.

Assim, em fevereiro de 1808, o exército francês ocupou Roma pela segunda vez depois da Revolução. Diferentemente da primeira, dez anos antes, toda a península estava agora sob domínio direto ou indireto de Napoleão Bonaparte, quem, embora se tivesse feito monarca, ainda representava os ideais revolucionários. Em face destes, o Estado Pontifício era, portanto, o maior antípoda, o que se mostrava nos topes multicolores.

Armas de Roma (imagem disponível no Manuale d'identità visiva do município).
Armas de Roma (imagem disponível no Manuale d'identità visiva do município).

Assim, à incorporação das milícias pontifícias nas forças ocupantes Pio VII reagiu mudando o seu tope, o que tornou público em março por comunicado aos embaixadores junto à Santa Sé. É que o general Sextius de Miollis, comandante da ocupação, querendo lograr a lealdade dessas milícias ao sumo pontífice, preservou o tope vermelho e amarelo, dando a entender que o soberano consentia com a dita incorporação.

Tapeçaria de Pieter van Aelst para o frontal do dossel de Clemente VII, 1525-30 (conservada nos Museus Vaticanos; imagem disponível em La Venaria Reale). Observe-se que cada leão segura um gonfalão da Igreja.
Tapeçaria de Pieter van Aelst para o frontal do dossel de Clemente VII, 1525-30 (conservada nos Museus Vaticanos; imagem disponível em La Venaria Reale). Observe-se que cada leão segura um gonfalão da Igreja.

O tope vermelho e amarelo fora assumido logo depois da restauração do Estado Pontifício, em 1801, e tinha cores heráldicas, pois as armas de Roma são de vermelho com uma cruzeta e as letras SPQR de ouro (1), alinhadas em banda, se bem que combinava também com as armas da Santa Sé: de vermelho com duas chaves decussadas e uma umbela, tudo de ouro. Essas armas apareciam principalmente sob duas formas: uma, a chamada pala da Igreja, que o capitão-general e o gonfaloneiro acrescentavam às suas armas, assim como as casas nobres que davam bispos à sé romana; a outra é referida pelo nome (vexillifer em latim) do segundo desses oficiais, a saber, o gonfalão da Santa Igreja Romana (vexillum Sanctæ Romanæ Ecclesiæ).

Armas do Vaticano (imagem disponível no portal da Santa Sé).
Armas do Vaticano (imagem disponível no portal da Santa Sé).

Com efeito, até hoje as armas do Vaticano são, segundo a lei fundamental, as "chiavi decussate sormontate del triregno in campo rosso" ("chaves decussadas encimadas do trirregno em campo vermelho"). Com maior precisão caberia brasonar as figuras como segue: duas chaves, uma de prata, guarnecida de ouro, e a outra de ouro, guarnecida de prata, passadas em aspa, atadas com cordões de ambos os metais e encimadas de um trirregno, o corpo e as ínfulas de prata e as coroas, cruzetas e franjas de ouro. (2)

Pavilhões do Estado Pontifício no Album des pavillons... (1858), de Alexandre Le Gras.
Pavilhões do Estado Pontifício no Album des pavillons... (1858), de Alexandre Le Gras. (3)

Os dois metais, que iluminam o emblema da Santa Sé na bandeira e nas armas estatais, forneceram, pois, as cores amarela e branca do novo tope de Pio VII, cujo sucessor, Leão XII, as estendeu à marinha mercante do Estado Pontifício por notificação do cardeal camerlengo em 1825: "A bandeira pontifícia, que todos os navios do Estado de comércio e de pesca deverão doravante arvorar, será na metade presa à haste de cor amarela e de cor branca na outra metade, em cujo meio será pintado o trirregno com as chaves". Até então, esse pavilhão fora branco com o dito emblema, como branco permaneceu o pavilhão naval, que trazia as imagens dos Santos Pedro e Paulo encimadas do mesmo emblema.

Estandarte da Guarda Palatina de Honra, 1859-78 (imagem disponível no Patrons of the Arts in the Vatican Museums).
Estandarte da Guarda Palatina de Honra, 1859-78 (imagem disponível no Patrons of the Arts in the Vatican Museums).

Embora nas fortalezas se içasse uma bandeira branca com as armas do pontífice reinante, a concessão de estandartes amarelos e brancos aos corpos armados desde 1831 demonstra que o pavilhão mercante era o mais representativo do Estado Pontifício. Com efeito, uma bandeira semelhante, com o emblema da Santa Sé no meio, tremulava sobre a Porta Pia em setembro de 1870, quando o exército italiano abriu uma brecha na muralha ao lado dela e tomou Roma, acabando de conquistar os Estados da Igreja.

