15/05/24

TESOURO DE NOBREZA (VIII)

Armas das conquistas de Portugal.

Do Tesouro de nobreza (1675):

Fólio 10 – 1. Armas da Religião de Santo Elói; 2. Armas da Religião de São Jerônimo; 3. Armas da Religião de São João de Deus. Armas de algumas cidades das conquistas de Portugal. 4. Armas do Reino dos Algarves; 5. Armas da Religião da Cartuxa de São Bento; 6. Armas da Cidade de Tavira; 7. Armas do Estado do Brasil; 8. Armas das Cidades de Lagos, Silves e Faro; 9. Armas da Cidade de Goa; 10. Armas da Ilha de São Miguel; 11. Armas da Ilha do Funchal; 12. Armas da Ilha Terceira.
Fólio 10 – 1. Armas da Religião de Santo Elói; 2. Armas da Religião de São Jerônimo; 3. Armas da Religião de São João de Deus. Armas de algumas cidades das conquistas de Portugal. 4. Armas do Reino dos Algarves; 5. Armas da Religião da Cartuxa de São Bento; 6. Armas da Cidade de Tavira; 7. Armas do Estado do Brasil; 8. Armas das Cidades de Lagos, Silves e Faro; 9. Armas da Cidade de Goa; 10. Armas da Ilha de São Miguel; 11. Armas da Ilha do Funchal; 12. Armas da Ilha Terceira.

Comentário:

Nos estudos do padre Antônio Soares de Albergaria (Códice BNP 1118, fls. 301v-309), que tenho referido desde a primeira postagem desta série, acha-se a maioria dos brasões que formam o presente capítulo, mas cumpre reconhecer que Francisco Coelho procurou tratá-los como conjunto e ampliá-lo (1). Daí que o Algarve, na prática uma província indistinta das demais, figure junto com a expansão ultramarina. É bem verdade que tal critério se ampara na própria intitulação régia: Rei/Rainha de Portugal e dos Algarves d'aquém e d'além-Mar em África.

De todo modo, cabe certa crítica a ambos os autores. Como argui na postagem de 20/12/21, diferentemente dos reis de Castela, os de Portugal nunca deram brasões de armas aos territórios conquistados, nem mesmo quando a mesma pessoa acumulou uma dignidade e a outra. Com efeito, na monarquia portuguesa sempre esteve claro que eram os municípios que possuíam armas e assumi-las constituía uma prerrogativa municipal, portanto assunto em que a Coroa não se imiscuía.

Conseguintemente, o Algarve e o Brasil nunca tiveram brasão, a não ser o do Reino Unido, ordenado por Dom João VI em 1816. Pelo do Algarve, Albergaria aponta "um escudo vermelho e dentro nove castelos d'ouro", isto é, a interpretação tradicional de que a bordadura com os castelos das armas reais foi acrescentada por Dom Afonso III após a conquista desse reino, quando consiste, na realidade, de mera brisura para se diferençar de seu irmão, o rei Dom Sancho II, deposto pelo clero e pela nobreza (cf. a postagem de 19/01/21).

O caso das armas atribuídas ao Brasil foi mais inventivo. À fl. 31v do seu caderno, Albergaria desenhou as armas de Sobrarbe e, traduzindo o Compendio historial (1628, p. 17), de Esteban de Garibay, copia a lenda de Garcia Ximenes, a quem "lhe apareceu ũa cruz vermelha em cima dũa azinheira e em devoção de anúncio e prodígio tão celestial, entrando na batalha, venceu aos mouros, pelo qual el-rei Dom Garcia Ximenes referem haver tomado por suas ensínias e divisas reais a cruz colorada, o encino verde em campo de ouro" (2). Como se terá percebido, são armas falantes: leu-se Sobrarbe como sobre arbre ('sobre árvore'), mas essa região deve o seu nome à serra de Arbe, que a delimita pelo sul (3). Coelho então as viu e ocorreu-lhe que poderiam igualmente identificar o Brasil, cujo nome primitivo fora Santa Cruz e cujo nome definitivo vinha de uma árvore, o pau-brasil. Mudou, porém, a iluminura: o campo de prata e as figuras de sua cor.

Outrossim, não havia brasões de ilhas. A cidade do Funchal, cabeça da ilha da Madeira, efetivamente usava das armas que se veem aqui e são assim brasonadas por Albergaria: "cinco pães d'açúcar em quina com ũa cana-de-açúcar ao pé". As armas da cidade de Angra, cabeça da ilha Terceira e sé do bispado açoriano, não estão no caderno do padre, mas eram verdadeiramente a cruz da Ordem de Cristo com dois açores voantes e afrontados ao seu pé em campo de prata. A imagem de São Miguel figurava no verso do estandarte de Vila Franca do Campo (o anverso carregava as armas reais).

Quanto às cidades algarvias, Albergaria escreve que Lagos, Silves e Faro têm "um escudo branco, sem mais divisa". No entanto, o foral novo de Lagos (1504) sugere que o selo dessa povoação continha um pano de muralha com uma porta flanqueada de duas torres, assente sobre ondas e encimado de um escudo das armas reais. Em 1967, o concelho acatou o parecer da Comissão de Heráldica e Genealogia da Associação dos Arqueólogos Portugueses (AAP), que em 1960 lhe recomendara tal insígnia, ordenando os esmaltes do campo e do ondado como na iluminura do foral, aquele de azul e este de verde e prata, mas pintou a muralha e as torres de ouro, abriu-a e iluminou-as de negro e trocou as armas reais por aquelas do infante Dom Henrique.

A propósito, foi no parecer sobre o brasão de Silves (1925) que Afonso de Dornelas aceitou por boas e autênticas as armas imaginárias do Algarve — duas cabeças de rei cristão e duas cabeças de mouro em campo esquartelado — e as preceituou aos brasões de todos os municípios algarvios, ao que a AAP obedeceu até 1944. Sobre o escudo de prata lisa de Silves, Dornelas colocou-as acantonadas e entre elas os escudetes primitivos de Portugal (com onze besantes, os dos flancos apontados ao centro), o que deixa ver outra característica do trabalho desse heraldista: o historicismo.

Enfim, os brasões de Tavira e de Goa. Este foi tirado do caderno de Albergaria, onde está descrito: "ũa torre com ũa roda de Santa Catarina e por cima da torre ũa mitra e a cruz pontifical". Aquele se deve, por certo, a pesquisa própria, mas Inácio de Vilhena Barbosa nas Cidades e vilas da Monarquia Portuguesa que têm brasão d'armas (1862, v. 3) fortifica a ponte com duas torres, o que Dornelas incorporou na reforma que propôs em 1932, aprovada pelo governo no ano seguinte.

Notas:
(1) Por outro lado, Albergaria também brasona as armas de Malaca ("um junco, que é certo gênero de embarcação, com ũa chave e, por remate, um tigre, animal próprio daquela terra") e esboça o selo de Ponta Delgada (um molho de setas, alusivo a São Sebastião, seu orago). Portanto, das cidades ultramarinas escaparam a Albergaria as fundadas no Brasil (Salvador, Rio de Janeiro, Filipeia e Natal) e as demais sés dos bispados africanos e asiáticos: Santiago de Cabo Verde, São Tomé, São Salvador do Congo, Cochim e Macau. Isso cingindo-se ao século XVI.
(2) Como a tradução é um rascunho, colorado (por vermelho) e encino (por azinheira) são barbarismos.
(3) O brasão de Sobrarbe é um dos vários que transcenderam a literatura heráldica graças à evolução política da Espanha: hoje, é o brasão da vila de Aínsa e compõe o primeiro quartel das armas de Aragão.

13/05/24

TESOURO DE NOBREZA (VII)

Armas das ordens militares e religiosas.

Do Tesouro de nobreza (1675):

Folha 9 – Armas das ordens militares e religiões regulares de Portugal. 1. Armas da Ordem Militar de Jesu-Cristo; 2. Armas da Ordem Militar de Santiago; 3. Armas da Ordem Militar de São Bento de Avis; 4. Armas da Ordem Militar de São João de Malta; 5. Armas da Religião de São Bernardo; 6. Armas da Religião de São Bento; 7. Armas da Religião de Santo Augustinho; 8. Armas da Religião dos Carmelitas; 9. Armas da Religião da Santíssima Trindade; 10. Armas da Religião de São Domingos; 11. Armas da Religião de São Francisco; 12. Armas da Religião da Companhia de Jesu.
Fólio 9 – Armas das ordens militares e religiões regulares de Portugal. 1. Armas da Ordem Militar de Jesu-Cristo; 2. Armas da Ordem Militar de Santiago; 3. Armas da Ordem Militar de São Bento de Avis; 4. Armas da Ordem Militar de São João de Malta; 5. Armas da Religião de São Bernardo; 6. Armas da Religião de São Bento; 7. Armas da Religião de Santo Augustinho; 8. Armas da Religião dos Carmelitas; 9. Armas da Religião da Santíssima Trindade; 10. Armas da Religião de São Domingos; 11. Armas da Religião de São Francisco; 12. Armas da Religião da Companhia de Jesu.

Fólio 10 – 1. Armas da Religião de Santo Elói; 2. Armas da Religião de São Jerônimo; 3. Armas da Religião de São João de Deus. Armas de algumas cidades das conquistas de Portugal. 4. Armas do Reino dos Algarves; 5. Armas da Religião da Cartuxa de São Bento; 6. Armas da Cidade de Tavira; 7. Armas do Estado do Brasil; 8. Armas das Cidades de Lagos, Silves e Faro; 9. Armas da Cidade de Goa; 10. Armas da Ilha de São Miguel; 11. Armas da Ilha do Funchal; 12. Armas da Ilha Terceira.
Fólio 10 – 1. Armas da Religião de Santo Elói; 2. Armas da Religião de São Jerônimo; 3. Armas da Religião de São João de Deus. Armas de algumas cidades das conquistas de Portugal. 4. Armas do Reino dos Algarves; 5. Armas da Religião da Cartuxa de São Bento; 6. Armas da Cidade de Tavira; 7. Armas do Estado do Brasil; 8. Armas das Cidades de Lagos, Silves e Faro; 9. Armas da Cidade de Goa; 10. Armas da Ilha de São Miguel; 11. Armas da Ilha do Funchal; 12. Armas da Ilha Terceira.

Comentário:

A partir deste capítulo, Francisco Coelho dá início ao armorial geral do reino de Portugal e suas conquistas e é aqui que mais se prova o seu valor, porque os congêneres manuelinos não têm esse alcance, mas se cingem à realeza e à nobreza. Por conseguinte, o rei de armas Índia teve de pesquisar por si mesmo brasões de outras espécies, embora à folha 310 do caderno de Albergaria (Códice BNP 1118) se achem os esboços de algumas insígnias de ordens militares e religiosas.

Todavia, é preciso ressalvar a visão da armaria que vigorava então. Com efeito, para Coelho todas as ordens, tanto militares como religiosas, tinham armas, mas na realidade não era bem assim. A igreja sempre vacilou entre o selo e o brasão e a própria Sé Apostólica demonstra isso: as chaves decussadas com a tiara servem-lhe de selo e sobre um escudo formam o brasão do Vaticano (cf. a postagem de 23/11/23). Portanto, todas as ordens têm, mais precisamente, insígnias, mas destas só algumas constituem brasões.

Não obstante, certas ordens nunca tiveram um só emblema, porque são, na verdade, uma família de vários institutos, como a franciscana. Coelho escolheu, então, o emblema usado em Portugal, como as armas da Abadia de Alcobaça pelas da Ordem Cisterciense. Isso confere valor histórico especial ao capítulo.

Em suma, Coelho converteu as insígnias não heráldicas em brasões, pondo cada uma sobre um escudo, às vezes com um timbre. No caso das ordens militares, o esmalte do campo é o mesmo do hábito e da bandeira. Nos demais casos, a iluminura ficou arbitrária. Examinemos uma por uma:

1. A cruz da Ordem de Cristo é pátea, vermelha e vazia em campo de prata ou branco.

2. A cruz da Ordem de Santiago tem a forma de uma espada abatida com o punho acabado em folha de golfão e a guarda florenciada e é vermelha em campo de prata ou branco.

3. A cruz da Ordem de Avis é florenciada e verde em campo de prata ou branco.

4. A cruz de Malta é pátea de oito pontas e de prata ou branca em campo vermelho.

5. Pelas armas da Ordem Cisterciense dão-se aquelas da Abadia de Alcobaça, que são uma banda xadrezada de prata e vermelho entre seis flores de lis de ouro em campo azul; por timbre, mitra.

6. Pelas armas da Ordem de São Bento dão-se aquelas da Congregação Beneditina de Portugal com algumas diferenças, que são em campo azul um báculo de ouro, hasteado de prata, entre uma torre torreada de prata, lavrada, aberta e iluminada de negro, coberta de ouro, e um leão de ouro, tudo sustido por um terrado ao natural; por timbre, mitra.

7. A insígnia da Ordem de Santo Agostinho é um coração inflamado e atravessado por uma flecha sobre um livro, a qual em Portugal aparece sobre uma águia de duas cabeças com cintos nos bicos e o sol e a lua nas garras; por cima do escudo, uma mitra.

8. Pelas armas da Ordem do Carmo dá-se um escudo da cor do hábito carmelita, mantelado em cruz de prata, com três estrelas de um no outro; por timbre, uma espada flamejante.

9. A cruz antiga da Ordem da Santíssima Trindade é pátea de oito pontas com a haste vermelha e a travessa azul em campo de prata ou branco; por cima do escudo, um anjo com um rosário.

10. Pelas armas da Ordem dos Pregadores dá-se um escudo gironado de prata e negro de oito peças com uma cruz florenciada de um para o outro e uma bordadura contragironada, carregada de oito estrelas de um no outro; por timbre, um cão de prata, malhado de negro, segurando na boca uma tocha ao natural, encimada de um mundo azul, arqueado e cruzado de prata. Normalmente não há bordadura, que parece distintiva da província dominicana portuguesa.

11. Pelas armas da Ordem dos Frades Menores dão-se as da Ordem Terceira de São Francisco (hoje Franciscana Secular), que são cinco chagas vermelhas em campo de prata; por timbre, o emblema franciscano, que são dois braços de carnação passados em aspa, o esquerdo vestido do hábito franciscano, ambos com as mãos espalmadas e feridas de vermelho, moventes de nuvens de prata.

12. A insígnia da Companhia de Jesus é um sol carregado do trigrama IHS e de três cravos unidos pelas pontas em baixo; por cima do escudo, um Agnus Dei deitado sobre um livro fechado.

1. A insígnia dos Cônegos Seculares de São João Evangelista é uma águia, atributo icônico do seu patrono. O objeto que ela traz pendente do bico por um cordel parece um tinteiro; por cima do escudo, uma mitra.

2. A insígnia da Ordem de São Jerônimo é um leão, atributo icônico do seu patrono; por cima do escudo, um capelo cardinalício.

3. A insígnia antiga da Ordem de São João de Deus é uma romã encimada de uma estrela e esta de uma cruz; por cima do escudo, a romã.

5. A insígnia da Ordem dos Cartuxos é um mundo encimado de sete estrelas em arco. Portanto, falta o mundo.

11/05/24

TESOURO DE NOBREZA (VI)

Armas de alguns senhores potentados e dos sete eleitores do Império.

Do Tesouro de nobreza (1675):

Fólio 6 – 31. Macedônia; 32. Godos; 33. Castela; 34. Barcelona e Catalunha; 35. Aragão; 36. Leão; 37. Galiza; 38. Portugal; 39. Andaluzia. Armas de alguns senhores potentados. 1. Duque de Borgonha; 2. Duque de Normandia; 3. Duque de Quênia.
Fólio 6 – 31. Macedônia; 32. Godos; 33. Castela; 34. Barcelona e Catalunha; 35. Aragão; 36. Leão; 37. Galiza; 38. Portugal; 39. Andaluzia. Armas de alguns senhores potentados. 1. Duque de Borgonha; 2. Duque de Normandia; 3. Duque de Quênia.

