03/11/23

A STATENVLAG

A bandeira neerlandesa ocupa um lugar ímpar na história dessa espécie de insígnia.

Statenvlag quer dizer 'bandeira dos Estados' em holandês. Os Estados Gerais eram o parlamento ao qual os senhorios rebeldes dos Países Baixos, após terem abjurado Filipe II da Espanha em 1581, delegaram a sua soberania para administrar a fazenda, a defesa e a política externa comuns. Portanto, equivale a dizer que era a bandeira das Províncias Unidas (Verenigde Nederlanden).

Bandeira dos Países Baixos.
Bandeira dos Países Baixos.

Assim como a Holanda (1) merece um tratamento particular no estudo da história política pela inovação do seu regime republicano (até Veneza e Gênova com os seus doges estavam presas a uma aparência monárquica), a sua bandeira ocupa um lugar especial na vexilologia, pois dentre aquelas de estados soberanos ainda em uso é a mais antiga da forma que se tornou, quiçá, a mais difusa: três faixas, cada uma de uma cor.

"Uma esquadra holandesa sob o comando de Cornelis Simonszoon van der Veer lança um ataque surpresa a três galeões portugueses na baía de Goa, 30 de setembro de 1639", de Hendrik van Anthonissen, 1653 (conservado no Rijksmuseum). Os holandeses arvoram a Prinsenvlag e os portugueses, a bandeira da Ordem de Cristo.
"Uma esquadra holandesa sob o comando de Cornelis Simonszoon van der Veer lança um ataque surpresa a três galeões portugueses na baía de Goa, 30 de setembro de 1639", de Hendrik van Anthonissen, 1653 (conservado no Rijksmuseum). Os holandeses arvoram a Prinsenvlag e os portugueses, a bandeira da Ordem de Cristo.

De fato, o único dinasta que por vezes acumulou poderes quase monárquicos nas Províncias Unidas foi o príncipe de Orange, já que Guilherme o Taciturno encabeçou a revolta contra Filipe II e os seus descendentes exerceram o ofício de estatuder (stadhouder) da Holanda e Zelândia, como ele mesmo, também os de almirante-general da marinha e capitão-general do exército. Daí que até 1664 os navios neerlandeses trouxessem outra tricolor: laranja, branca e azul. O alaranjado referia precisamente à Casa de Orange-Nassau, daí o termo Prinsenvlag, isto é, 'Bandeira do Príncipe', a qual está atestada desde 1575.

É provável que essas cores tenham sido tomadas da libré do dito Guilherme I, afinal o campo das armas nassovianas é azul (semeado de bilhetas de ouro, com um leão do mesmo, armado e lampassado de vermelho, brocante) e o nome do principado soa igual a orange, 'laranja' em francês, embora essa homofonia seja mera coincidência, já que um vocábulo e o outro têm origens diferentes. (2)

"Statenvlag" no Nieuwe Hollandse scheepsbouw (1695), de Carel Allard.
"Statenvlag" no Nieuwe Hollandse scheepsbouw (1695), de Carel Allard.

Seja como for, os Estados Gerais nunca passaram ato nem instituindo nem destituindo uma bandeira ou a outra. A Prinsenvlag acabou dando lugar à Statenvlag num momento em que o grão-pensionário Johan de Witt procurou afastar a Casa de Orange-Nassau do poder, aproveitando-se da morte de Guilherme II em 1650, poucos dias antes de nascer seu único filho, o príncipe Guilherme III (depois também rei da Grã-Bretanha), para alheá-lo do ofício de estatuder. O que aconteceu em 1664 foi a adoção do termo Statenvlag após protesto da deputação zelandesa contra a locução Hollandse vlag ('bandeira holandesa'). 

"O amsterdamês de quatro mastros De Hollandse Tuin e outros navios após retornarem do Brasil sob o comando de Paulus van Caerden", de Hendrik Corneliszoon Vroom, c. 1605 (conservado no Rijksmuseum). Em De Hollandse Tuin a Prinsenvlag com as armas principescas e na forma de bandeirolas bífidas, também a bandeira das armas dos Estados Gerais e a Hollandse vlag com as armas de Amsterdã.
"O amsterdamês de quatro mastros De Hollandse Tuin e outros navios após retornarem do Brasil sob o comando de Paulus van Caerden", de Hendrik Corneliszoon Vroom, c. 1605 (conservado no Rijksmuseum). Em De Hollandse Tuin veem-se a Prinsenvlag com as armas principescas e na forma de bandeirolas bífidas, também a bandeira das armas dos Estados Gerais e a Hollandse vlag com as armas de Amsterdã.

