A bandeira neerlandesa ocupa um lugar ímpar na história dessa espécie de insígnia.
Statenvlag quer dizer 'bandeira dos Estados' em holandês. Os Estados Gerais eram o parlamento ao qual os senhorios rebeldes dos Países Baixos, após terem abjurado Filipe II da Espanha em 1581, delegaram a sua soberania para administrar a fazenda, a defesa e a política externa comuns. Portanto, equivale a dizer que era a bandeira das Províncias Unidas (Verenigde Nederlanden).
Bandeira dos Países Baixos. |
Assim como a Holanda (1) merece um tratamento particular no estudo da história política pela inovação do seu regime republicano (até Veneza e Gênova com os seus doges estavam presas a uma aparência monárquica), a sua bandeira ocupa um lugar especial na vexilologia, pois dentre aquelas de estados soberanos ainda em uso é a mais antiga da forma que se tornou, quiçá, a mais difusa: três faixas, cada uma de uma cor.
"Uma esquadra holandesa sob o comando de Cornelis Simonszoon van der Veer lança um ataque surpresa a três galeões portugueses na baía de Goa, 30 de setembro de 1639", de Hendrik van Anthonissen, 1653 (conservado no Rijksmuseum). Os holandeses arvoram a Prinsenvlag e os portugueses, a bandeira da Ordem de Cristo. |
De fato, o único dinasta que por vezes acumulou poderes quase monárquicos nas Províncias Unidas foi o príncipe de Orange, já que Guilherme o Taciturno encabeçou a revolta contra Filipe II e os seus descendentes exerceram o ofício de estatuder (stadhouder) da Holanda e Zelândia, como ele mesmo, também os de almirante-general da marinha e capitão-general do exército. Daí que até 1664 os navios neerlandeses trouxessem outra tricolor: laranja, branca e azul. O alaranjado referia precisamente à Casa de Orange-Nassau, daí o termo Prinsenvlag, isto é, 'Bandeira do Príncipe', a qual está atestada desde 1575.
É provável que essas cores tenham sido tomadas da libré do dito Guilherme I, afinal o campo das armas nassovianas é azul (semeado de bilhetas de ouro, com um leão do mesmo, armado e lampassado de vermelho, brocante) e o nome do principado soa igual a orange, 'laranja' em francês, embora essa homofonia seja mera coincidência, já que um vocábulo e o outro têm origens diferentes. (2)
"Statenvlag" no Nieuwe Hollandse scheepsbouw (1695), de Carel Allard. |
Seja como for, os Estados Gerais nunca passaram ato nem instituindo nem destituindo uma bandeira ou a outra. A Prinsenvlag acabou dando lugar à Statenvlag num momento em que o grão-pensionário Johan de Witt procurou afastar a Casa de Orange-Nassau do poder, aproveitando-se da morte de Guilherme II em 1650, poucos dias antes de nascer seu único filho, o príncipe Guilherme III (depois também rei da Grã-Bretanha), para alheá-lo do ofício de estatuder. O que aconteceu em 1664 foi a adoção do termo Statenvlag após protesto da deputação zelandesa contra a locução Hollandse vlag ('bandeira holandesa').
"O amsterdamês de quatro mastros De Hollandse Tuin e outros navios após retornarem do Brasil sob o comando de Paulus van Caerden", de Hendrik Corneliszoon Vroom, c. 1605 (conservado no Rijksmuseum). Em De Hollandse Tuin veem-se a Prinsenvlag com as armas principescas e na forma de bandeirolas bífidas, também a bandeira das armas dos Estados Gerais e a Hollandse vlag com as armas de Amsterdã. |
Na verdade, se alguma diferença havia antes de 1664, era que a Prinsenvlag servia de pavilhão naval aos Estados Gerais e a tricolor vermelha, branca e azul, de pavilhão aos mercadores holandeses. Isso é corroborado pelas companhias de comércio, cujos pavilhões não tinham faixa alaranjada em cima, mas vermelha. Seja como for, houve um tempo, aproximadamente de 1630 a 1660, em que ambos os pavilhões coabitaram, até numa mesma embarcação.
Convém ressaltar que as Províncias Unidas eram uma república burguesa sob a hegemonia da Holanda, de modo que quando esse poderio alcançou o seu apogeu, precisamente durante o período sem o comando do príncipe de Orange, devia parecer indiferente que os navios de guerra e os de comércio — a maior frota do mundo à época — mostrassem as mesmas cores, especialmente entre os holandeses.
"A bandeira nacional neerlandesa para a Marinha da República", impresso por Johan Christoffel Schultsz em 1797 (exemplar conservado no Rijksmuseum). |
Assim, a Statenvlag atravessou todas as mudanças políticas que se seguiram. Em 1672, quando se restaurou o ofício de estatuder sob Guilherme III, a Prinsenvlag já estava em desuso havia muitos anos. Em 1795, quando a Revolução Batava derrubou, com o apoio da França, o Antigo Regime, o vermelho, o branco e o azul coincidiam com as cores revolucionárias, de modo que apenas se acrescentou o emblema da nova república num retângulo branco sobre a faixa vermelha junto à tralha, o qual foi retirado durante o breve Reino da Holanda (1806-10), fundado e dissolvido por Napoleão Bonaparte. Em 1813, quando o país se libertou do domínio francês e Guilherme Frederico de Nassau, filho do derradeiro estatuder, voltou do exílio, proclamando-se príncipe soberano e depois, em 1815, rei dos Países Baixos, essa tricolor continuou a ser a bandeira nacional.
Não surpreende, pois, que um momento de contestação — a ascensão do nazifascismo — tenha demandado pela primeira vez a regulação da bandeira holandesa, daí o lacônico decreto da rainha Guilhermina em 1937: "De kleuren van de vlag van het Koninkrijk der Nederlanden zijn rood, wit en blauw" ("As cores da bandeira do Reino dos Países Baixos são vermelho, branco e azul") (3). Ainda não há uma lei abrangente sobre a bandeira. Outra norma precisou as tonalidades do vermelho e do azul em 1958 e uma instrução do governo holandês trata do uso.
Bandeira dos Países Baixos com o pendão alaranjado (imagem disponível no Noordhollands Dagblad). |
Curiosamente, a partir das comemorações do 50.º aniversário da libertação, em 1863, difundiu-se um meio-termo entre a Prinsenvlag e a Statenvlag: no topo do mastro, acima da bandeira nacional, hasteia-se um pendão alaranjado. Esse uso chegou a ser especificamente prescrito às representações diplomáticas desde 1887 até o fim da Segunda Guerra Mundial e até hoje o pendão alaranjado tremula no Dia do Rei (Koningsdag) e nos aniversários da rainha, da princesa de Orange e da princesa Beatriz.
(1) Ainda que o nome oficial do país seja Reino dos Países Baixos (Koninkrijk der Nederlanden) e a sua língua se chame, mais apropriadamente, neerlandês (Nederlands), não é, de modo algum, errado dizer Holanda e holandês em português, pois se trata de uma metonímia tão consagrada que o próprio estado holandês a usa, como se pode conferir no portal das suas representações diplomáticas. Hulanda e Hulandes são, afinal, o topônimo e o gentílico em papiamento, a língua nativa e cooficial de Aruba, Bonaire e Curaçao, que fazem parte do Caribe Holandês.
Nenhum comentário:
Postar um comentário