06/10/23

BANDEIRAS DE CORES HERÁLDICAS: UCRÂNIA

Uma das operações básicas do nacionalismo é buscar símbolos num glorioso passado.

Tenho dito neste blog que não há nações antes da Revolução Francesa. No entanto, é preciso reconhecer que na Europa ocidental as progressivas unificações e centralizações prepararam a evolução das ideias políticas que engendrou o estado-nação. Em contrapartida, durante a Idade Moderna a Europa oriental foi disputada por quatro potências poliétnicas: a monarquia dos Habsburgos, a Polônia-Lituânia, a Rússia e o Império Otomano. Após o Congresso de Viena (1814-15), até a Polônia acabou repartida pela Prússia, Áustria e Rússia.

Bandeira da Ucrânia.
Bandeira da Ucrânia.

Depois de a Primeira Guerra Mundial ter derrubado todos esses impérios, os povos que se libertaram deles tiveram de buscar referentes vagos ou longínquos para construírem as suas identidades nacionais. Entre eles, estavam os ucranianos, que até pouco tempo antes nem se chamavam assim. Sem dúvida, trata-se de um assunto sensível, especialmente porque esse país está em guerra contra um invasor estrangeiro, mas é fato histórico que a formação final do território ucraniano data de 1954. Antes dessa data e de leste a oeste, tomando a conquista do canato de Astracã em 1556 por baliza inicial:

  • A Slobožanščyna pertenceu desde então à Rússia;
  • a costa marítima pertenceu ao Império Otomano:
    • entre o Dnipro e o Bug e os portos até 1774;
    • o canato da Crimeia (sob suserania otomana até o dito ano de 1774) até 1783;
    • o Yedysan até 1792;
    • a Bessarábia (Budžak) até 1812.
  • o resto do território pertenceu à Polônia-Lituânia (ao grão-ducado da Lituânia até 1569 e ao reino da Polônia desde então):
    • a Ucrânia da margem esquerda com Kiev até 1667;
    • a Zaporižžia (em condomínio com a Rússia desde o dito ano de 1667) até 1686.

Todos esses territórios passaram ao domínio russo, exceto:

  • a Bucovina setentrional, que pertenceu à Moldávia até 1774, depois à Áustria até 1918, depois à Romênia até 1944;
  • Transcarpátia, que pertenceu ao reino da Hungria até 1918, depois à Tchecoslováquia de 1920 a 1938 e de novo à Hungria de 1939 a 1945.

No fim do século XVIII, a Polônia-Lituânia sofreu três partilhas, que abrangeram as parcelas seguintes do território ucraniano hodierno:

  • A Galícia foi cedida aos Habsburgos em 1772;
  • a Ucrânia da margem direita e a Podólia, à Rússia em 1793;
  • a Volínia, à Rússia em 1795.

Tombados os impérios, no período interbélico houve uma República Popular Ucraniana de janeiro de 1918 a novembro de 1920 e uma República Popular Ucraniana Ocidental de novembro de 1918 a julho de 1919, as quais chegaram a ocupar a maior parte do território ucraniano. Todavia, prevaleceram a República da Polônia e a República Soviética Federativa Socialista Russa, à qual se alinhava a República Soviética Socialista Ucraniana. Em março de 1921, esses estados fizeram a paz, traçando uma fronteira que deixou a Volínia ocidental e a Galícia do lado polaco. Finalmente, após a Segunda Guerra Mundial a União Soviética delimitou a Ucrânia de hoje, inclusive transferindo-lhe a Crimeia em 1954, que a Rússia lhe arrebatou em 2014.

Da perspectiva étnica, tudo era muito mais complexo, porque havia várias regiões do leste europeu onde a massa da população — o campesinato — era nativa e a aristocracia era ou da nacionalidade dominante — a germânica na Prússia e na monarquia dos Habsburgos (e a húngara na Coroa de Santo Estêvão), a polaca na Polônia-Lituânia e a russa na Rússia — ou se tinha aculturado, além de coexistirem numerosas comunidades judias. Por exemplo, segundo o censo austríaco de 1910, 86% dos moradores de Lviv falavam polonês e apenas 11% ruteno e, quanto à religião, 51% eram católicos, 28% judeus e 19% greco-católicos, embora essa cidade encabeçasse uma região, a Galícia oriental, onde predominavam os rutenos. Em suma, a conjuntura do pós-guerra, em que a generalidade da população se identifica com a nacionalidade de cada estado, fala a sua língua nacional e professa a religião majoritária nele, deve-se a uma série de políticas opressoras e genocidas, de todos contra todos. (1)

O leão ruteno no Armorial de l'Europe et de la Toison d'or (Bibliothèque de l'Arsenal, ms. 4790, fol. 120r).
O leão ruteno no Armorial de l'Europe et de la Toison d'or (Bibliothèque de l'Arsenal, ms. 4790, fol. 120r).