Fólio 7 – 4. Arcebispo de Rems; 5. Bispo-Duque de Leam; 6. Bispo-Duque de Lengres; 7. Conde de Campanha; 8. Conde de Flandes; 9. Conde de Tolosa; 10. Conde de Beanvis; 11. Conde de Naiaut; 12. Conde de Clelon. Armas dos sete Eleitores do Império. 1. Rei de Boêmia; 2. Arcebispo de Colônia, Mestre das Cerimônias; 3. Arcebispo de Tréveri, Chancelário-Mor de França.
Fólio 7 – 4. Arcebispo de Rems; 5. Bispo-Duque de Leam; 6. Bispo-Duque de Lengres; 7. Conde de Campanha; 8. Conde de Flandes; 9. Conde de Tolosa; 10. Conde de Beanvis; 11. Conde de Naiaut; 12. Conde de Clelon. Armas dos sete Eleitores do Império. 1. Rei de Boêmia; 2. Arcebispo de Colônia, Mestre das Cerimônias; 3. Arcebispo de Tréveri, Chancelário-Mor de França.

Fólio 8 – 4. Arcebispo de Mogúncia, Chancelário-Mor de Itália; 5. Duque de Saxônia, Marechal-Mor do Império; 6. Duque de Beuburg (ficou no lugar do Palatinado desterrado); 7. Duque de Baviera, Camareiro-Mor. 1. Imperador de Elemanha; 2. Rei de Jerusalém; 3. Rei de França; 4. Rei de Portugal; 5. Rei de Inglaterra; 6. Rei de Aragão; 7. Índia Menor; 8. Índia Maior.
Fólio 8 – 4. Arcebispo de Mogúncia, Chancelário-Mor de Itália; 5. Duque de Saxônia, Marechal-Mor do Império; 6. Duque de Beuburg (ficou no lugar do Palatinado desterrado); 7. Duque de Baviera, Camareiro-Mor. 1. Imperador de Elemanha; 2. Rei de Jerusalém; 3. Rei de França; 4. Rei de Portugal; 5. Rei de Inglaterra; 6. Rei de Aragão; 7. Índia Menor; 8. Índia Maior.

Comentário:

Antes do primeiro trabalho heráldico que determinou, o rei Dom Manuel I mandou os seus oficiais de armas às principais cortes europeias para se instruírem na matéria (cf. a postagem de 27/04/21). É por isso que ao folhear o Livro do Armeiro-Mor, a ordem é impecável: espelha fielmente o modo como se concebia o mundo. Assim, começa-se pelos Nove da Fama, que encarnam os valores da cavalaria, tão antigos quanto perenes; em seguida, os reis de terras próximas e distantes; depois, o imperador, como dignitário secular supremo, e os seus eleitores; logo abaixo em dignidade, o rei da França e os seus pares; enfim, o senhor do reino que o armorial abarca com sua esposa e seus filhos, os titulares e os chefes das casas nobres, segundo as suas precedências.

Ao contrário, estes dois capítulos do Tesouro atestam a que ponto decaíra o ofício de armas no tempo de Francisco Coelho. Mesmo reconhecendo que a elaboração deste armorial reagia contra tal decadência, é impressionante que ao rei de armas Índia tenham faltado imagens de brasões tão difusos num momento em que já circulava boa quantidade de livros sobre a matéria, pois só uma recepção indireta, mediante descrições ambíguas ou insuficientes, explica tanta divergência, inclusive nos topônimos: Quênia por Guiena, Beanvis por Beauvais, Naiaut por Noyon, Clelon por Châlons, Beuburg por Neuburg. Em particular, esse grau de equivocação parece incompatível com a leitura de um texto impresso.

Outro indício de que Coelho não manuseou uma fonte primária é o anacronismo da referência ao exílio de Frederico V, conde palatino do Reno, e a confusão com a Baviera e o Palatinado-Neuburg, estados igualmente governados por ramos da Casa de Wittelsbach. Com efeito, a Paz de Vestfália (1648) confirmou o duque Maximiliano da Baviera no lugar do eleitor palatino, mas restaurou o Palatinado na pessoa de Carlos Luís, filho de Frederico V, e criou-lhe um oitavo eleitorado, enquanto o conde palatino de Neuburg era Wolfgang Guilherme.

É verdade que João do Cró comete vários erros no Livro do Armeiro-Mor, mas todos são mais compreensíveis para o início do século XVI, quando havia menos fontes e predominavam os manuscritos. De todo modo, esse armorial dá com bastante precisão os brasões dos eleitores do Império e dos pares laicos de França. O próprio Coelho poderia tê-lo consultado, já que seguia sob a guarda do armeiro-mor do Reino. Isso me faz suspeitar que até mesmo a lembrança dessa obra se perdera dentro do Juízo e Cartório da Nobreza. (1)

O preenchimento destes três fólios leva-me, ainda, a duvidar de que Coelho soubesse bem como fazer um armorial universal, dado que antepõe os pares de França aos eleitores do Império e completa o fólio 8 de modo que lhes ficam pospostos o próprio imperador e grandes reis. Essas coisas sugerem que, à falta de um plano correto, o uso do pergaminho preponderou à hierarquia.

Apesar de tudo isto, como somente os brasões das Índias são imaginários, vale a pena examinar um por um. Primeiro, os doze pares de França:

1. O duque da Borgonha trazia bandado de ouro e azul de seis peças e uma bordadura vermelha. Portanto, Coelho reproduziu bem estas armas.

2. O duque da Normandia trazia dois leopardos de ouro, um sobre o outro, em campo vermelho. Mas aqui não se sabe se são leões ou leopardos aleonados.

3. O duque da Aquitânia (ou Guiana ou Guiena) trazia um leopardo de ouro em campo vermelho. Mas aqui também não se sabe se é um leão ou leopardo aleonado.

4. O arcebispo-duque de Reims trazia em campo azul, semeado de flores de lis de ouro, uma cruz vermelha, brocante sobre tudo. Mas aqui a cruz está pintada de prata e solta e as lises são contáveis.

5. O bispo-duque de Laon trazia em campo azul, semeado de flores de lis de ouro, uma cruz de prata, brocante sobre tudo e carregada de um báculo vermelho. Mas aqui a cruz parece florenciada, as lises se reduzem a quatro e falta o báculo.

6. O bispo-duque de Langres trazia em campo azul, semeado de flores de lis de ouro, uma aspa vermelha, brocante sobre tudo. Mas aqui as lises são contáveis.

7. O conde da Champanha trazia uma banda de prata, coticada duplamente, potenciada e contrapotenciada de ouro, em campo azul. Mas Coelho não soube reproduzir estas armas.

8. O conde de Flandres trazia um leão negro, armado e lampassado de vermelho, em campo de ouro. Mas o leão está todo negro.

9. O conde de Toulouse trazia uma cruz de Toulouse de ouro em campo vermelho (2). Mas Coelho também não soube reproduzir estas armas.

10. O bispo-conde de Beauvais trazia uma cruz vermelha, cantonada de quatro chaves do mesmo, adossadas par a par, em campo de ouro. Mas aqui falta a cruz e as chaves se reduzem a duas.

11. O bispo-conde de Noyon trazia em campo azul, semeado de flores de lis de ouro, dois báculos adossados de prata e brocantes. Mas aqui em vez de báculos, há campas.

12. O bispo-conde de Châlons trazia uma cruz de prata, cantonada de quatro flores de lis de ouro, em campo azul. Mas Coelho reproduziu outras armas.

Depois, o sete eleitores do Império:

1. O rei da Boêmia, arquicopeiro do Império, trazia um leão de cauda forcada de prata, armado, lampassado e coroado de ouro, em campo vermelho. Mas aqui o leão está todo de prata e não cinge coroa.

2. O arcebispo de Colônia, arquichanceler para a Itália, trazia uma cruz negra em campo de prata. Mas aqui a cruz está maçanetada.

3. O arcebispo de Tréveris, arquichanceler para a Gália, trazia uma cruz vermelha em campo de prata. Mas aqui a cruz está solta.

4. O arcebispo de Mogúncia, arquichanceler para a Germânia, trazia uma roda de seis raios de prata em campo vermelho. Mas aqui os raios se reduzem a quatro.

5. O duque da Saxônia, arquimarechal do Império, trazia burelado de negro e ouro de dez peças e um crancelim verde, brocante sobre tudo. Mas aqui se fizeram quatro faixas negras em campo de ouro e o crancelim de prata.

