16/03/21

A TODOS OS REIS, DUQUES, CONDES...

O gênero discursivo tratado de armaria focava o ordenamento do brasão e destinava-se à formação dos arautos e à instrução dos nobres.


Do Tratado Prinsault (1444):

A tous rois, ducs, comtes, princes, barons, chevaliers, escuyers et toutes manières de gens, nobles et autres, à qui appartient savoir dire, déterminer et avoir la connoissance de plusieurs escus, armes et blasons, en ce petit livret seront traitées et déclarées aucunes différences de certains escus, pour et afin de connoistre clairement quand on verra ou regardera aucuns blasons ou autres armes, s'il y a faute ou non, car après ce que lesdits escus seront descrits, nommés, insculpés ou figurés, l'on pourra redresser et mettre au vrai toutes manières de blasons et se faute y est, aucunement aperçue. Et sera procédé par les chapitres qui s'ensuivent.

Le premier chapitre fera mention de ceux qui premier trouvèrent armes.

Le second monstrera et devisera les choses de quoi l'on fait armes.

Le tiers dira quants métals, quantes couleurs et quantes pannes il y a en armoirie et comment se doivent blasonner, et s'y devisera au vrai chascun escu en forme droite.

Le quart déclarera chascun métal, panne et couleur.

Le quint enseignera que c'est que chief, pal, bande, faisse, chevron et giron, et comment se doivent blasonner en un mot.

Fólio 2r do códice Français 5936, conservado na Bibliothèque nationale de France, em que se vê Clément Prinsault doando o seu tratado de armaria ao menino Jaime, filho de Jaime d'Armagnac, duque de Nemours.
Fólio 2r do códice Français 5936, conservado na Bibliothèque nationale de France, em que se vê Clément Prinsault doando o seu tratado de armaria ao menino Jaime, filho de Jaime d'Armagnac, duque de Nemours.

A todos os reis, duques, condes, príncipes, barões, cavaleiros, escudeiros e todas as classes de pessoas, nobres e outras, a quem pertence saber falar, definir e ter o conhecimento de vários escudos, armas e brasões, neste pequeno livrinho serão tratadas e esclarecidas algumas diferenças de certos escudos, para e a fim de conhecer claramente quando se virem ou se olharem alguns brasões ou outras armas, se houver precisão ou não, porquanto depois de esses escudos serem descritos, nomeados, insculpidos ou figurados, poder-se-ão corrigir e averiguar todas as formas de brasões e se preciso for, caso não seja de modo algum apercebida. Proceder-se-á pelos capítulos que se seguem.

O primeiro capítulo fará menção daqueles que primeiro inventaram as armas.

O segundo mostrará e distinguirá as coisas de que se fazem as armas.

O terceiro dirá quantos metais, quantas cores e quantos forros há na armaria e como se devem brasonar, e distinguir-se-á verdadeiramente cada escudo de forma correta.

O quarto esclarecerá cada metal, forro e cor.

O quinto ensinará o que são chefe, pala, banda, faixa, asna e girão, e como se devem brasonar numa só sentença.

Fólio 1r do códice Français 14357, conservado na Bibliothèque nationale de France, em que se vê o rei Carlos VIII rodeado pelas armas dos grandes feudos da França.
Fólio 1r do códice Français 14357, conservado na Bibliothèque nationale de France, em que se vê o rei Carlos VIII rodeado pelas armas dos grandes feudos da França.

Comentário:

Em meados do século XV, um escuyer (écuyer no francês moderno) ainda era um escudeiro: um aprendiz e ajudante de cavaleiro. Pouco tempo depois, evoluiu para o grau mais baixo da nobreza, assim como o fidalgo de cota de armas em Portugal. Em ambos os casos, tomou-se um apetrecho armoriado da cavalaria — o escudo e a cota — para assinalar a fidalguia do sujeito. Menos de cem anos antes, dizia Bártolo de Sassoferrato no Tractatus de insigniis et armis: "Quidam arma seu insignia sua propria auctoritate assumunt sibi, et istis an liceat videndum est; et puto quod liceat" (1). Vê-se, pois, que mesmo se cingindo à técnica do brasão, o prólogo do Tratado Prinsault testemunha que a heráldica se tornara a dimensão estética da cavalaria e, dessa forma, começava a servir para distinguir os nobres. Esse fenômeno linguístico não é o único indício desses fatos.

Com efeito, é muito eloquente que o autor principie o seu texto endereçando-o aos príncipes e senhores, com o cuidado de lhes especificar os títulos. Ainda que depois abra o rol a "todas as classes de pessoas, nobres e outras", a sentença seguinte deixa claro que não refere a quaisquer pessoas, mas especificamente "a quem pertence saber falar, definir e ter o conhecimento de vários escudos, armas e brasões". Isso quer dizer que dos reis, duques, condes, barões, cavaleiros e escudeiros esse conhecimento era próprio, esperável, normal.

