01/12/24

OS DEZ MAIS ANTIGOS

As mercês de armas novas são a porção mais bem documentada da heráldica gentilícia portuguesa sob a segunda dinastia.

É um lugar-comum na heráldica portuguesa do século XVII ao XIX que os brasões foram concedidos pelos reis àqueles que os bem-mereceram, todos os brasões. As próprias Ordenações filipinas (1603, 5, 92) definem que "os blasões das armas e apelidos que se dão àqueles que per honrosos feitos os ganharam [são] certos sinais e prova de suas nobreza e honra e dos que deles descendem" e a Provisão de 3 de julho de 1807 assesta contra "o abuso com que se passam os brasões d'armas, misturando-se pessoas plebeias ou estranhas com as principais famílias do Reino, as quais os tinham adquirido por serviços notáveis e feitos assinalados" (cf. a postagem de 28/06/21).

Armas de Dom Duarte e Dom Afonso V, reis de Portugal.
Armas de Dom Duarte e Dom Afonso V, reis de Portugal.

Esse discurso procurava vedar qualquer brecha que minasse o controle da Coroa sobre a nobreza, pois a verdade é que os brasões achados e registrados paulatinamente nos armoriais desde o começo do século XVI tinham sido assumidos livremente em tempo imemorial. Por outro lado, também desde cedo se tem praticado o instituto da concessão principesca. Já Bártolo de Sassoferrato tratou dele em tom panegírico no De insigniis et armis (1358), inclusive se ufanando das suas próprias armas, que o imperador Carlos IV lhe dera:

Et mihi, tunc ejus consiliario, inter cetera concessit ut ego et ceteri de agnatione mea leonem rubeum cum caudis duabus in campo aureo portaremus. Et istis licere portare talia insignia non est dubium: de principis enim potestate disputare sacrilegum est. (1)

Por tudo isto, não é possível enumerar quais sejam os brasões mais antigos da armaria portuguesa. No máximo, poder-se-ia apontar desde quando se usam certos apelidos/sobrenomes, tomando-se tal por critério de antiguidade das linhagens nobres. Em contraposição, é perfeitamente possível listar os brasões dados pelos reis de Portugal, porque as doações constam de registros persistentes. Aplicando, pois, esse critério, eis os dez mais antigos por nome do recebedor:

  1. Gil e Vicente Simões (1438);
  2. Fernão Gil de Montarroio (1450);
  3. Pero Rodrigues Gante (1454);
  4. Álvaro Gonçalves de Cáceres (1459);
  5. João Gonçalves da Câmara (1460);
  6. Martim Esteves Boto (1462);
  7. Gonçalo Vaz de Campos (1465);
  8. Álvaro Afonso Frade (1471);
  9. Lopo Esteves (1471);
  10. Antônio Leme (1471).

Antes de mais, cumpre observar que o primeiro item não marca exatamente o início da prática da mercê heráldica na monarquia portuguesa. Sublinho que a fonte da lista é a Chancelaria Real. Com efeito, sendo o terceiro item uma renovação das armas que Vasco Peres Gante ganhou de Dom Duarte, pode ser o mais antigo. Ainda assim, há boas razões para crer que o brasão do Doutor João das Regras antecede mais, já que ele o deve ter recebido de Dom João I. Para explicar a ignorância dos registros, pode-se supor que estavam em livros particulares dos oficiais de armas.

Os dez brasões mais antigos dentre os concedidos pelos reis de Portugal.
Os dez brasões mais antigos dentre os concedidos pelos reis de Portugal.

Nesta nova série, abordo, pois, as cartas que registram esses dez brasões. Abrange um período de 33 anos, que começa no quinto do reinado de Dom Duarte e acaba no 33.º de Dom Afonso V. Como este tinha apenas seis anos quando aquele morreu, precisamente dois meses após passar a carta de Gil e Vicente Simões, seguiu-se um hiato correspondente à regência da rainha Dona Leonor (1438–39) e do infante Dom Pedro (1439–48), mãe e tio do pueril monarca. Portanto, Dom Afonso V fez a sua primeira concessão heráldica aos dezoito anos de idade, quando governava efetivamente havia dois.

Quanto à conjuntura social, o penúltimo ano de Dom Duarte ficou marcado pelo Desastre de Tânger, quando a expedição sob o comando do infante Dom Henrique, seu irmão e governador da Ordem de Cristo, falhou em assaltar essa cidade marroquina, tendo-se obrigado a entregar Dom Fernando, outro dos irmãos e governador da Ordem de Avis, como refém, nunca resgatado. Mas após a Batalha da Alfarrobeira (1449), onde tombou o ex-regente e opositor mais potente contra a gesta africana (2), Dom Afonso V retomou-a: em 1457 conquistou Alcácer Ceguer e em 1471 Arzila e Tânger, se bem que diante dessa cidade em dezembro de 1463 e janeiro de 1464 também amargou derrotas. Tudo lhe valeu o cognome de Africano.

