28/06/21

A CONCESSÃO DE BRASÃO EM PORTUGAL E NO BRASIL

A heráldica luso-brasileira funcionava, sim, com certo conceito de brasão "de família", mas o mercado de bugigangas armoriadas subverteu o sistema.

Como tenho discorrido ao longo deste curto blog, a quase milenária heráldica atravessou algumas fases, seguindo as mudanças das relações sociais às quais servia. As diferentes viradas do sistema semiótico permitem discernir quatro:

  • Heráldica primitiva: Desde o começo do século XII até o começo do seguinte, aproximadamente. Ao contrário do que se apregoa, o brasão não surgiu da necessidade de os guerreiros se distinguirem em meio à batalha, mas dos vexilos senhoriais, cujos emblemas logo foram estendidos ao resto do armamento do cavaleiro, especialmente o escudo. Como desse período não há tratados ou outra literatura técnica, pelo estudo dos testemunhos supõe-se que o uso das armas era coletivo: traziam-nas o senhor e os seus vassalos nas guerras e nos torneios.
  • Heráldica clássica: No século XIII, o escudo armoriado foi tomado cada vez mais por objeto abstrato que servia de identificador pessoal. Isso favoreceu a expansão da heráldica do seu âmbito primitivo, feudal e militar, para toda a sociedade. De fato, é o período em que qualquer um podia assumir um brasão para si, independentemente do estrato social.
  • Heráldica moderna: No século XV, o brasão gentilício foi tido cada vez mais por marca de nobreza e honra. Esse entendimento foi difundido pelos arautos, que se tornaram oficiais de armas, e consolidado pela literatura técnica ao longo de toda a Idade Moderna. A mudança coincidiu com outra social: os nobres foram deixando de ser o braço militar do príncipe para se converterem em burocratas ao serviço da Coroa.
  • Heráldica contemporânea: Depois da Revolução Francesa, a nobreza foi cada vez mais reduzida a um status meramente honorário e as repúblicas sequer a reconhecem. Isso reverteu, de certa forma, a heráldica ao período clássico: hoje, na maior parte do Ocidente, qualquer um pode assumir um brasão para si. Contudo, à diferença do que acontecia na Idade Média, atualmente o uso de armas pessoais é insignificante, restrito aos cleros de certas igrejas, nomeadamente a católica, e à própria comunidade de pessoas que se interessam pelo assunto. Em compensação, cresceu o uso de armas por pessoas jurídicas de direito público.

Particularmente em Portugal, e depois também no Brasil, a heráldica gentilícia destacava-se, como tenho dito, pelo controle estatal, algo mais incomum do que parece. Com efeito, em poucos lugares, como a Inglaterra, a Escócia ou a Saboia, alcançou um grau tão alto. Os marcos desse processo são:

  • Carta de 21 de maio de 1476, pela qual Dom Afonso V fez do rei de armas Portugal o oficial de armas principal;
  • Livro do Armeiro-Mor, feito em 1509 por mandado de Dom Manuel I para servir de armorial privado ao rei;
  • Regimento de nobreza dos reis de armas, promulgado por Dom Manuel I em 1512, pelo qual se assentaram as bases para a instituição da autoridade em matéria de heráldica gentilícia até o fim da monarquia: o Juízo e Cartório da Nobreza;
  • Sala dos Brasões no Paço de Sintra, construída entre 1515 e 1520 para servir de armorial monumental;
  • as Ordenações manuelinas, promulgadas em 1521, nas quais se incorporou a legislação heráldica, conservada no essencial pelas Ordenações filipinas, de 1603, as quais vigeram em Portugal até 1867 e no Brasil até 1916;
  • Livro da nobreza e perfeição das armas, feito entre 1512 e 1541 por mandado de Dom Manuel I e Dom João III para servir de armorial oficial de luxo;
  • o Tesouro da nobreza de Portugal, feito a partir de 1783 para servir de armorial oficial no lugar do Livro antigo dos reis de armas;
  • as Cartas de 23 de novembro e 30 de dezembro de 1822 e de 24 de maio de 1823, pelas quais Dom Pedro I criou e proveu respectivamente os ofícios de rei de armas do Império, passavante do Império e arauto do Império, os quais passaram a superintender o Juízo e Cartório da Nobreza do Brasil, aplicando a legislação heráldica portuguesa, confirmada por Dom Pedro II pelo Decreto n.º 499, de 31 de janeiro de 1847.

