A representação do estado por cores é tão revolucionária que teve de ser adotada até pelos seus opositores.
É de conhecimento geral que o Vaticano é o menor estado soberano do mundo. Como os demais microestados europeus, é remanência de uma sociedade ordenada por laços de vassalagem que se escalavam até o príncipe, diferentemente da sociedade contemporânea, já que desde a Revolução Francesa o ideal é formar uma nação e constituir um estado. Daí que Andorra, Liechtenstein, Luxemburgo, Mônaco e San Marino tenham precisado construir identidades nacionais diferentes da catalã, austríaca, alemã, francesa e italiana.
Bandeira do Vaticano. |
Com efeito, se hoje ainda estranha que haja uma cidadania vaticana, quando no Vaticano falta população nativa, na Itália pré-unitária, onde abundava essa população, porque os Estados da Igreja se estendiam do Lácio à Romanha, devia parecer cada vez mais incompatível a constituição de um estado-nação com o poder temporal do papa.
Assim, em fevereiro de 1808, o exército francês ocupou Roma pela segunda vez depois da Revolução. Diferentemente da primeira, dez anos antes, toda a península estava agora sob domínio direto ou indireto de Napoleão Bonaparte, quem, embora se tivesse feito monarca, ainda representava os ideais revolucionários. Em face destes, o Estado Pontifício era, portanto, o maior antípoda, o que se mostrava nos topes multicolores.
Armas de Roma (imagem disponível no Manuale d'identità visiva do município). |
Assim, à incorporação das milícias pontifícias nas forças ocupantes Pio VII reagiu mudando o seu tope, o que tornou público em março por comunicado aos embaixadores junto à Santa Sé. É que o general Sextius de Miollis, comandante da ocupação, querendo lograr a lealdade dessas milícias ao sumo pontífice, preservou o tope vermelho e amarelo, dando a entender que o soberano consentia com a dita incorporação.
Tapeçaria de Pieter van Aelst para o frontal do dossel de Clemente VII, 1525-30 (conservada nos Museus Vaticanos; imagem disponível em La Venaria Reale). Observe-se que cada leão segura um gonfalão da Igreja. |
O tope vermelho e amarelo fora assumido logo depois da restauração do Estado Pontifício, em 1801, e tinha cores heráldicas, pois as armas de Roma são de vermelho com uma cruzeta e as letras SPQR de ouro (1), alinhadas em banda, se bem que combinava também com as armas da Santa Sé: de vermelho com duas chaves decussadas e uma umbela, tudo de ouro. Essas armas apareciam principalmente sob duas formas: uma, a chamada pala da Igreja, que o capitão-general e o gonfaloneiro acrescentavam às suas armas, assim como as casas nobres que davam bispos à sé romana; a outra é referida pelo nome (vexillifer em latim) do segundo desses oficiais, a saber, o gonfalão da Santa Igreja Romana (vexillum Sanctæ Romanæ Ecclesiæ).
Armas do Vaticano (imagem disponível no portal da Santa Sé). |
Com efeito, até hoje as armas do Vaticano são, segundo a lei fundamental, as "chiavi decussate sormontate del triregno in campo rosso" ("chaves decussadas encimadas do trirregno em campo vermelho"). Com maior precisão caberia brasonar as figuras como segue: duas chaves, uma de prata, guarnecida de ouro, e a outra de ouro, guarnecida de prata, passadas em aspa, atadas com cordões de ambos os metais e encimadas de um trirregno, o corpo e as ínfulas de prata e as coroas, cruzetas e franjas de ouro. (2)
Pavilhões do Estado Pontifício no Album des pavillons... (1858), de Alexandre Le Gras. (3) |
Os dois metais, que iluminam o emblema da Santa Sé na bandeira e nas armas estatais, forneceram, pois, as cores amarela e branca do novo tope de Pio VII, cujo sucessor, Leão XII, as estendeu à marinha mercante do Estado Pontifício por notificação do cardeal camerlengo em 1825: "A bandeira pontifícia, que todos os navios do Estado de comércio e de pesca deverão doravante arvorar, será na metade presa à haste de cor amarela e de cor branca na outra metade, em cujo meio será pintado o trirregno com as chaves". Até então, esse pavilhão fora branco com o dito emblema, como branco permaneceu o pavilhão naval, que trazia as imagens dos Santos Pedro e Paulo encimadas do mesmo emblema.
