19/12/23

BANDEIRAS PACIFICADORAS: MONTENEGRO

O nacionalismo é uma ideologia mutante: progride e regride no relato histórico segundo a conveniência do momento.

Segundo o censo de 2011, apenas 45% da população de Montenegro se declara montenegrina, mas se se somarem os que se dizem sérvios, bósnios, muçulmanos, croatas e iugoslavos, essa porcentagem sobe para 86,7%. Isso acontece porque de todos os povos da antiga Iugoslávia o montenegrino é aquele que menos se diferença do sérvio, o sócio majoritário desse estado tanto sob monarquia como sob o socialismo.

Bandeira de Montenegro.
Bandeira de Montenegro.

Com efeito, os eslovenos e macedônios distinguem-se pelas suas línguas e os bósnios, croatas e sérvios, embora falem — de uma perspectiva estritamente linguística — o mesmo idioma, contrapõem-se pelas suas religiões, que os levaram a elaborar três padrões para esse idioma: o croata, que se escreve no alfabeto latino; o bósnio, que se escrevia no arábico, hoje também no latino; o sérvio, no cirílico. A parcela da população de Montenegro que chama montenegrina à sua língua é ainda menor: 37%.

Assim, o elemento mais distintivo de Montenegro é o seu próprio território, pois enquanto a Sérvia estava sob domínio otomano (como estado vassalo desde 1830), desde 1516 até 1696 os montenegrinos viveram livres sob o principado do seu bispo, quem seguiu governando o país até 1852. Nesse ano Daniel II renunciou à dignidade eclesiástica e em 1858 derrotou os turcos.

Bandeira do príncipe Daniel (conservada no Museu Nacional de Montenegro; imagem disponível em Grbovi, zastave i himne u Crnoj Gori, de Jovan B. Markuš, 2007).
Bandeira estatal durante o principado de Daniel (conservada no Museu Nacional de Montenegro; imagem disponível em Grbovi, zastave i himne u Crnoj Gori, de Jovan B. Markuš, 2007).

Foi também o príncipe Daniel quem assumiu pela primeira vez em 1858 uma bandeira de caráter estatal. Era vermelha e tinha as duas figuras presentes nos selos episcopais havia muito tempo — a águia dicéfala e o leopardo aleonado —, aquela desde fins do século XV e este desde meados do XVIII, e um escudo com o monograma principesco sobre o peito da águia.

Bandeira de Montenegro, 1905-1918 (conservada no Museu Nacional de Montenegro; imagem disponível em Grbovi, zastave i himne u Crnoj Gori, de Jovan B. Markuš, 2007).
Bandeira de Montenegro, 1905-1918 (conservada no Museu Nacional de Montenegro; imagem disponível em Grbovi, zastave i himne u Crnoj Gori, de Jovan B. Markuš, 2007).

Ao mesmo tempo e até 1878, consta o uso da tricolor eslava a modo de bandeira nacional, depois cada vez mais o da tricolor sérvia. Como o próprio estado sérvio era pequeno e estava em construção, parece que se entendiam as cidadanias de um principado e do outro como coisas diferentes da nação sérvia, a qual reconheciam maior que esses estados. Daí que a primeira constituição, em 1905, tenha estabelecido que o vermelho, o azul e o branco ("crvena, plavetna i bijela") são as cores nacionais ("narodne boje"; art. 39).

Bandeiras da Iugoslávia no Flags of maritime nations (1943-45).
Bandeiras da Iugoslávia no Flags of maritime nations (1943-45).

Em 1910, o príncipe Nicolau, que sucedera a Daniel em 1860, tomou o título de rei, mas em 1916 fugiu do país, ocupado então pela Áustria-Hungria. Ao fim da Grande Guerra, uma assembleia nacional em Podgorica o depôs e uniu Montenegro à Sérvia. Alguns dias depois, constituiu-se o Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos, renomeado Iugoslávia em 1929. Embora a tricolor vermelha, azul e branca ainda fosse a bandeira do povo sérvio, o estado monárquico iugoslavo promovia apenas a sua própria tricolor: azul, branca e vermelha.

Selos postais iugoslavos de 1980 com as bandeiras estatal e das repúblicas federadas.
Selos postais iugoslavos de 1980 com as bandeiras estatal e das repúblicas federadas.

Ao fim da Segunda Guerra Mundial, o Partido Comunista da Iugoslávia, que encabeçara a resistência contra a ocupação do Eixo, instaurou uma república federativa socialista, mas ao contrário dos bolcheviques em 1917, que julgavam o nacionalismo uma ideologia burguesa, em 1945 o socialismo já não impunha a destituição dos símbolos nacionais, ao menos a bandeira. Preservou-se, pois, a tricolor azul, branca e vermelha e para exprimir o ideal comunista sobrepôs-se uma estrela vermelha com um perfil amarelo. Como nesse período Montenegro era uma das repúblicas federadas, a Constituição de 1946 restaurou a tricolor vermelha, azul e branca com a mesma estrela sobreposta.

Sem a estrela, a dualidade do azul-branco-vermelho iugoslavo e do vermelho-azul-branco sérvio/montenegrino sobreviveu à queda do regime em 1990 e à guerra que se seguiu em meio à desintegração da Iugoslávia, já que Slobodan Milošević, então presidente da Sérvia, sustentou o projeto federativo com Montenegro até a sua renúncia e subsequente prisão por crimes contra a humanidade em 2001. Em 2003, a República Federal da Iugoslávia deu lugar, então, à União Estatal da Sérvia e Montenegro, ainda sob a tricolor azul, branca e vermelha, mas essa derradeira tentativa durou apenas três anos: Montenegro separou-se e adotou uma constituição nova, cujo artigo quarto confirmou a bandeira já em uso desde 2004, estabelecida por lei naquele ano.

Cartão alusivo ao mandato de Milo Đukanović, ex-primeiro-ministro e ex-presidente de Montenegro, detrás de quem se veem a bandeira iugoslava e a montenegrina no período de 1993 a 2004.
Cartão alusivo ao mandato de Milo Đukanović, ex-primeiro-ministro e ex-presidente de Montenegro, detrás de quem se veem a bandeira iugoslava e a montenegrina no período de 1993 a 2004.

Na verdade, desde 1993 os montenegrinos procuraram diferençar a sua bandeira da sérvia, as quais durante o período socialista tinham sido iguais. Assim, na lei desse ano sobre o brasão e a bandeira o Parlamento de Montenegro não só retirou a estrela comunista, mas também mudou a tonalidade do azul para azul-celeste e a proporção para 1:3. Como isso parecesse insuficiente ante a perspectiva de se restaurar a independência, a bandeira estatal do principado inspirou a hodierna, ainda que nem mesmo a águia tenha escapado ao distanciamento da identidade sérvia: até então de prata ou branca, fez-se de ouro ou amarela.

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