6. O duque da Baviera (e não o de Neuburg), arquissenescal do Império, trazia esquartelado: no primeiro e quarto, as armas da Baviera, a saber, fuselado em banda de prata e azul; no segundo e terceiro, as armas do Palatinado, a saber, um leão de prata, armado, lampassado e coroado de vermelho, em campo negro. Mas aqui pelo fuselado se fez um lisonjado e o leão está todo de ouro e não cinge coroa.

7. O marquês de Brandemburgo (e não o duque da Baviera), arquicamareiro do Império, trazia uma águia vermelha, bicada e membrada de ouro, cada asa carregada de um Kleestängel do mesmo, em campo de prata. Mas aqui a águia está toda vermelha.

Finalmente, o imperador e alguns reis:

1. O imperador trazia em campo de ouro uma águia negra de duas cabeças, bicada e membrada de vermelho, e um escudete vermelho, carregado de uma faixa de prata, brocante sobre o peito da águia.

2. O rei de Jerusalém trazia uma cruz potenteia de ouro, cantonada de quatro cruzetas do mesmo, em campo de prata.

3. O rei da França trazia três flores de lis de ouro em campo azul.

4. O rei de Portugal trazia em campo de prata cinco escudetes azuis, carregados de cinco besantes do primeiro, e uma bordadura vermelha, carregada de sete castelos de ouro.

5. O rei da Inglaterra trazia esquartelado: o primeiro e quarto contraesquartelados, no primeiro e quarto as armas reais da França, a saber, três flores de lis de ouro em campo azul; no segundo e terceiro as armas reais da Inglaterra, a saber, três leopardos de ouro, alinhados em pala, em campo vermelho; no segundo, as armas reais da Escócia, a saber, um leão vermelho encerrado numa orleta dupla florenciada e contraflorenciada do mesmo em campo de ouro; no terceiro, as armas reais da Irlanda, a saber, uma harpa de ouro, cordada de prata, em campo azul. Mas Coelho não soube reproduzir as armas reais escocesas.

6. O rei de Aragão trazia quatro palas vermelhas em campo de ouro. Aqui Coelho se emenda, uma vez que à folha 6 faz cinco palas.

Notas:
(1) Até mesmo a instabilidade linguística no Livro do Armeiro-Mor (como enleição por eleição) é compatível com a evolução do português à época, mas escrever Elemanha em 1675 indicia letramento deficiente.
(2) Em francês, a cruz de Toulouse brasona-se assim: une croix cléchée, vidée et pommetée. Em português, por vidé e pommeté diz-se vazio e maçanetado, mas não há tradução para cléché, que parece referir à forma semelhante a uma chave (clef); talvez 'claviculado'.

09/05/24

TESOURO DE NOBREZA (V)

Armas de vários reinos.

Do Tesouro de nobreza (1675):

Fólio 3 – 4. Ob ferociam militum; 5. Triumphus non est sine sanguine; 6. Ob signum pacis; 7. Senatus Populusque Romanus; 8. Ob Imperii decus; 9. Ob animositatem Romanorum; 10. Regere Imperio populos, Romane, memento. Armas de vários reinos. 1. Os dous Estados da Igreja; 2. Frígia; 4. Cilícia; 5. Cítia; 6. Trácia.
Fólio 3 – 4. Ob ferociam militum; 5. Triumphus non est sine sanguine; 6. Ob signum pacis; 7. Senatus Populusque Romanus; 8. Ob Imperii decus; 9. Ob animositatem Romanorum; 10. Regere Imperio populos, Romane, memento. Armas de vários reinos. 1. Os dous Estados da Igreja; 2. Frígia; 4. Cilícia; 5. Cítia; 6. Trácia.

Fólio 4 – 7. Itália; 8. Pérsia; 9. Babilônia; 10. Ásia; 11. Amônia; 12. Cartago; 13. Corália; 14. Grécia; 15. Roma, Ob militiæ resplendorem; 16. Etiópia; 17. África Ocidental; 18. África Oriental.
Fólio 4 – 7. Itália; 8. Pérsia; 9. Babilônia; 10. Ásia; 11. Amônia; 12. Cartago; 13. Corália; 14. Grécia; 15. Roma, Ob militiæ resplendorem; 16. Etiópia; 17. África Ocidental; 18. África Oriental.

Fólio 5 – 19. Leão; 20. Granada; 21. Valença; 22. Malhorca; 23. Córdova; 24. Algarve; 25. Biscaia; 26. Barcelona; 27. Castela; 28. Toledo; 29. Navarra; 30. Galiza.
Fólio 5 – 19. Leão; 20. Granada; 21. Valença; 22. Malhorca; 23. Córdova; 24. Algarve; 25. Biscaia; 26. Barcelona; 27. Castela; 28. Toledo; 29. Navarra; 30. Galiza.

Fólio 6 – 31. Macedônia; 32. Godos; 33. Castela; 34. Barcelona e Catalunha; 35. Aragão; 36. Leão; 37. Galiza; 38. Portugal; 39. Andaluzia. Armas de alguns senhores potentados. 1. Duque de Borgonha; 2. Duque de Normandia; 3. Duque de Quênia.
Fólio 6 – 31. Macedônia; 32. Godos; 33. Castela; 34. Barcelona e Catalunha; 35. Aragão; 36. Leão; 37. Galiza; 38. Portugal; 39. Andaluzia. Armas de alguns senhores potentados. 1. Duque de Borgonha; 2. Duque de Normandia; 3. Duque de Quênia.

Comentário:

Tal como as armas das doze tribos de Israel, dos Nove da Fama e dos antigos romanos (leiam-se as postagens antecedente e de 05/05), Francisco Coelho tirou este capítulo dos estudos do padre Antônio Soares de Albergaria (Códice BNP 1118, fl. 13), cuja fonte é o Blasón general y nobleza del universo (1489), de Pedro de Gracia Dei, rei de armas dos Reis Católicos, onde se vê e se lê o seguinte:

Fólio entre o XIV e o XV do Blasón general y nobleza del universo (1489), de Pedro de Gracia Dei.

Después estava, segund en este árbol parece, una águila prieta de dos cabeças coronada en campo blanco, por los dos Estados de la Iglesia. A la mano derecha, los frigios tenían un puerco blanco en campo verde y azul. Y los de Celicia un yelmo de oro sobre negro. Y los icitas unos rayos sobre blanco. Y los traces un hombre armado en blanco sobre el color de Mars. Y los italianos un haz y segur dorados sobre morado. Y los persas arco y carcax de oro sobre sangre. Y los de Babilonia traían una torre blanca en campo verde. Y los de Asia un lobo prieto sobre blanco. Y arriba de aqueste árbol, en la siniestra, tenían los amonios un cordero sobre verde. Los cartagineses un buey colorado sobre oro. Los coralos dos ruedas de oro en verde y azul. Los de Grecia una raposa de oro en sangre, con letra Ob nutricis memoriam ('Memoria de vevir'). Y también Roma un cavallo blanco sobre morado y una letra que dezía: Ob militiæ resplendorem ('Por el resplendor de la cavallería'). Y los etíopes un hombre entre dos serpientes en una sepultura sobre negro, dezía la letra: Esta es la pena del que contra su rey se levanta. Y los africanos de ocidente un perro blanco sobre morado. Y los de Libia, en oriente, una serpiente de oro en verde. Y embaxo del águila, una espera de oro sobre verde, que Alixandre traía. Y los godos tres sapos de oro sobre negro. Y después, veniendo en España, Castilla traía un castillo de oro con puertas azules sobre colorado. Barcelona con su Cataloña cinco bastones de sangre sobre oro y Aragón cinco cabeças negras de moros en blanco. Y León tenía un león morado sobre blanco. Y Galizia la torre blanca del espejo que Hércules hizo sobre sangre. Y Andaluzía dos colunas blancas en azul. Y Portogal una ciudad blanca en campo azul sobre la mar, hecha de ondas verdes doradas.