Quanto a essa norma, a única em matéria heráldica expedida pelo estado brasileiro, vale a pena conhecê-la na íntegra:

DECRETO N.º 499, DE 31 DE JANEIRO DE 1847
Providencia sobre a concessão de brasões d'armas e sobre a expedição dos despachos, tanto para a nomeação dos oficiais mecânicos da Casa Imperial e provimento de todos os ofícios dela, cuja apresentação, na forma das leis em vigor, pertença ainda ao Mordomo-Mor, como para o levantamento d'armas imperiais na frente de alguma morada.
Convindo que sobre o modo de se concederem brasões d'armas e de se expedirem os despachos, tanto para a nomeação dos oficiais mecânicos da minha Imperial Casa e provimento de todos os ofícios dela, cuja apresentação pertença ainda ao meu Mordomo-Mor, como para a permissão de se levantarem armas imperiais na frente de alguma morada, se estabeleçam regras fixas e invariáveis, que estejam em harmonia com a Constituição do Império, com as leis existentes e com os regimentos e antiquíssimos estilos, hei por bem, tendo ouvido a seção do Conselho d'Estado dos Negócios do Império, ordenar que a respeito de cada um dos indicados objetos se observe d'ora em diante o seguinte:
1.º O Rei d'Armas não concederá jamais o uso de brasão d'armas sem precedência da justificação de nobreza, em que haja a necessária e concludente prova exigida pela Provisão de 3 de julho de 1807, a qual impõe aos pretendentes a obrigação de produzirem, além de testemunhas, documentos autênticos que provem legalmente pertencerem eles às famílias com quem querem entroncar-se, devendo proceder-se a esta justificação pelo Juízo dos Feitos da Fazenda, com audiência do Procurador dos Feitos e recurso para a Relação.
2.º Somente pela Mordomia-Mor serão feitos e expedidos, nos termos do Alvará de 3 de junho de 1572, todos os despachos relativos à nomeação dos oficiais mecânicos da minha Imperial Casa e à de todos os ofícios dela, cuja apresentação, na forma das leis em vigor, pertença ainda ao meu Mordomo-Mor.
3.º Serão igualmente expedidos pela mesma Mordomia-Mor, na conformidade do Aviso de 17 de maio de 1828, todos os despachos sobre requerimentos que tiverem por objeto a permissão de levantar as armas imperiais na frente de alguma morada.
Joaquim Marcelino de Brito, do meu Conselho, Ministro e Secretário d'Estado dos Negócios do Império, assim o tenha entendido e faça executar. 
Palácio do Rio de Janeiro, em 31 de janeiro de 1847; 26.º da Independência e do Império.
Com a rubrica de Sua Majestade, o Imperador.
JOAQUIM MARCELINO DE BRITO

A citada provisão, passada em 3 de julho de 1807, publicada no Aditamento geral das leis, resoluções, avisos etc., de Manuel Borges Carneiro (1817, p. 207), dispunha o seguinte:

Provisão despachada em resolução de consulta. Ocorrendo ao abuso com que se passam os brasões d'armas, misturando-se pessoas plebeias ou estranhas com as principais famílias do Reino, as quais os tinham adquirido por serviços notáveis e feitos assinalados, não sejam mais julgados os mesmos brasões sem que os justificantes produzam, além das testemunhas, documentos autênticos que provem legalmente que eles pertencem às famílias com quem querem entroncar-se. Registada no Desembargo do Paço.

A matéria foi, ainda, incluída por Agostinho Marques Perdigão Malheiro no seu Manual do Procurador dos Feitos da Fazenda Nacional, de 1873:

Seção XV
Justificação de nobreza para concessão de brasões de armas.
§ 261. Para concessão do uso de brasão de armas é indispensável que preceda justificação de nobreza no Juízo dos Feitos, com audiência do Procurador da Fazenda.
§ 262. Deve-se provar concludentemente por documentos e testemunhas que pertencem os justificantes às famílias com quem querem entroncar-se.
§ 263. Da sentença há recurso para a Relação.

Como argui na postagem de 13/01, não se acha nessa legislação nenhuma disposição taxativa que vedasse o uso de brasão a quem não era nobre. Tal era desnecessário porque se naturalizara o entendimento de que a armaria distinguia a nobreza, como o prova a Provisão de 3 de julho de 1807: ao se afirmar que as "principais famílias do Reino" tinham adquirido os seus brasões "por serviços notáveis e feitos assinalados", ignorava-se que os mais antigos tinham sido assumidos livremente nos períodos primitivo e clássico da heráldica. Na verdade, era como se esses períodos nunca tivessem existido e desde tempos remotos o brasão sempre tivesse sido uma mercê régia.

Outro aspecto destacável da mesma provisão é a acusação do "abuso com que se passam os brasões d'armas". Isso acabou fazendo constar no seio da legislação o que estava patente na prática: diferentemente do que ocorreu noutros lugares, onde se procurou em vão combater a fraude heráldica, em Portugal e no Brasil o controle estatal funcionou bem porque o nível baixo de exigência dispensava o recurso à trapaça. Ora, dos processos de justificação e das cartas de brasão depreende-se claramente a ênfase em dois critérios: primeiro, viver "à lei da nobreza"; segundo, descender de avós cujos sobrenomes (ou apelidos, no português europeu) constassem do armorial oficial.