Na verdade, se alguma diferença havia antes de 1664, era que a Prinsenvlag servia de pavilhão naval aos Estados Gerais e a tricolor vermelha, branca e azul, de pavilhão aos mercadores holandeses. Isso é corroborado pelas companhias de comércio, cujos pavilhões não tinham faixa alaranjada em cima, mas vermelha. Seja como for, houve um tempo, aproximadamente de 1630 a 1660, em que ambos os pavilhões coabitaram, até numa mesma embarcação.

Convém ressaltar que as Províncias Unidas eram uma república burguesa sob a hegemonia da Holanda, de modo que quando esse poderio alcançou o seu apogeu, precisamente durante o período sem o comando do príncipe de Orange, devia parecer indiferente que os navios de guerra e os de comércio — a maior frota do mundo à época — mostrassem as mesmas cores, especialmente entre os holandeses.

"A bandeira nacional neerlandesa para a Marinha da República", impresso por Johan Christoffel Schultsz em 1797 (exemplar conservado no Rijksmuseum).

Assim, a Statenvlag atravessou todas as mudanças políticas que se seguiram. Em 1672, quando se restaurou o ofício de estatuder sob Guilherme III, a Prinsenvlag já estava em desuso havia muitos anos. Em 1795, quando a Revolução Batava derrubou, com o apoio da França, o Antigo Regime, o vermelho, o branco e o azul coincidiam com as cores revolucionárias, de modo que apenas se acrescentou o emblema da nova república num retângulo branco sobre a faixa vermelha junto à tralha, o qual foi retirado durante o breve Reino da Holanda (1806-10), fundado e dissolvido por Napoleão Bonaparte. Em 1813, quando o país se libertou do domínio francês e Guilherme Frederico de Nassau, filho do derradeiro estatuder, voltou do exílio, proclamando-se príncipe soberano e depois, em 1815, rei dos Países Baixos, essa tricolor continuou a ser a bandeira nacional.

Não surpreende, pois, que um momento de contestação — a ascensão do nazifascismo — tenha demandado pela primeira vez a regulação da bandeira holandesa, daí o lacônico decreto da rainha Guilhermina em 1937: "De kleuren van de vlag van het Koninkrijk der Nederlanden zijn rood, wit en blauw" ("As cores da bandeira do Reino dos Países Baixos são vermelho, branco e azul") (3). Ainda não há uma lei abrangente sobre a bandeira. Outra norma precisou as tonalidades do vermelho e do azul em 1958 e uma instrução do governo holandês trata do uso.

Bandeira dos Países Baixos com o pendão alaranjado (imagem disponível no Noordhollands Dagblad).
Bandeira dos Países Baixos com o pendão alaranjado (imagem disponível no Noordhollands Dagblad).

Curiosamente, a partir das comemorações do 50.º aniversário da libertação, em 1863, difundiu-se um meio-termo entre a Prinsenvlag e a Statenvlag: no topo do mastro, acima da bandeira nacional, hasteia-se um pendão alaranjado. Esse uso chegou a ser especificamente prescrito às representações diplomáticas desde 1887 até o fim da Segunda Guerra Mundial e até hoje o pendão alaranjado tremula no Dia do Rei (Koningsdag) e nos aniversários da rainha, da princesa de Orange e da princesa Beatriz.

Notas:
(1) Ainda que o nome oficial do país seja Reino dos Países Baixos (Koninkrijk der Nederlanden) e a sua língua se chame, mais apropriadamente, neerlandês (Nederlands), não é, de modo algum, errado dizer Holanda e holandês em português, pois se trata de uma metonímia tão consagrada que o próprio estado holandês a usa, como se pode conferir no portal das suas representações diplomáticas. Hulanda e Hulandes são, afinal, o topônimo e o gentílico em papiamento, a língua nativa e cooficial de Aruba, Bonaire e Curaçao, que fazem parte do Caribe Holandês.
(2) Orange é hoje uma cidadezinha no sul da França e o seu nome, cuja forma provençal é Aurenja, vem do latim medieval Aurasica, antes Aurasio, e tem origem gaulesa. Por outro lado, o nome da fruta percorreu uma longa viagem, pois tem origem sânscrita (nāraṅga), passou pelo persa (nârang) e pelo árabe (nāranj), difundindo-se a partir do italiano (arancia) para o resto das línguas europeias, exceto as ibéricas, que o tomaram diretamente do árabe.
(3) Atualmente, o uso político da Prinsenvlag está, de fato, vinculado à extrema-direita. Ela serviu, ademais, de bandeira à África do Sul de 1928 a 1994, com a diferença de outras três pequenas bandeiras no meio da faixa branca: a da Grã-Bretanha, a do Estado Livre de Orange e a da República Sul-Africana. Esse período abrange o Apartheid, por isso em 2019 a justiça sul-africana proibiu a exibição pública dessa bandeira.

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