Antônio Rodrigues, rei de armas Portugal sob Dom Manuel I e Dom João III, traduziu esse livro para o português (Manuscrito BPMP M-FA-80, editado sob o título de Tratado geral de nobreza por Afonso de Dornelas em 1931). Como a tradução é literal demais e contém muitos barbarismos, depurei os seus erros e anotei-os entre colchetes:

Depois estava, segundo nesta árvol parece, ũa águia preta de duas cabeças coroada em campo branco, por os dous Estados da Igreja. Em a mão destra, tinham os frígios um porco branco em campo verde e azul. Os de Celícia [1], um elmo de ouro sobre negro. Os citas, uns raios sobre branco. Os traces, um homem armado em branco sobre a color vermelha. Os italianos, ũa gavela e ũa bisarma dourados sobre morado. Os pérsios, um arco e ũa aljava de ouro sobre sangue. Os de Babilônia, ũa torre branca em campo verde. Os de Ásia, um lobo preto sobre branco. E acima daqueste árvol, à sestra, tinham os omônios um cordeiro sobre verde. E os cartagineses, um boi colorado sobre ouro. Os coralos, duas rodas de ouro em verde e azul. E os de Grécia, ũa raposa de ouro com sangue, com letra Ob nutricis memoriam [2], quer dizer 'Memória de viver'. E também Roma, um cavalo branco sobre morado e ũa letra que dezia Ob militiæ resplendorem ('Por o resprandor da cavalaria'). Os etíopes, um homem antre duas serpentes em ũa sepultura sobre negro e dezia a letra: Esta é a pena do que contra seu rei se alevanta. E os africanos de ocidente, um cão branco sobre morado. E os de Líbia, em oriente, ũa serpente de ouro em verde. E embaixo da águia, um mundo de ouro sobre verde, que Alexandre trazia. E os godos, três sapos sobre negro. E depois Castela trazia um castelo de ouro com portas azuis sobre colorado. Barcelona com Catelônia, cinco bastões de sangue sobre ouro. Aragão, cinco cabeças negras de mouros em branco. Lião, um lião branco. Galiza, ũa torre branca com um espelho. (1)
[1] Cecilia; [2] Omitriçis memoria

Como eu disse no comentário sobre o prólogo do Tesouro, os autores compilavam, reescreviam, ampliavam ou reduziam os materiais em que se fundavam, a depender do público para o qual elaboravam armoriais ou tratados. Todavia, isso comportava um defeito: frequentemente, eles se acomodavam à autoridade das fontes, replicando um mundo imaginário ou pretérito. Por exemplo, no tempo de Gracia Dei, o número das palas de Aragão e Barcelona efetivamente variavam, mas no século XVII já se tinha fixado, tanto que Albergaria copia o Blasón à fl. 13 do seu caderno, mas à fl. 33, citando o cronista Jerónimo Zurita, pinta quatro palas.

Do mesmo modo, no Livro do Armeiro-Mor João do Cró formou um capítulo em grande medida fictício e anacrônico por ter tirado as armas dos príncipes cristãos e mouros do Armorial Wijnbergen, do fim do século XIII. Essa ficção e anacronismo avultam ainda mais aqui: dos 39 brasões, somente as armas de Granada, Castela e Leão (n.os 20, 33 e 36) são reais e estão corretas, mas não se entende por que Coelho dá outras ligeiramente divergentes (e errôneas) a esses dois reinos nos números 19 e 27. Talvez a necessidade de preencher os fólios com múltiplos de três.

Mais precisamente, as armas dos Estados da Igreja, Frígia, Cilícia, Cítia, Trácia, Itália, Pérsia, Babilônia, Ásia, Cartago, Grécia, Roma (n.º 15), Etiópia, África Ocidental e Oriental são imaginárias. E mesmo que não fossem propriamente reinos, certos lugares tiveram esses nomes em diferentes momentos da história ou ainda os têm, mas a Amônia e a Corália sequer existiram. Seja como for, Albergaria reproduz fielmente os ordenamentos de Gracia Dei. Em contrapartida, Coelho modifica algum pormenor aqui e ali.

Igualmente imaginárias são as armas da Andaluzia: as Colunas de Hércules eram, na verdade, a divisa do imperador Carlos V. Por outro lado, as armas de Valência, Maiorca, Córdova, Algarve, Biscaia, Barcelona, Toledo, Galiza e Aragão (n.º 35) estão numa categoria intermediária, porque não compunham as armas reais (3), mas eram amplamente divulgadas pela literatura heráldica. Por conseguinte, não cabe imputar acerto ou erro a Coelho. O próprio Albergaria fez vários apontamentos sobre as armas da Galiza no seu caderno: à fl. 13, dá a Torre de Hércules, que Gracia Dei brasona de prata em campo de vermelho; à fl. 26v, desenha e aponta que "as armas do reino de Galiza e de que hoje usa são um cálix com ũa hóstia em cima", o qual ladeiam oito cruzetas; à fl. 33v, pinta e anota de um lado "campo vermelho (outros, azul), custódia d'ouro, hóstia de prata" e do outro "campo azul, custódia d'ouro; cális". Pessoalmente, suspeito que Coelho teve conhecimento indireto do Armorial universel (1654, n.º 170), de Charles Segoing. Isso explicaria certas semelhanças e a tremenda divergência de alguns desses brasões no Tesouro (4).

Enfim, sobre o n.º 38, Albergaria (ibidem, fl. 59) diz que são as "armas antiquíssimas da província de Portugal" e brasona-as assim: "ũa cidade branca em campo azul sobre o mar de ondas verdes douradas". É claro que, ademais, romanceia:

Sobre o Douro foi povoado o castelo de Gaia e por aportarem aí mercadores e pescadores e concorrerem dentro do rio e estenderem suas redes doutra banda, se povoou outro lugar, que se chamou Porto, que agora é cidade mui principal, donde, ajuntando-se estes dous nomes, se chamou toda a terra Portugal. E a respeito desta cidade que lhe deu princípio, usou desta por insígnia.

Que Portus Cale, uma povoação junto à foz do Douro, atestada desde a conquista romana, deu nome a Portugal, mediante a forma Portucale, é bem sabido (5). O resto, no entanto, é fábula heráldica.

Notas:
(1) Além dos erros marcados pelos colchetes, as seguintes palavras são barbarismos: árvol (por árvore), color (por cor), colorado (por vermelho) e morado (por roxo)
(2) Note-se que o tradutor se equivoca ao final e deixa a tradução incompleta.
(3) O uso constante das armas reais impunha a necessidade de fixar o seu ordenamento. Com efeito, foi a evolução política da Espanha que fixou alguns brasões inventados na literatura heráldica, como o das Ilhas Baleares e o da Galiza.
(4) As armas de Córdova não se acham no caderno de Albergaria e o brocal de Navarra no Armorial universel realmente semelha um cordão com nós. Por outro lado, só no Tesouro se duplicam as cabeças das armas imaginárias do Algarve. Coelho seguramente nunca folheou aquele livro, mas é plausível que alguém lhe tenha descrito — por vezes de modo ambíguo — as armas dos reinos da Espanha.
(5) Que de Cale venha Gaia é discutível, porque supõe uma evolução incomum na nossa língua: *Cala > *Gala > *Gaa > *Gaia. Via de regra, duas vogais iguais sofreram crase, como em , de pala.

07/05/24

TESOURO DE NOBREZA (IV)

Armas dos Nove da Fama e insígnias dos romanos.

Do Tesouro de nobreza (1675):

Fólio 2 – Armas dos Nove da Fama. 1.º – Josué, Capitão do Povo de Deus; 2.º – Davi Rei; 3.º – Judas Macabeu (estes três foram hebreus); 4.º – Alexandre Magno; 5.º – Heitor; 6.º – Júlio César (estes três foram gentios); 7.º – Artus; 8.º – Carlos Magno; 9.º – Godrofede Bulhão (estes três foram cristãos). Armas e insígnias dos romanos. 1. Roma, lupa germanorum nutrix; 2. Rômulo: Ex necessitate; 3. Romana República: Ubi stetero, caput orbis erit.
Fólio 2 – Armas dos Nove da Fama. 1.º – Josué, Capitão do Povo de Deus; 2.º – Davi Rei; 3.º – Judas Macabeu (estes três foram hebreus); 4.º – Alexandre Magno; 5.º – Heitor; 6.º – Júlio César (estes três foram gentios); 7.º – Artus; 8.º – Carlos Magno; 9.º – Godrofede Bulhão (estes três foram cristãos). Armas e insígnias dos romanos. 1. Roma, lupa germanorum nutrix; 2. Rômulo: Ex necessitate; 3. Romana República: Ubi stetero, caput orbis erit.