Brasão concedido em 1775 pelo rei Dom José I a António José de Afonseca Mimoso.
"Um escudo esquartelado: no primeiro e quarto quartel, as armas dos Fonsecas, que são em campo de ouro cinco estrelas sanguinhas de cinco raios em sautor; no segundo, as dos Guerras, em campo verde uma torre de prata, saindo fogo dos alicerces; orla de ouro com esta letra de negro: AVE MARIA, GRATIA PLENA; no terceiro, as dos Pereiras, em campo vermelho uma cruz de prata florida e vazia do campo; elmo de prata aberto, guarnecido de ouro; paquife dos metais e cores de armas; timbre: o dos Fonsecas, que é um touro vermelho, armado de ouro, com uma estrela do mesmo metal na espádua; e, por diferença, uma brica azul com um farpão de prata"Brasão concedido em 1775 pelo rei Dom José I a António José de Afonseca Mimoso, natural da vila de Linhares, "que pela sentença de justificação de sua nobreza, a ela junta, proferida pelo meu Desembargador-Corregedor do Cível da Corte e Casa da Suplicação, o Doutor João Tavares de Abreu, subscrita por Manuel Luís Tavares Coutinho, Escrivão do dito juízo, e pelos documentos a ela também juntos, se mostrava que ele é filho legítimo de Gregório de Afonseca Mimoso e de sua mulher, Helena Caetana Pereira, moradores na dita vila, neto pela parte paterna de António de Afonseca Mimoso, capitão que foi da dita vila, e de sua mulher, Isabel Mimosa da Guerra, e pela materna de Manuel de Paiva e de sua mulher, Maria Pereira Saraiva. Os quais seus pais e avós foram pessoas muito nobres, legítimos descendentes das esclarecidas famílias dos apelidos de Afonsecas ou Fonsecas, como ordinariamente se diz, dos Guerras e Pereiras, as quais famílias são neste Reino de fidalgos de linhagem, cota de armas e de solar conhecido, e como tais se trataram, com cavalos, armas e criados, à lei da mesma nobreza, servindo no político e no militar os lugares e postos mais distintos do governo e que só servem as pessoas da maior nobreza e qualidade de todas as terras" (carta de brasão disponível na Biblioteca Nacional de Portugal).

Não faz muito tempo, o Instagram mostrou-me algumas propagandas nas postagens patrocinadas: o comércio de brasões gentilícios nos mais variados suportes. Trocando em miúdos, alguém vende objetos com brasões pintados, esculpidos, bordados, estampados ou impressos, tirados ou mesmo copiados dos armoriais, a partir do pressuposto de que identificam "famílias". Ora, é inegável que essa noção efetivamente existiu na heráldica gentilícia luso-brasileira: nos processos de justificação e nas cartas de brasão fala-se em "brasões de armas das famílias de seus ascendentes", mas o sistema não funcionava como pressupõe o mercado de quinquilharias armoriadas. Ninguém ostentava as armas dos Silvas ou as dos Oliveiras simplesmente por ter o sobrenome Silva ou Oliveira. Depois de cumprir o trâmite citado mais acima e pagar uma série de taxas, o rei de armas ordenava um brasão composto, partido ou esquartelado, com uma diferença, normalmente uma brica.

Na verdade, são as armas direitas que se ofertam hoje em dia, como se o sobrenome da linhagem à qual pertencem identificasse uma única família. Como se isso não fosse de todo inverossímil, como coloquei na postagem anterior, é agravado e lança suspeita de dolo sobre os negociantes o fato de que toda a legislação e literatura heráldicas sempre puseram de forma muito clara que a tais armas faz jus somente o chefe da linhagem, isto é, o primogênito. Contudo, à medida que as linhas varonis se foram extinguindo, os próprios nobres titulados de juro e herdade começaram a trazer também brasões compostos. Por conseguinte, a maioria dessas armas direitas não têm titulares nem pretendentes há muito tempo, de modo que se tornaram obsoletas, subsistindo apenas nas concessões de armas diferençadas.

Em suma, enquanto foram regulados pelo estado, os brasões gentilícios portugueses e brasileiros sempre foram pessoais, por mais que compostos teoricamente por armas de linhagens, na prática por armas "de sobrenomes", para dizê-lo de forma mais justa, segundo me parece, do que armas "de família".

Nas próximas postagens, procurarei desenvolver o tema desta analisando a prática. Para tanto, consultei o fundo digital do Cartório da Nobreza de Portugal, disponível no portal do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, escolhi e transcrevi quatro processos com as respectivas cartas de brasão. Cada um me pareceu ilustrativo de uma situação exemplar:

Eu gostaria muito de dar exemplos brasileiros de justificações de nobreza, mas à diferença do que aconteceu ao Cartório da Nobreza de Portugal, cujo fundo foi transferido para a Torre do Tombo, que em grande medida o digitalizou e disponibilizou em linha, o Cartório da Nobreza do Brasil sofreu maior incúria e o pouco do seu fundo que não se extraviou dispersou-se: o que estava no Ministério dos Negócios do Império foi depositado no Arquivo Nacional e o que estava sob a guarda de Ernesto Aleixo Boulanger, o derradeiro escrivão, foi adquirido pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). No momento, somente certo número de modelos de brasões, conservado no Arquivo Nacional, está digitalizado e disponível na Internet.

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