Estandarte da Guarda Palatina de Honra, 1859-78 (imagem disponível no Patrons of the Arts in the Vatican Museums). |
Embora nas fortalezas se içasse uma bandeira branca com as armas do pontífice reinante, a concessão de estandartes amarelos e brancos aos corpos armados desde 1831 demonstra que o pavilhão mercante era o mais representativo do Estado Pontifício. Com efeito, uma bandeira semelhante, com o emblema da Santa Sé no meio, tremulava sobre a Porta Pia em setembro de 1870, quando o exército italiano abriu uma brecha na muralha ao lado dela e tomou Roma, acabando de conquistar os Estados da Igreja.
Finalmente, após quase sessenta anos de dissenso, Vítor Manuel III e Pio XI estipularam em fevereiro de 1929 o Tratado de Latrão, pelo qual a Itália reconhece a soberania da Santa Sé e se criou a Cidade do Vaticano para o exercício dessa soberania. Em junho, o pontífice máximo outorgou uma lei fundamental ao novo estado, a qual recobrou o pavilhão mercante do Estado Pontifício, fazendo dele a bandeira vaticana: "constituída por dois campos divididos verticalmente, um amarelo aderente à haste e o outro branco, e traz neste último a tiara com as chaves".
Anexo A à Lei Fundamental do Estado da Cidade do Vaticano. |
A bandeira do Vaticano apresenta duas curiosidades. A primeira diz respeito à forma, pois desde a versão originária da lei fundamental o anexo A mostra uma bandeira cerimonial: é quadrada e está presa a uma haste ornamentada, da qual pende uma gravata das mesmas cores. Em 1929, quando se fez esse desenho, deviam-se efetivamente esperar usos internos para a bandeira de um estado que não dispunha de ambientes para os usos externos de então, como fortalezas e águas navegáveis.
Papa Francisco embarcando no Aeroporto Internacional de Roma em setembro de 2022 para o Cazaquistão (imagem disponível no Vatican News). Observe-se que a proporção da bandeira vaticana é igual à da italiana, isto é, 2:3. |
A segunda curiosidade decorre de um paradoxo: apesar de constituir o menor estado independente, o soberano do Vaticano encabeça uma congregação de 1,378 bilhão de batizados (2021). Daí que a bandeira vaticana seja talvez a mais presente fora do país que representa, pois por toda a parte é fácil vê-la hasteada em igrejas, permanentemente ou por ocasião de certa festa. Além disso, o desenvolvimento do transporte aéreo de passageiros, coincidente com o pontificado de São Paulo VI (1963-78), fez do papa um dos chefes de estado que mais viajam pelo mundo todo e o líder espiritual que nessas viagens ajunta as maiores multidões. Esses usos tornaram a proporção de 2:3 a mais habitual da bandeira vaticana na atualidade.
Bandeira do Vaticano hasteada no adro da igreja matriz durante a Festa de Sant'Ana (de 16 a 26 de julho) em Currais Novos (RN), 2023 (imagem disponível no perfil da paróquia no Instagram). |
Resta, enfim, uma questão interessante. O sujeito de direito internacional público não é o Estado da Cidade do Vaticano, mas sim a Santa Sé, ainda que na linguagem corrente vigore a metonímia de se referir um pelo outro. O Vaticano é, propriamente, o território que garante a soberania da Santa Sé, tanto que essa soberania extrapola a muralha leonina, abrangendo uma série de zonas extraterritoriais, e é a Santa Sé que mantém relações diplomáticas com outros sujeitos de direito internacional. Contudo, as chaves com a tiara são o seu único emblema, de modo que à falta de uma bandeira da Igreja os católicos têm recorrido cada vez mais à do Vaticano quando se põe a necessidade de desfraldar uma.
(1) É praticamente consensual a interpretação de que essas letras significam Senatus Populusque Romanus, isto é, 'O Senado e o Povo de Roma", uma espécie de nome oficial do estado romano.
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