Fólio 3 – Ob ferociam militum; 5. Triumphus non est sine sanguine; 6. Ob signum pacis; 7. Senatus Populusque Romanus; 8. Ob Imperii decus; 9. Ob animositate Romanorum; 10. Regere Imperio populos Romane memento. Armas de vários reinos. 1. Os dous Estados da Igreja; 2. Frígia; 4. Cilícia; 5. Cítia; 6. Trácia.
Fólio 3  Ob ferociam militum; 5. Triumphus non est sine sanguine; 6. Ob signum pacis; 7. Senatus Populusque Romanus; 8. Ob Imperii decus; 9. Ob animositatem Romanorum; 10. Regere Imperio populos, Romane, memento. Armas de vários reinos. 1. Os dous Estados da Igreja; 2. Frígia; 4. Cilícia; 5. Cítia; 6. Trácia.

Comentário:

Não tenho nada a acrescentar ao que eu disse a respeito dos Nove da Fama na postagem de 29/04/21. Mas quanto às insígnias dos romanos, Francisco Coelho tirou-as, tal como as armas das doze tribos de Israel (leia-se a postagem antecedente), dos estudos do padre Antônio Soares de Albergaria (Códice BNP 1118, fl. 6), cuja fonte é o Blasón general y nobleza del universo (1489), de Pedro de Gracia Dei, rei de armas dos Reis Católicos, onde se vê e se lê o seguinte:

Fólio entre o XII e o XIII do Blasón general y nobleza del universo (1489), de Pedro de Gracia Dei.

Las insignias de los de Roma
Para verificar que color sobre color y metal sobre metal no pueden estar, allende lo susodicho síguense las insinias de los romanos en el tiempo que prosperavan, en cuya memoria un noble varón romano, deste nombre Laurencio Manlio, mirando virtud, las hizo sacar y pintar en su casa, segund hoy parecen, donde yo las hize sacar, creyendo era servicio de Vuestra Alteza. Y conociendo, pues, su grandeza es presente en las patrias que señoreavan, en las cuales alegres vuestra clara fama reciben, serán recebidas sus armas como si sus personas en presencia llegasen al reino y palacio de Vuestra Real Majestad, en principio de lo cual estava un título que dezía Antiquorum insignia, que quiere dezir 'Estas son las insinias de los antigos', donde están coronados los presentes escudos en la manera siguiente. Al principio, una loba y un pito de oro, que le dava de comer, en campo verde y ella dava de mamar a dos niños blancos con pétase, que esto mismo rezava: Lupa germanorum nutrix quam picus [1] alit ('El pito da de comer a la loba que cría los hermanos'), que fueron Rómulo y Rémulo, cuando los hallaron en la silva, y después Rómulo alçó una haz de yerva y dezía: Romulus ex necessitate ('Rómulo por necesidad'). Numa Pompilio puso un escudo de oro en campo celeste, que cayó del cielo con una letra que dezía: Ubi stetero, caput orbis erit ('Donde yo estoviere, será cabeça del mundo'). Y después pusieron los romanos un minotauro de oro en campo celeste, con letra que dezía: Ob ferociam militum ('Por la ferocidad de los cavalleros'). Estava más una cota sangrienta en campo blanco y dezía: Triumphus non est sine sanguine ('El triunfo no es sin sangre'). Y después estava una puerca negra alanceada en campo de oro, cuya letra era Ob signum pacis ('Por el señal de la paz'), que ansí muera quien la quebrare. Y después un escudo colorado con cuatro letras de oro, que dizen: El Senado y Pueblo Romano, las cuales hoy son armas de Roma. Y después una águila negra en campo blanco y era la letra Ob Imperii decus ('O honra de Imperio'). Otro escudo con fuegos y un braço en medio con una espada, en campo de oro, por la grand animosidad de los romanos. Estava en el medio con dos coronas el escudo cesareano colorado, con el mundo de oro, manifestando su monarquía, con una letra que César por sí dezía: Regere imperio populos, Romane, memento, quiere dezir 'O romano, recuérdate que riges los pueblos por imperio', que este fue el primero emperador que hovo nel mundo.
[1] pies

Antônio Rodrigues, rei de armas Portugal sob Dom Manuel I e Dom João III, traduziu esse livro para o português (Manuscrito BPMP M-FA-80, editado sob o título de Tratado geral de nobreza por Afonso de Dornelas em 1931). Como a tradução é literal demais e contém muitos barbarismos, depurei os seus erros e anotei-os entre colchetes:

Para saber que cor sobre cor e metal sobre metal não podem estar, além do suso dito seguem-se as ensínias dos romãos no tempo que prosperaram, em cuja memória um homem barão, deste nome Laurêncio Mânlio, oulhando a vertude, as fez tirar e pintar em sua casa, segundo hoje parecem, donde eu as fiz tirar, crendo de ser serviço de Vossa Alteza. E conhecendo sua grandeza é presente nas pátrias que senhoreavam, nas quaes alegres vossa crara fama recebem e sejam recebidas suas armas, como se suas pessoas em presença [1] chegassem ao reino e paço [2] de Vossa Majestade, no princípio do qual estava um título que dezia Antiquorum insignia, quer dizer 'Estas são as insígnias dos antigos', donde estão coroados os escudos na maneira seguinte, a saber, ũa loba com um pito de ouro, que lhe dava de comer em um campo verde, dando de mamar a dous meninos brancos com um pétaso [3], que esto mesmo rezava: Lupa germanorum nutrix quam picus alit [4] ('O pito dá de comer [5] à loba que cria os dous irmãos'), que foram Rômulo e Rêmulo, quando foram achados na silva, e depois Rômulo alevantou um feixe de erva e dezia: Romulus ex necessitate ('Rômulo de necessidade'). Numa Pompílio pôs um escudo de ouro no campo celestre, que caiu do ceo com ũa letra que dezia: Ubi stetero, caput orbis erit ('Onde eu estiver, será cabeça do mundo') [6]. Depois poseram os romãos um minotauro de ouro em campo celeste, com letra que dezia: Ob ferociam militum [7] ('Pela ferocidá dos cavaleiros'). E estava mais ũa cota sangrentada em campo branco e dezia: Triumphus non est sine sanguine, quer dizer 'O triunfo não é sem sangue'. E depois está ũa porca negra alanceada em campo d'ouro, cuja letra era Ob signum pacis ('Por sinal da paz'), que assi morre quem a quebrantar. E depois um escudo colorado com quatro letras de ouro, que dizem: O Senado [8] e o Povo Romão, as quaes hoje são armas de Roma. E depois ũa águia negra em campo branco e era a letra Ob Imperii decus ('Ó honra do Empério'). Outro escudo com fogos e um braço no meo com ũa espada em campo de ouro, por a grande animosidade dos romãos. Estava no meo com duas coroas o escudo cesareano colorado, com o mundo de ouro, manifestando sua monarquia, com ũa letra que César por si dezia: Regere imperio populos, Romane, memento [9], quer dizer 'Ó romão, alembra-te que reges os povos por império' [10]. Este foi o primeiro emperador que houve no mundo. (1)
[1] com suas pessoas em supito; [2] pacificos; [3] betafe; [4] prealit; [5] mamar; [6] Ubi stetero, caput orbis ero, dando a entender 'Serás cabeça do mundo'; [7] E ferociam militam; [8] Sanado; [9] Regere Emperio pupullos Romanae memento[10] 'Ó Roma, alembra-te que reguas os povos por império'

Lorenzo di Mattia Manei foi um burguês de Roma cujo entusiasmo pelo passado antigo da cidade o levou a mudar o seu nome, reivindicando descendência da gens Manlia, a colecionar objetos daquela idade e, desde 1476, a reconstruir o seu paço, sito então à Piazza Giudea, hoje Via del Portico d'Ottavia, embelezando-o com tais objetos, também com imitações. Considerando a itinerância do ofício de armas no século XV, é plenamente verossímil que Gracia Dei tenha copiado aí ou daí esse conjunto de brasões. Seja como for, a pintura original perdeu-se, afinal o paço se acha em estado lastimoso.

