Em tese, qualquer brasão pode ser reproduzido como uma bandeira.
Uma bandeira heráldica é a singela translação de certas armas, entendidas em sentido estrito, isto é, apenas o escudo, para um pedaço de pano, tenha a forma que tiver, o qual lhe há de servir, então, de campo. Em tese, qualquer brasão pode ser transformado em bandeira e assim se praticava durante os períodos primitivo e clássico da armaria (do século XII a meados do XV). É por isso que até Dom João II (falecido em 1495) a bandeira real portuguesa era igual às armas reais.
Apesar de várias cidades europeias usarem bandeiras de armas (outra denominação delas), como Amsterdã, Barcelona, Hamburgo, Londres, Marselha, Milão ou Moscou, hoje somente três países desse continente se identificam com essa espécie vexilar: a Áustria, a Albânia e Malta.
Bandeira da Áustria. |
As armas nacionais austríacas pertenceram primitivamente à Casa de Babenberg, que governou a Marca Oriental (1) do Sacro Império desde 976, elevada a ducado pelo imperador Frederico Barba-Ruiva em 1156. Em 1246, quando a linhagem dos Babenberge se extinguiu, a própria dignidade imperial estava enfraquecida pela luta com o papado e quatro anos depois ficou vaga por longo tempo: o Grande Interregno. Durante esse período, em que a Casa dos Hohenstaufen também se extinguiu, Otocar, margrave da Morávia e depois rei da Boêmia, ocupou a Áustria, mas foi derrotado por Rodolfo de Habsburgo em 1276, quem fora eleito imperador três anos antes.
O condado de Habsburgo era um pequeno senhorio no ducado da Suábia, hoje território do cantão suíço da Argóvia. Quando coroado rei dos romanos, Rodolfo era também conde de Kyburgo e landgrave da Alta Alsácia, ainda assim um modesto poderio. Tendo ele doado o ducado austríaco a seus filhos, compreende-se que estes tenham preterido as armas dos Habsburgos — de ouro com um leão de vermelho, depois armado, lampassado e coroado de azul — e assumido as dos Babenberge — de vermelho com uma faixa de prata —, como já se observa nos selos de Alberto I.
Após dois séculos de disputa com o papado e duas décadas de conflito interno, a eleição do conde Rodolfo visava precisamente a evitar que a dignidade imperial voltasse a ser detida por uma grande casa e, de fato, Alberto, seu filho, só a ganhou porque o colégio eleitoral destituiu o imperador Adolfo de Nassau, mas o próprio Alberto foi morto por seu sobrinho em 1308. Os Habsburgos não voltariam a chefiar o Império até 1438, quando foi eleito o duque Alberto IV da Áustria, e desde então o governaram até o fim em 1806 e, além, o Império Austríaco até 1918. Isso tomando por continuação sua a Casa de Habsburgo-Lorena, fundada pela arquiduquesa Maria Teresa da Áustria, herdeira do imperador Carlos VI, falecido em 1740, e por seu marido, o duque Francisco de Lorena, depois imperador.
Armas do imperador Frederico III no armorial de Hans Ingeram (1459). |
Como expus na postagem de 13/05/2022, foi o imperador Frederico III, eleito em 1440, o primeiro que adotou a águia dicéfala, sobrepôs o escudete dinástico ao peito dela e elevou a dignidade de duque à de arquiduque. Em 1786, o imperador José II criou a Marinha Austríaca e deu-lhe por pavilhão a bandeira das armas do arquiducado com o escudo dessas mesmas armas, coroado. Não obstante, ao abdicar Francisco II do título de imperador dos romanos e persistir o Império da Áustria num mundo novo, formado por estados-nações, serviu-lhe de nacional uma bandeira de duas faixas horizontais, uma preta e a outra amarela, as cores das armas imperiais antigas: de ouro com uma águia de duas cabeças de negro, bicada e membrada de vermelho.
Pavilhões da Áustria-Hungria, segundo o Flags of maritime nations (1914). |
Após o Compromisso de 1867, que deu lugar à monarquia dual, a bicolor preta e amarela seguiu representando o Império da Áustria em sentido estrito, enquanto para o Reino da Hungria se reconheceu a tricolor vermelha, branca e verde. A combinação desta com o referido pavilhão de guerra, divulgada impropriamente como "bandeira do Império Austro-Húngaro", foi criada em 1869 para servir de pavilhão mercante.
Armas da Áustria (imagem disponível na Wikimedia Commons). |
Destituída a monarquia e instaurada a república, o vermelho-branco-vermelho identificava de tal modo os austríacos que o chanceler Karl Renner não conseguiu fazer adotar o emblema não heráldico que ele mesmo desenhara nem a tricolor preta, vermelha e amarela, projetando a união com a Alemanha que ele almejava, mas se impuseram o escudo de vermelho com uma faixa de prata, suportado por uma águia de negro, linguada de vermelho e bicada e membrada de ouro, a qual passou a cingir uma coroa mural e segurar uma foice e um martelo, tudo de ouro, alusivos respectivamente às classes burguesa, campesina e operária, e a bandeira de três faixas horizontais, a de cima e a de baixo vermelhas e a do meio branca. Restaurada a independência em 1945, acrescentaram-se duas correntes quebradas aos pés da águia.
Bandeira estatal da Áustria. |
A lei vigente sobre a forma e o uso do brasão e da bandeira nacionais da Áustria foi passada em 1984. É este país um daqueles que, combinando esses dois símbolos, têm mais de uma versão da sua bandeira: com o brasão, compõe a bandeira estatal (Dienstflagge des Bundes 'bandeira de serviço da União'), própria da administração pública federal, direta e indireta.
(1) Austria é latinização do alto alemão antigo Ōstarrīhhi (donde o alemão moderno Österreich), que quer dizer 'Estado do Leste'.
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