O termo ruthenus é uma latinização de rusinŭ, que é como os eslavos orientais se chamavam individualmente, derivado de Rusĭ, o seu etnônimo coletivo, donde também russo e Rússia. Depois, denominaram-se rutenos (Rusyny em ucraniano, Rusini em polonês, Ruthenen em alemão) todos os eslavos orientais que viviam dentro da Polônia-Lituânia e, seguidamente, sob a monarquia dos Habsburgos e nos seus estados sucessores, inclusive a segunda república polaca. A sua língua chegou a ser a principal da chancelaria grão-ducal nos séculos XV e XVI. Como a Transcarpátia foi anexada em 1945, ainda há aí quem se diga Rusyn. (2)

Ao mesmo tempo, à medida que a Rússia se expandia para o oeste, as identidades confundiam-se, porque em cada vernáculo os adjetivos derivados de Rusĭ (rusinŭ e rusĭskŭ) designavam o próprio país, o próprio povo, a própria língua. Como ao império não convinha fomentar diferenças, antes o contrário, promoveu cada vez mais a locução Pequena Rússia, de origem bizantina, para referir às terras dos cossacos rutenos. Estes, em contrapartida, começaram a usar o vocábulo Ukraina para nomear o seu país.

Reverso de uma moeda de Vladimir o Grande, príncipe de Kiev (imagem disponível no portal Numista).
Reverso de uma moeda de Vladimir o Grande, príncipe de Kiev (imagem disponível no portal Numista).

A identidade nacional ucraniana com os seus símbolos formou-se de vários aspectos dessa complexíssima história. As cores azul e amarela foram adotadas pelo Supremo Conselho Ruteno, que se constituiu em Lviv em maio de 1848, no bojo da Primavera dos Povos, ao tempo que declarava de onde as tirara: das armas reais da Rutênia (Rus' em ruteno, latinizado então como Rusia), o único estado soberano que os rutenos/ucranianos tiveram antes do século XX, abrangeu precisamente a Galícia e a Volínia e durou de 1253 a 1349. Tais armas são de azul com um leão de ouro e estão atestadas desde o reinado de Jorge I (1301-08).

Armas da Ucrânia (imagem disponível no portal Ukraine Now).
Armas da Ucrânia (imagem disponível no portal Ukraine Now).

Tanto a República Popular Ucraniana como a República Popular Ucraniana Ocidental adotaram a bandeira de duas faixas horizontais, azul e amarela, mas enquanto esta recobrou o leão ruteno por armas, aquela retrocedeu a Vladimir o Grande, o primeiro príncipe cristão de Kiev (980-1015), cujo sinal pessoal veio ser conhecido como "tridente" (tryzub em ucraniano). Deram-se-lhe, então, as cores nacionais: de azul com um tridente de ouro.

Pavilhão naval da Ucrânia.
Pavilhão naval da Ucrânia.

A bandeira e o brasão da Ucrânia estão descritos no artigo 20 da Constituição de 1996. Há, ainda, um pavilhão naval, adotado por decreto presidencial em 2006, que consiste numa cruz azul com orla branca em campo dessa mesma cor e a bandeira nacional no cantão.

A bandeira ucraniana é, na sua origem e forma, tipicamente austro-húngara, tanto que, ressalvadas as proporções e tonalidades, é igual à da Baixa Áustria (então arquiducado, hoje estado da república austríaca) e da Dalmácia (então reino, hoje região histórica da Croácia). Era praticamente um padrão austro-húngaro, total ou parcialmente conservado pelos países sucessores, a adoção de bandeiras de faixas horizontais com cores heráldicas. Curiosamente, nenhuma das bandeiras da Galícia e Lodoméria foi acolhida pelo nacionalismo ruteno/ucraniano: nem a bicolor azul e vermelha (1809-1849), nem a tricolor azul, vermelha e amarela (até 1890), tampouco a bicolor vermelha e branca (até 1918); fora, afinal, uma das pautas do Supremo Conselho Ruteno em 1848 dividir esse reino, em cuja porção ocidental predominavam os polacos. Efetivamente, o azul-amarelo foi uma escolha de sucesso, pois que recebido pelo conjunto dos ucranianos, pôde distingui-los, como ainda os distingue, de todos os seus vizinhos.

Notas:
(1) Em diferentes momentos, o estado polaco oprimiu os rutenos, o estado ucraniano oprimiu os polacos e o estado russo/soviético oprimiu ambos os povos, rutenos/ucranianos e polacos, perpetrando todos crimes horrendos. O próprio estado ucraniano ora praticou a ucranização dos seus cidadãos, ora a russificação.
(2) Em português e nas demais línguas ocidentais, é preferível denominá-los russinos, fazendo de ruteno um etnônimo histórico. Também há russinos na Polônia, na Eslováquia e na Sérvia. De fato, é mais fácil distinguir os antigos rutenos — hoje bielorrussos, ucranianos e russinos — dos polacos e eslovacos que dos russos, pois ao oeste há duas diferenças marcantes: a língua, pois os vernáculos eslavos orientais contrastam com as línguas eslavas ocidentais, e a religião, pois os eslavos ocidentais são católicos romanos, ao passo que os orientais são ou greco-católicos ou ortodoxos.

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