Além disso, o texto é confirmado pelo contexto. Como expus na postagem anterior, o título do tratado deve-se a uma dedicatória que antecede a cópia contida no códice Français 5936, conservado na Bibliothèque nationale de France:

Ci commence certain traité du blason d'armes, composé et donné à Jacques, mon seigneur, fils de mon seigneur, le duc de Nemours, comte de la Marche, par Clément Prinsault, très obéissant à mon dit seigneur, le duc, et très humble serviteur de très révérend père en Dieu, mon seigneur de Castres, oncle dudit Jacques, mon seigneur. (2)

A doação é ilustrada no fólio 2r desse códice: ajoelhado, Prinsault segura o livro diante do menino Jaime, que descansa dentro de um berço, embrulhado num pano com as armas da Casa de Bourbon, cuja herdeira era Leonor de Bourbon, sua mãe (3). A iluminura mostra que essas obras se destinavam não só à formação dos próprios oficiais de armas, como o Tratado em forma de questionário e as suas refundições, mas também à instrução dos nobres.

Há, ainda, outro indício, este visual: a cópia contida no códice Français 14357, também conservado na Bibliothèque nationale de France, traz uma iluminura do rei Carlos VIII rodeado pelas armas dos grandes feudos da França (4). Tal trabalho demonstra que a história dessa cópia está de alguma maneira ligada ao rei: ou lhe pertenceu, ou lhe foi dedicada ou foi produzida para celebrar a sua aliança com o papa Inocêncio VIII, que apoiava a pretensão francesa ao reino de Nápoles e cujas armas estão iluminadas no verso do fólio. Seja como for, o ponto é o consumo dessa literatura técnica pelos detentores do poder.

Fólio 1v do códice BnF Fr. 14357, em que se veem as armas do papa Inocêncio VIII e as da rainha Ana da Bretanha.
Fólio 1v do códice BnF Fr. 14357, em que se veem as armas do papa Inocêncio VIII e as da rainha Ana da Bretanha.

Quanto ao sumário, tanto a cópia que estou editando e traduzindo, a do códice 3711, conservado na Bibliothèque Mazarine, como a do BnF Fr. 14357 repetem o defeito de listar apenas cinco capítulos, quando há doze. Um sumário completo pode ser lido na cópia do códice Français 1280, mais um conservado na Bibliothèque nationale de France. Em francês:

Em português:

A diferença em relação ao De insigniis et armis é notável. Em primeiro lugar, nada de direito heráldico. No tempo de Bártolo, isso era uma demanda nova da sociedade, à qual ele atendeu magistralmente a partir dos institutos do direito romano. À medida que o ofício de armaria se estabelecia, foi deixando de ser um assunto de interesse geral para passar à alçada daqueles que mais tarde se intitulariam juízes da nobreza, ou seja, os próprios oficiais de armas. Depois, já não se fazia necessário dar conta das superfícies mais usuais que podiam servir de campo à reprodução das armas, porque o escudo se tornara o campo por antonomásia, como o provam os exemplos dados ao longo do tratado, todos na forma do escudo comum então, o chamado francês antigo. Por outro lado, a necessidade de codificar o sistema levou o gênero tratado de armaria a focar o ordenamento do brasão. Afinal, só um sistema codificado dava sentido a instituições cujo fito era controlá-lo: os colégios de armas, o do reino de Portugal conhecido como Cartório da Nobreza.

Notas:
(1) "Alguns assumem armas ou insígnias por iniciativa própria. Cabe ver se lhes é permitido. Penso que sim." (vide postagem de 11/01)
(2) "Aqui começa certo tratado do brasão de armas, composto e dado a Jaime, meu senhor, filho de meu senhor, o duque de Nemours, conde da Marcha, por Clément Prinsault, obedientíssimo a meu dito senhor, o duque, e humilíssimo servo do reverendíssimo padre em Deus, meu senhor de Castres, tio do dito Jaime, meu senhor."
(3) O menino Jaime não sobreviveu ao primeiro ano de vida (c. 1465). Seu pai era Jaime de Armagnac, duque de Nemours, e seu tio, a quem Prinsault servia, era João de Armagnac, bispo de Castres. Sua mãe era a herdeira do ramo Bourbon-Marcha da Casa de Bourbon.
(4) A partir do canto superior esquerdo da página: Bretanha, Delfinado, França, Orleans, Bourbon, Borgonha, Normandia, Anjou, Angoulême, Vandoma, Foix, Armagnac, Toulouse, Champanha, Artois, Nevers, Flandres, Dunois (mas as armas são as de Evreux), Nemours, Guiena, Berry e Alençon.

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