Finalmente, após quase sessenta anos de dissenso, Vítor Manuel III e Pio XI estipularam em fevereiro de 1929 o Tratado de Latrão, pelo qual a Itália reconhece a soberania da Santa Sé e se criou a Cidade do Vaticano para o exercício dessa soberania. Em junho, o pontífice máximo outorgou uma lei fundamental ao novo estado, a qual recobrou o pavilhão mercante do Estado Pontifício, fazendo dele a bandeira vaticana: "constituída por dois campos divididos verticalmente, um amarelo aderente à haste e o outro branco, e traz neste último a tiara com as chaves".

Anexo A à Lei Fundamental do Estado da Cidade do Vaticano.
Anexo A à Lei Fundamental do Estado da Cidade do Vaticano.

A bandeira do Vaticano apresenta duas curiosidades. A primeira diz respeito à forma, pois desde a versão originária da lei fundamental o anexo A mostra uma bandeira cerimonial: é quadrada e está presa a uma haste ornamentada, da qual pende uma gravata das mesmas cores. Em 1929, quando se fez esse desenho, deviam-se efetivamente esperar usos internos para a bandeira de um estado que não dispunha de ambientes para os usos externos de então, como fortalezas e águas navegáveis.

Papa Francisco embarcando no Aeroporto Internacional de Roma em setembro de 2022 para o Cazaquistão (imagem disponível no Vatican News). Observe-se que a proporção da bandeira vaticana é igual à da italiana, isto é, 2:3.
Papa Francisco embarcando no Aeroporto Internacional de Roma em setembro de 2022 para o Cazaquistão (imagem disponível no Vatican News). Observe-se que a proporção da bandeira vaticana é igual à da italiana, isto é, 2:3.

A segunda curiosidade decorre de um paradoxo: apesar de constituir o menor estado independente, o soberano do Vaticano encabeça uma congregação de 1,378 bilhão de batizados (2021). Daí que a bandeira vaticana seja talvez a mais presente fora do país que representa, pois por toda a parte é fácil vê-la hasteada em igrejas, permanentemente ou por ocasião de certa festa. Além disso, o desenvolvimento do transporte aéreo de passageiros, coincidente com o pontificado de São Paulo VI (1963-78), fez do papa um dos chefes de estado que mais viajam pelo mundo todo e o líder espiritual que nessas viagens ajunta as maiores multidões. Esses usos tornaram a proporção de 2:3 a mais habitual da bandeira vaticana na atualidade.

Bandeira do Vaticano hasteada no adro da igreja matriz durante a Festa de Sant'Ana (de 16 a 26 de julho) em Currais Novos (RN), 2023 (imagem disponível no perfil da paróquia no Instagram).
Bandeira do Vaticano hasteada no adro da igreja matriz durante a Festa de Sant'Ana (de 16 a 26 de julho) em Currais Novos (RN), 2023 (imagem disponível no perfil da paróquia no Instagram).

Resta, enfim, uma questão interessante. O sujeito de direito internacional público não é o Estado da Cidade do Vaticano, mas sim a Santa Sé, ainda que na linguagem corrente vigore a metonímia de se referir um pelo outro. O Vaticano é, propriamente, o território que garante a soberania da Santa Sé, tanto que essa soberania extrapola a muralha leonina, abrangendo uma série de zonas extraterritoriais, e é a Santa Sé que mantém relações diplomáticas com outros sujeitos de direito internacional. Contudo, as chaves com a tiara são o seu único emblema, de modo que à falta de uma bandeira da Igreja os católicos têm recorrido cada vez mais à do Vaticano quando se põe a necessidade de desfraldar uma. 

Notas:
(1) É praticamente consensual a interpretação de que essas letras significam Senatus Populusque Romanus, isto é, 'O Senado e o Povo de Roma", uma espécie de nome oficial do estado romano.
(2) Confesso que esse tópico é discutível. Fora do escudo, as chaves e o trirregno assinalam a dignidade pontifícia e, assim, não demandam um brasonamento detalhado, pois são consabidas as suas formas e iluminura. Dentro do escudo, tornam-se, porém, figuras e, como tais, cumpre brasoná-las com precisão. A questão é: o quanto?
(3) I. Pavilhão papal; II. Pavilhão de guerra; III. Pavilhão do pontífice reinante; IV. Pavilhão das Finanças; V. Pavilhão dos barcos de pesca; VI. Pavilhão de pilotos; VII. Corneta de comando; VIII. Jaque; IX. Flâmula de guerra; X. Flâmula das Finanças.

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