Não obstante, convém salientar o caráter imaginário de qualquer brasão atribuído aos antigos romanos, já que a heráldica surgiu no século XII, embora alguns desses se inspirem em várias fontes históricas e literárias: a loba que aleitou Rômulo e Remo, o fratricídio "por necessidade" ou o ancil que caiu do céu após as súplicas de Numa Pompílio aos deuses contra uma peste. Além disso, "tu regere imperio populos, Romane, memento" é um verso da Eneida (6, 851), de Virgílio, e as letras SPQR de vermelho em campo de ouro tornaram-se de fato as armas de Roma.

Nota:
(1) Além dos erros marcados pelos colchetes, as seguintes palavras são barbarismos: suso (por sobre), ferocidá (por ferocidade) e colorado (por vermelho).

05/05/24

TESOURO DE NOBREZA (III)

Armas das doze tribos de Israel.

Do Tesouro de nobreza (1675):

Fólio 1 – Armas dos Doze Tribos de Israel. Filhos de Jacó (Gênesis, cap. 49). Nesta forma, iam em modo de peleja: Filho 1.º – Rubem; 2.º – Simeon; 3.º – Judá; 12.º – Zabulom; 11.º – Issacar; 5.º – Dão; 4.º – Gade; 8.º – Aser; 9.º – Neftalim; 10.º – Benjamim; 6.º – Efraim; 7.º – Manassés.
Fólio 1 – Armas dos Doze Tribos de Israel. Filhos de Jacó (Gênesis, cap. 49). Nesta forma, iam em modo de peleja: Filho 1.º – Rubem; 2.º – Simeon; 3.º – Judá; 12.º – Zabulom; 11.º – Issacar; 5.º – Dão; 4.º – Gade; 8.º – Aser; 9.º – Neftalim; 10.º – Benjamim; 6.º – Efraim; 7.º – Manassés.

Comentário:

Francisco Coelho elaborou esta seção do Tesouro a partir dos estudos do padre Antônio Soares de Albergaria, como se vê e se lê à folha 5 dos seus apontamentos (Códice 1118, conservado na Biblioteca Nacional de Portugal; sobre isso, leia-se mais nas postagens antecedente e de 01/05). À sua vez, esse clérigo copiou a gravura que ilustra o nono capítulo do Blasón general y nobleza del universo (1489), onde Pedro de Gracia Dei, rei de armas dos Reis Católicos, também descreve essas armas, como se apreciará a seguir:

Fólio entre o X e o XI do Blasón general y nobleza del universo (1489), de Pedro de Gracia Dei.
Fólio entre o X e o XI do Blasón general y nobleza del universo (1489), de Pedro de Gracia Dei.

Las insignias que llevavan los Doze Tribus de Israel
Después que los hijos de Jacob se partieron de Egipto por mandado de Dios, para los volver a la tierra de promissión, que parte término con Jerusalem, llegaron al desierto, donde comieron corenta años de la maná del cielo y allí hizieron el Arca del Testamento, en que pusieron las tablas de los diez mandamientos de la ley que el Señor havía dado a Moisé en monte Sinaí. E todos por cuento halláronse seiscientos y tres mil hombres de pelea, de veinte años arriba, sin los niños, mujeres y viejos y sin el tribu de Judá, que mandó Dios no se contase, que era escogido para el sacerdocio y este servía y llevaba el arca. Y ordenáronse los once tribus en doze partes, porque José era ya fallecido y socedieron en su logar Manasés y Efraín, sus hijos, y pusieron el arca en el medio y hiziéronse de tres en tres cuatro partes, con las armas y figuras, colores y metales que parecen en esfuerço de las bendiciones que les dio su padre Jacob.
Delante el Arca del Testamento, a la parte de oriente, iva Judá con setenta y cuatro mil y seiscientos hombres de pelea y era su capitán Nasón y las insignias de su pendón eran un león de oro en campo celeste, segund la bendición de su padre, que le dixo: "Por ti se holgarán tus hermanos y te harán reverencia y será la tu mano sobre la cerviz de tus inimigos. Vencerá el león del tribu de Judá, de la raíz de Jessé. Yo te bendigo en nombre del que nos hizo".
Zabulón: A la mano derecha de Judá iva Zabulón y llevava en su batalla cincuenta y siete mil y cuatrocientos hombres y era su capitán Elías y sus armas eran una nao prieta en campo blanco, sobre ondas de buena fortuna, porque su padre le dixo: "Serás guía de las carreras dudosas y juntarás las gentes trabajadas y las pasarás en seguro hasta Sidón".
Izacar: A la parte siniestra de Judá, contra el meridiano, iva Izacar con cincuenta y cuatro mil y cuatrocientos varones y era su capitán Netanel y sus armas el sol y la luna de metales en campo azul y morado y un asno negro en campo blanco, porque Jacob le dixo: "Serás regidor de gentes y sabio sobre todos tus hermanos y sofrilos has con tu prudencia, segund el asno sufre la carga".
Rubén: A la parte de ocidente, tras el arca, iva el hijo mayor de Jacob con la postrera batalla, en que llevava corenta y seis mil y quinientos hombres de los mejores del exército y era su capitán Eliçur, hijo de Cedeur, y eran sus armas un hombre, por el que havía de redemir el linaje humanal, sinificando la bendición de su padre, que le dixo: "Porque no consentiste la injuria de Lía, serás leal y celoso, ninguna duda poniendo en la ley que el Señor nos dio".
Gaad: A la parte derecha de Rubén, iva Gaad y era su batalla de corenta mil y seiscientos hombres d'armas y capitán Eliaçafe y sus insinias gente armada en un escudo blanco y prieto, porque le dixo Jacob: "Serás fuerte capitán de gentes nel pueblo del Señor y vencerás los que fueren contra su ley".
Simón: A la parte siniestra de Rubén, iva Simón con cincuenta y nueve mil y trezientos de pelea y su capitán Salumiel y sus armas un castillo colorado en campo de oro, porque le dixo su padre: "Ansí como combatiste y tomaste el castillo de Salem, aunque yo dello no fue sabidor, ansí saberás pelear, vevir y morir sobre ley del Señor, sin que ninguno te lo diga".
Dam: A la parte de setentrión, iva Dam con sesenta y dos mil y sietecientos combatientes y era su capitán Ahihazer y sus armas una águila de oro en campo negro, por la bendición que su padre le echó cuando le dixo: "Serás juez del pueblo como todos los tribus y serás como culuebra sobre carrera y como serpiente en el camino, que saben sotilmente morder el cavallo y enseñorearse del cavallero, y crecerás sobre los hombres como el águila en el vuelo sobre todas las aves".
Asser: A la mano derecha de Dam, iva Asser con corenta mil y quinientos hombres, era su capitán Payel y sus armas una oliva verde en campo blanco, porque le fue dicho: "Serás abundoso en todas las cosas, como la oliva entre sus hijos".
Neutalín iva a la siniestra de Dam con cincuenta y tres mil y cuatrocientos hombres, era su capitán Ahirac y sus armas una cierva de oro sobre morado, porque le dixo Jacob: "Serás vitorioso y alegre como cierva con sus amores, que no teme por ellos morir, como tu harás sobre tu ley".
Efraín iva a la parte del mediodía con corenta mil y quinientos hombres y era capitán Elisamet y llevava sobre oro y plata un toro colorado, que fue llamado su padre José buey fértil sobre todos sus hermanos.
Benjamín iva a la diestra de Efraín con treinta y cinco mil y cuatrocientos y era su capitán Abidán y sus armas un lobo negro sobre diversos colores, que le fue dicho en diversos modos: "Vencerás y partirás con tus hermanos como el lobo que a la mañana toma la caça y en la noche parte el despojo".
Manassés iva a la parte siniestra de Efraín, su hermano menor, con treinta y dos mil doscientos hombres, era su capitán Galiel y sus armas unicornio blanco en campo verde, porque havía de ser uno y singular en el universo.