A cruzada contra o Islã foi, de fato, o motor das mercês de armas novas em Portugal. Todos os recebedores da nossa lista estiveram no norte da África, exceto Vasco Peres Gante, que acompanhou o infante Dom Pedro nas suas viagens e com ele combateu os turcos nos Bálcãs. Até 1462, Dom Afonso V ainda galardoava veteranos da conquista de Ceuta — Fernão Gil de Montarroio, João Gonçalves da Câmara e Martim Esteves Boto — (3, 4), mas depois a sua liberalidade parece ter vindo às gerações mais jovens: Álvaro Gonçalves de Cáceres e Gonçalo Vaz de Campos serviram em Alcácer; Álvaro Afonso Frade e Lopo Esteves, aí e nas empresas de 1471; Antônio Leme, nestas. E para maior verossimilhança da narrativa, todos foram investidos nalgum grau da cavalaria:

  • Gil Simões era cavaleiro e Vicente escudeiro da Casa Real;
  • Fernão Gil de Montarroio era cavaleiro da mesma casa;
  • Vasco Peres Gante era escudeiro da mesma e Pero Rodrigues Gante era escudeiro do arcebispo de Lisboa;
  • Álvaro Gonçalves de Cáceres era cavaleiro da mesma;
  • João Gonçalves da Câmara era cavaleiro da Casa do Infante Dom Henrique;
  • Martim Esteves Boto era cavaleiro da Casa Real;
  • Gonçalo Vaz de Campos era escudeiro do prior da Ordem Hospitalária;
  • Álvaro Afonso Frade era escudeiro da Casa Real;
  • Lopo Esteves era cavaleiro da mesma casa;
  • Antônio Leme era cavaleiro da Casa do Príncipe.

Não obstante, desde a carta de Martim Esteves Boto a leitura atenta vai percebendo que, mais que o risco do próprio corpo pela propagação da fé, o Africano remunerava com a sua moeda mais valiosa — o privilégio — quem dispunha da própria fazenda para contribuir com os empreendimentos da Coroa. Ao mesmo tempo, criava uma nobreza nova, em tese mais dócil à centralização monárquica do que as grandes casas de sangue real e antigo.

Contudo, pouco sabemos acerca desses armígeros ou mesmo da sua descendência. De alguns aponta-se a morada numa vila: Vasco Peres Gante em Elvas; Gonçalo Vaz de Campos no Crato, donde era alcaide; Álvaro Afonso Frade e Lopo Esteves em Olivença. Como estes três possuíam bastante cabedal para suprir a guerra na África, levando barcos, homens e cavalos, reputo que eram burgueses ricos, isto é, elementos que, em contraste com a fidalguia fundiária, prosperavam com o comércio urbano. Isso é certo no caso dos Lemes, patrícios de Bruges (Flandres). Outros, como o tesoureiro Fernão Gil de Montarroio e o leitor Álvaro Gonçalves de Cáceres, parece que ascenderam por terem posto os seus talentos ao serviço do rei.

E excepcional é a história de João Gonçalves Zargo. A carta de brasão, pela qual o rei também lhe deu o sobrenome de Câmara de Lobos, não diz nada sobre as suas origens e mesmo quanto ao seu serviço nas praças africanas resume que "se ele houve mui grandemente em os feitos das armas contra os infiees". Ele, porém, se notabilizou por ter explorado o arquipélago da Madeira, povoado a ilha maior e recebido a capitania do Funchal. Presumo, pois, que abriu o seu caminho a partir de um estado deveras baixo. Depois, dois ramos da sua geração subiram ao alto da nobreza: os condes da Calheta e aqueles de Vila Franca/Ribeira Grande.

Pelo razoado, afirmo que a heráldica afonsina era um projeto de poder. O seu desenvolvimento está nas próprias cartas de brasão. Com efeito, ao longo das dez mais antigas surgem pela primeira vez vários aspectos da armaria portuguesa:

  • As versões iniciais da teoria da mercê de armas novas;
  • a combinação de nome e armas;
  • o ofício de rei de armas Portugal, primeiro como certificador, depois como brasonador e finalmente como oficial de armas principal;
  • a iluminura das armas no diploma e o registro da mercê nos livros dos reis de armas;
  • as noções de chefia e diferença pessoal.

Enfim, a leitura e compreensão desses textos captam o próprio desenvolvimento da carta de brasão enquanto gênero discursivo, o que se completaria ao longo do reinado sucedente, o de Dom João II.

Notas:
(1) "E a mim, então conselheiro seu, concedeu para que eu e os demais da minha linhagem trouxéssemos um leão de vermelho com duas caudas em campo de ouro. A estes é permitido trazer tais insígnias, não há dúvida. Com efeito, é sacrílego discutir o poder do príncipe" (tradução minha).
(2) Dom Afonso V marchou contra Dom Pedro, seu tio e ex-regente, depois de ter sido enredado em intrigas por Dom Afonso de Bragança, meio-irmão e velho adversário do infante.
(3) Martim Esteves Boto também esteve no Desastre de Tânger e na conquista de Alcácer Ceguer.
(4) Gil e Vicente Simões estiveram no Desastre de Tânger. A sua carta de brasão declara, ainda, que levaram embarcações, de que eram capitães. Sabe-se que a geração de Gil viveu em Portimão, no Algarve. Por esses elementos, é razoável supor estado plebeu, mas situação próspera numa vila, ou seja, burgueses ricos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário