A Bielorrússia é a única das antigas repúblicas constitutivas que após a dissolução da União Soviética não usa da bandeira que assumiu após a queda da monarquia.
Desde o século XI os eslavos orientais chamaram-se coletivamente Rusĭ, substantivo feminino do qual derivam os adjetivos rusinŭ, o seu etnônimo individual, e rusĭskŭ, que qualificava a sua terra (Rusĭskaja zemlja) e a sua língua (rusĭskŭ językŭ), entre outras coisas. Durante toda a Idade Moderna, esses fatos permaneceram estáveis, já que as vicissitudes históricas pouco os atingiram.
Bandeira da Bielorrússia. |
Com efeito, duas latinizações dos referidos vocábulos propiciaram aos europeus ocidentais distinguir esses povos segundo o domínio sob o qual viviam: de rusinŭ fez-se ruthenus, donde Ruthenia; de Rusĭ fez-se Russia, donde russus. Assim, tendo Ivã o Terrível sido coroado gosudar', car' i velikij knjaz' vseja Rusi ('soberano, tsar e grão-duque de toda a Rússia') em 1547, entendeu-se cada vez mais por Rússia o estado governado pelos Rjurikoviči e depois pelos Romanovy, enquanto ruteno referia aos eslavos de rito bizantino na Polônia-Lituânia.
Após a terceira partilha e aniquilação do estado polaco-lituano em 1795, a maioria dos rutenos ficou englobada na Rússia, salvo os habitantes dos territórios mais ocidentais, que ficaram dentro da monarquia dos Habsburgos, onde seguiram dando-se esse nome (rusyny). Por outro lado, na Rússia tornou-se ideologia oficial a afirmação de um só povo russo, composto de três membros: grandes russos, pequenos russos e russos brancos.
As locuções Grande Rússia e Pequena Rússia têm origem eclesiástica: Megálē Rhōssía e Mikrà Rhōssía em grego. Para o Patriarcado de Constantinopla, era grande a Rússia abrangida pela metrópole de Kiev, cuja sé foi transferida para Vladimir em 1299 e para Moscou em 1325, e era pequena a abrangida pela metrópole de Halyč, ereta em 1303. Quanto à locução Rússia Branca, acho provável dever-se à vinculação dos pontos cardeais a certas cores entre os tártaros, que dominavam as estepes e por muito tempo avassalaram a Rússia (Rusĭ). O branco aponta, precisamente, o oeste, o que faz todo o sentido da perspectiva tártara.
Tudo se complicou, porém, com o desenvolvimento dos nacionalismos. Após a Insurreição de Janeiro de 1863, a russificação tornou-se opressiva em todo o território que pertencera à Polônia-Lituânia, negando-se até mesmo terem os pequenos russos e russos brancos idiomas próprios. Os rutenos que outrora habitaram o reino da Polônia eludiram a identidade pequena russa adotando o termo Ukraina, donde Ucrânia. Os rutenos que outrora habitaram o grão-ducado da Lituânia consolidaram, porém, a locução Rússia Branca, que se diz Belorussija em russo, donde Bielorrússia (1).
De fato, o nacionalismo bielorusso atravessou vários percalços frustrantes em comparação aos congêneres do entorno. Como entre os lituanos, a polonização reduziu a língua bielorussa ao campesinato, mas à diferença dos bielorrussos, o idioma dos lituanos não se confunde com nenhum dos seus vizinhos e isso alavancou a sua identidade nacional. Como entre os ucranianos, os bielorrussos padeciam sob a opressão russificante, mas à diferença deles uma parte dos ucranianos estava dentro da Áustria-Hungria, onde a tradição literária da língua rutena não se perdera e lastreou a construção de uma identidade nacional.
Cartão postal com a bandeira e as armas da República Popular Bielorrussa (imagem disponível na Wikimedia Commons). |
Portanto, quando a Revolução de Fevereiro derrubou a monarquia, simplesmente não havia apoio bastante para levar a cabo a independência da Bielorrússia. Na verdade, da pequena nobreza para cima os católicos tendiam a se identificar com a Polônia e os ortodoxos, com a Rússia. Daí que a República Popular Bielorrussa sequer tenha conseguido cumprir um dos requisitos fundamentais do estado, que é o exercício da soberania em determinado território.
Edifício do Secretariado Popular da República Popular Bielorrussa, entre 18 e 22/02/1918 (imagem disponível na Wikimedia Commons). |
A República Popular Bielorrussa foi proclamada pelo Comitê Executivo do Congresso de Toda a Bielorrússia na sua segunda carta constitucional aos povos da Bielorrússia, em março de 1918, sob ocupação alemã. Esse congresso foi realizado pelo Grande Conselho Bielorrusso e violentamente dispersado pelos bolcheviques em dezembro de 1917, após sucessivas formações de comitês e celebrações de congressos desde a Revolução de Fevereiro, no intuito de unir os bielorrussos para pleitear autonomia ao governo provisório russo.
Armas nacionais no verso da capa do passaporte bielorrusso, entre 1918 e 1920 (imagem disponível na Wikimedia Commons). |
Foi nesse período, mais precisamente em março de 1917, que o Comitê Nacional adotou uma bandeira de três faixas horizontais, a de cima e a de baixo brancas e a do meio vermelha, justificando essas cores pela sua prevalência na arte popular bielorrussa. Na verdade, são igualmente os esmaltes do Pahonia, o cavaleiro galopante de prata em campo de vermelho que tinha sido as armas grão-ducais da Lituânia. Sem dúvida, ele representava, como ainda representa, os lituanos, mas tendo os bielorrussos feito parte desse grão-ducado por séculos, nele também viam um símbolo seu, tanto que o dito comitê o oficializou na mesma resolução.
Acabada a Primeira Guerra Mundial, ao se retirarem as forças alemãs, o Exército Vermelho marchou sobre a Bielorrússia, tomando Minsk em dezembro. O Conselho da República Popular Bielorrussa fugira para Vilnius e acabou instalando-se em Hrodna antes do fim do ano, mas os alemães entregaram essas cidades aos polacos em abril de 1919. Ante a repressão polaca, o conselho partiu para o exílio. Em março de 1921, a Polônia e a Rússia fizeram a paz, dividindo a Bielorrússia ao meio.
Portanto, a Bielorrússia é a única das antigas repúblicas constitutivas que após a dissolução da União Soviética não usa da bandeira que assumiu após a queda da monarquia. Ou melhor, a única que conserva, essencialmente, a bandeira da república soviética. Uma e a outra diferem apenas pela supressão dos símbolos comunistas e por ligeiras alterações do padrão têxtil.
Símbolos da República Socialista Soviética Bielorrussa (cartaz de I.M. Galubovič, imagem disponível em Belaruski Plakat). |
Inicialmente, os bolcheviques julgavam o nacionalismo uma ideologia burguesa, daí que as repúblicas soviéticas tivessem bandeiras vermelhas com as letras iniciais do nome oficial em amarelo no cantão, mas ao fim da Segunda Guerra Mundial esse juízo estava mudado. Assim, a partir de 1947 o Soviete Supremo permitiu que as repúblicas constitutivas adotassem bandeiras mais distintivas, preservando-se o campo vermelho e o emblema da bandeira estatal. A República Socialista Soviética Bielorrussa fê-lo em dezembro de 1951, acrescentando uma faixa verde em baixo e uma listra vermelha com o desenho de um bordado tradicional branco junto à tralha.
Emblema da Bielorrússia (imagem disponível no site do presidente da República). |
A permanência dos símbolos soviéticos (o emblema foi também adaptado, trocando-se a foice e o martelo pela silhueta do mapa da república) decorre da mais forte russificação dentre as antigas repúblicas constitutivas, a ponto de ter tornado o uso do idioma bielorrusso minoritário no próprio país. Aljaksandar Lukašenka canalizou isso nas eleições de 1994, elegendo-se presidente, e no referendo de 1995, aprovando a igualdade da língua russa à bielorrussa (que evolveu para superioridade), a bandeira e o emblema estatais vigentes, a integração econômica com a Rússia e a atribuição do poder de dissolver o parlamento. A oposição parlamentar questionou a legalidade desse referendo e a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) observou irregularidades.
Selo bielorrusso com o Pahonia, 1992 (imagem disponível na Wikimedia Commons). |
Até então e desde setembro de 1991 o branco-vermelho-branco e o Pahonia tinham novamente sido a bandeira e as armas nacionais da Bielorrússia. Na verdade, para os opositores de Lukašenka nunca deixaram de sê-lo, ao passo que o regime as detrata, enfatizando o seu uso pelos bielorrussos que colaboraram com a ocupação alemã de 1941 a 1944. De fato, em todo o Reichkommissariat Ostland os alemães foram recebidos com a esperança de que restaurariam os estados independentes que o Exército Vermelho conquistara, porém isso nunca aconteceu.
Marcha pela Liberdade, 16/08/2020 (imagem disponível no periódico Naša Niva). |
A lei vigente sobre os símbolos estatais da Bielorrússia foi passada em 2004. Surpreende o quão extensa é a listagem dos lugares onde se deve hastear a bandeira. Ora, se o estado precisa esmiuçar o uso de certo símbolo, pode-se presumir que faltam a naturalização e espontaneidade que em geral caracterizam essa prática social.
(1) Em setembro de 1991, o Soviete Supremo passou a lei que renomeia o estado em russo, prescrevendo o seu nome em bielorrusso, Belarus', e que o mesmo se fizesse noutras línguas. Assim o faz a ONU, embora isso só tenha sentido nas línguas eslavas orientais, dado que nelas persiste o vocábulo Rus' e o nome da Rússia vem do grego: Rossija. Como já dito, a latinização de Rus' é Russia, de modo que Belarus' se adaptaria como *Belarrússia. Como isso não se fez, é razoável que se continue dizendo Bielorrússia, afinal a referida lei não oferece alternativa para o gentílico: bielorrusso.
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