Sabe-se que esse livro, dedicado a Dom João II, circulou em Portugal. Afonso de Dornelas achou uma tradução para o português na Biblioteca Pública Municipal do Porto (Manuscrito M-FA-80) e editou-a em 1931 sob o título de Tratado geral de nobreza, cuja autoria atribuiu a Antônio Rodrigues, rei de armas Portugal sob Dom Manuel I e Dom João III. Na verdade, esse texto parece mais um rascunho, porque a tradução é tão literal e cheia de barbarismos que amiúde só se faz inteligível com o cotejo do original. Segue a do excerto, depurada dos erros, que anotei entre colchetes:

Depois que os filhos de Jacó se partiram de Egito por mandado de Deus, pera os volver à terra de promissão, que parte com Jerusalém, chegaram ao deserto, donde comeram corenta anos da maná do ceo e ali fizeram a Arca do Testamento, na qual puseram [1] as távoas dos dez mandamentos da lei que o Senhor havia dado a Mousém em o monte Sinai. E todos contados se acharam seiscentos e três mil homens de peleja, de vinte anos arriba, sem os meninos, molheres e velhos e sem o tríbu de Judá, que mandou Deus que não se contasse, porque era escolheito pera o sacerdócio e este servia e levava a arca. E ordenaram-se os onze [2] tríbus em doze partes, porque José era já falecido e socederam em seu lugar Manassés e Efraim, seus filhos, e puseram a arca no meo e fizeram-se de três em três quatro partes, com armas e figuras, colores e metaes que parecem em esforço das benções [3] que lhe deu seu pai Jacó.
Diante a Arca do Testamento, à parte do oriente, ia Judá com setenta e cinco mil e seiscentos homens de peleja e era seu capitão Naaçom e as ensínias de seu pendom eram um leão de ouro em campo celeste, segundo a benção de seu pai, que lhe disse: "Por ti se folgarão teus irmãos e te farão reverência e será tua mão sobre a cerviz de teus imigos. Vencerá o lião da tríbu de Judá, da raiz de Jessé. Eu te benzo em nome do que [4] nos fez".
À mão direita de Judá ia Zabulom e levava em sua batalha cinquenta e sete mil e quatrocentos homens, era seu capitão Elias e suas armas eram ũa nao preta [5] em campo branco sobre ondas de boa fortuna, porque seu pai lhe disse: "Serás guia das estradas duvidosas e ajuntarás as gentes trabalhadas e passá-las-ás a seguro atá Sidom".
À parte sestra de Judá, contra o merediano, ia Izacar com cinquenta e quatro mil homens varões e seu capitão era Netanel e suas armas o sol e a lua de metaes ouro e prata em campo azul e morado e um asno negro em campo branco, porque Jacó lhe disse: "Serás regedor das gentes e sábio sobre todos teus irmãos e sofrir-lhe-ás com tua prudência, segundo o asno sufre a carga".
À parte do ocidente [6], trás a arca, vai o filho mor de Jacó com a postreira batalha, na qual levava corenta e seis mil e quinhentos homens, os milhores do exército, e era seu capitão Eliçur, filho de Cedear, eram suas armas um homem por que havia de redemir a linhagem humanal, senificando a benção de seu pai, que disse: "Porque não consentiste [7] a injúria de Lia [8], serás leal e zeloso e nenhũa dúvida poendo na lei que o Senhor nos deu".
À parte direita de Rubem, ia Gad e era sua batalha de corenta mil e seiscentos homens d'armas e capitão Eliaçafe e suas insínias gente armada em um escudo branco e preto, porque lhe disse Jacó: "Serás forte capitão de gentes no póvoo do Senhor e vencerás os que forem contra sua lei".
À parte sestra de Rubem, ia Simeom com cinquenta e nove mil e trezentos [9] homens de peleja e seu capitão Salumiel e suas armas um castelo colorado em campo de ouro, porque lhe disse seu pai: "Assi como combateste e tomastes o castelo de Salém, ainda que eu delo não fui sabedor, assi saberás pelejar e morrer e viver sobre a lei do Senhor, sem que nenhum to diga".
À parte de setentrião [10], ia Dão [11] com setenta e dous mil e setecentos combatentes e era seu capitão Aiazer e suas armas ũa águia de ouro em campo negro, por a benção que seu pai lhe deitou quando lhe disse: "Serás juiz do póvoo como todos os tríbus e serás como cobra sobre a carreira e como a serpente no caminho, que sabem sotilmente morder o cavalo e senhorear-se do cavaleiro e crecerás sobre os homens como a águia no voo [12] sobre as aves".
À mão direita de Dão [13], ia Aser com corenta mil e quinhentos homens e seu capitão era Paiel e suas armas ũa oliveira verde em campo branco, porque lhe foi dito: "Serás avondoso em todas as cousas, como a oliveira antre seus filhos".
Neftalim [14] ia à sestra de Dão [13] com cinquenta e três mil e quatrocentos homens, era seu capitão Airac e suas armas ũa cerva de ouro sobre morado, porque lhe disse seu pai: "Serás vitorioso e alegre como cerva com seus amores, que não teme por eles morrer e esto farás tu sobre tua lei".
Efraim ia à parte do meo-dia com corenta mil e quinhentos e era seu capitão Elisamé e levava sobre ouro e prata um touro colorado, que foi chamado seu pai José boi fértil sobre todos seus irmãos.
Benjamim [14] ia à destra d'Efraim com trinta e cinco mil e quatrocentos homens, era seu capitão Abidaé e suas armas um lobo negro sobre diversas cores, que a ele foi dito: "Vencerás em diversos modos e partirás com teus irmãos como o lobo cada menhã toma a caça e de noite parte o despolho".
Manassés ia à parte sestra de Efraim com trinta e dous mil [15] homens e seu capitão Galiel e suas armas alicórnio branco em campo verde, porque havia de ser singular no universo. (1)
[1] da quall fasera; [2] doze; [3] envenções; [4] E venceu nome que; [5] de prata; [6] tridente; [7] sentiste; [8] d'Elias; [9] três; [10] sentriom; [11] Davi; [12] nova; [13] Etalim; [14] Eijmamim; [15] 37 e dozentos

Portanto, Gracia Dei combina o 49.º capítulo do livro do Gênesis, que dá o testamento profético de Jacó, e o 10.º daquele dos Números, que narra a partida dos israelitas do Sinai, criando, então, uma ficção. Ora, tendo a heráldica surgido no século XII, é óbvio que essas e quaisquer armas das doze tribos de Israel são imaginárias. Como razoei nas ditas postagens, um armorial não só coligia uma série de brasões, mas também refletia a ordem do mundo. Neste sentido, a evocação da Bíblia e a leitura cavalheiresca que se fazia dela dava a entender que essa ordem era muito antiga e sagrada. Assim, projetava-se um passado longo e estável que se estendia até os viventes, interpelando-os a guardar e legar os valores recebidos.

Notas:
(1) Além dos erros marcados pelos colchetes, as seguintes palavras são barbarismos: color (por cor), morado (por roxo), sofrir e sufre (por sofrer e sofre), trás (por depois), postreiro (por derradeiro) e carreira (por estrada).
(2) Os nomes hebraicos menos usuais podem variar grandemente de uma tradução para outra. Na Vulgata, a partida do Sinai é narrada assim: "
Elevatum est primum vexillum castrorum filiorum Judæ per turmas suas, quorum princeps erat Naasson filius Aminadab; et super turmam tribus filiorum Issachar fuit princeps Nathanael filius Suar; et super turmam tribus Zabulon erat princeps Eliab filius Helon. Depositumque est habitaculum, quod portantes egressi sunt filii Gerson et Merari. Profectum est vexillum castrorum filiorum Ruben per turmas suas, et super turbam suam princeps erat Elisur filius Sedeur. Super turmam autem tribus filiorum Simeon princeps fuit Salamiel filius Surisaddai. Porro super turmam tribus filiorum Gad erat princeps Eliasaph filius Deuel. Profectique sunt et Caathitæ portantes sanctuarium. Et erectum est habitaculum, antequam venirent. Elevatum est vexillum castrorum filiorum Ephraim per turmas suas, in quorum exercitu princeps erat Elisama filius Ammiud. Et super turmam tribus filiorum Manasse princeps fuit Gamaliel filius Phadassur; et super turmam tribus filiorum Benjamin erat dux Abidan filius Gedeonis. Novissime elevatum est vexillum castrorum filiorum Dan per turmas suas, in quorum exercitu princeps fuit Ahiezer filius Ammisaddai. Et super turmam tribus filiorum Aser erat princeps Phegiel filius Ochran; et super turmam tribus filiorum Nephthali princeps fuit Ahira filius Enan. Hæ sunt profectiones filiorum Israel per turmas suas, quando egrediebantur".