22/10/23

BANDEIRAS CRUZADAS: GRÉCIA

Muito tempo depois das cruzadas, alguns povos cristãos construíram as suas identidades nacionais em antagonismo contra o Islã.

A civilização ocidental na contemporaneidade se reconhece devedora da Grécia antiga, mas durante a Idade Moderna os gregos se reduziam a uma millet do Império Otomano: millet-i Rum, isto é, a comunidade cristã ortodoxa. A palavra Rum reflete a denominação que se davam na Idade Média: Rhōmaîoi ou 'romeus'. Afinal, bizantino é convenção historiográfica, já que os romanos orientais viam no seu estado uma continuidade ininterrupta da velha Roma, ao passo que heleno (Héllēn) tomou o sentido de 'pagão'.

Bandeira da Grécia.
Bandeira da Grécia.

Com efeito, algo tão ocidental quanto a heráldica não alcançou a Grécia, nem as práticas vexilares que com ela se desenvolveram, mas à propagação das ideias da Revolução Francesa os gregos não escaparam: em março de 1821 no Peloponeso estouraram rebeliões contra o domínio otomano que levaram à Guerra da Independência, porém não havia cores nem bandeira nem brasão que representasse a causa, já que os rebeldes se vinculavam a diferentes grupos, os quais não só preferiam os seus próprios símbolos, mas chegariam a travar lutas intestinas pela hegemonia sobre o novo estado.

Assim, a constituição provisória que a Assembleia Nacional de Epidauro promulgou em janeiro de 1821 ainda não adotou bandeiras, mas estabeleceu as suas cores: azul e branco ("kyanoûn kaì leukón"). Efetivamente, uma das bandeiras mais populares era branca com uma cruz azul, mas em março, quando o governo desenvolveu o dispositivo constitucional por decreto, inverteram-se as suas cores: o campo azul e a cruz branca. Também se ordenaram dois pavilhões: um de guerra, que tinha nove listras, cinco azuis e quatro brancas, e no cantão um quadrado azul com uma cruz branca, e o mercante, que era azul com o cantão branco e, nele, uma cruz azul, mas este foi suprimido já em 1828.

Faz muito sentido: era a religião que distinguia as milletler do império e a constituição mencionada dispunha que eram gregos (Héllēnes) os habitantes nativos da Grécia (Hellás) que criam no Cristo. Neste sentido, o azul contrastava com o vermelho otomano e a cruz, com o crescente. Prova dessa interpretação é que, apesar de os fatos terem acontecido na Idade Contemporânea, logo se teceu uma lenda para difundir a justeza da causa e o favor divino a ela.

"Germano da Antiga Patras benze a bandeira da Revolução" (1865), de Theódoros Vrizákis (conservado na Ethnikí Pinakothíki, Atenas).
"Germano da Antiga Patras benze a bandeira da Revolução" (1865), de Theódoros Vrizákis (conservado na Galeria Nacional, Atenas).

Conta-se, pois, que a Revolução Grega começou aos 25 de março de 1821 no Mosteiro de Santa Laura (Monē tês Hagías Laúras), perto de Kalábryta, onde o metropolita Germano, empunhando a bandeira da cruz, pregou sobre a santidade da causa, exortou os presentes a marchar sobre Patras no dia seguinte sob o juramento de liberdade ou morte, lhes perdoou os pecados e os abençoou. Nessa data comemora-se a Anunciação do Senhor e também até hoje se celebra o Dia da Independência.

A Guerra da Independência arrastou-se até 1832 e os gregos só a venceram porque em 1827 a Rússia, a Grã-Bretanha e a França resolveram intervir ante a comoção que a repressão otomana vinha provocando na Europa e a necessidade de prevenir a expansão de qualquer uma dessas três potências caso uma tomasse a iniciativa por conta própria. Seguiu-se que os gregos não puderam recusar o regime que elas lhes impuseram: uma monarquia absoluta sob a chefia de Oto de Wittelsbach, segundo filho do rei Luís I da Baviera.

Portanto, o estado grego foi construído à semelhança das monarquias ocidentais coetâneas, o que abrangia um brasão para servir de armas reais, estatais e nacionais: por decreto em 1833, a regência assumiu um escudo de azul com uma cruz solta de prata, carregada de um escudete das armas reais bávaras, e toda a mais pompa monárquica: coroa, suportes e pavilhão. Perceba-se que essas armas derivam da bandeira, mas o atributo solto (alésé em francês) faz precisamente a cruz que na arte ocidental se conhece como 'grega', isto é, aquela cujas extremidades têm o mesmo tamanho.

Na verdade, outro decreto do mesmo ano acrescentou o escudete bávaro coroado ao centro da cruz também nas bandeiras e a versão alemã de ambas as normas contém o adjetivo himmelblau em referência à cor do campo, ou seja, 'azul-celeste', o tom habitual das armas bávaras. Isso reflete o grau ao qual chegou a ingerência desse país, mas tudo isso cessou em 1862, quando uma revolução depôs o rei Oto.

Pavilhões da Grécia, segundo o Flags of maritime nations (1914).
Pavilhões da Grécia, segundo o Flags of maritime nations (1914).

Tendo, pois, eleito o parlamento grego o príncipe Guilherme da Dinamarca, que se impôs o nome de Jorge e recebeu o título de rei dos helenos, um decreto em dezembro de 1863 trocou o escudete coroado pela simples coroa real no centro da cruz na bandeira estatal e no pavilhão de guerra. Outro decreto, de Constantino I em 1914, consolidou que o pavilhão sem a coroa era o próprio da marinha mercante e o único que podia ser hasteado por particulares.

Em 1923, após a derrota contra os turcos, que retomaram a Jônia e a Trácia oriental, ocupadas pela Grécia em meio ao ocaso do Império Otomano desde 1919, a monarquia grega caiu e, com ela, a coroa nas bandeiras, mas ao cabo de uma sucessão de golpes de estado, o trono foi restaurado e devolvido a Jorge II em 1935. A coroa voltou às bandeiras, mas uma lei em 1937 estendeu a permissão de uso civil à bandeira estatal sem a coroa, de modo que a presença dela passou a distinguir o estado tanto na terra como no mar.

Essa dualidade acabou em 1969, quando o regime militar decretou o pavilhão mercante a única bandeira nacional. No ano seguinte, alterou as suas proporções e adotou um tom mais escuro de azul. Restaurada a democracia, uma lei em 1975 inverteu a situação ao dispor que a antiga bandeira estatal era a única nacional. Entrementes, em 1973 abolira-se a monarquia. Finalmente, em 1978 passou-se a lei atual sobre a bandeira da Grécia, que é o antigo pavilhão naval.

Armas da Grécia (desenho usado pelo governo grego).
Armas da Grécia (desenho usado pelo governo grego).

Não foram apenas as embarcações de comércio que, num país insular e peninsular, popularizaram esse pavilhão e as mudanças políticas que o impuseram, mas também a interpretação de que as nove listras representam as sílabas do lema da luta pela independência — Eleuthería hē thánatos ('Liberdade ou morte') — ou mesmo as letras da palavra ελευθερία. Não obstante, a cruz de prata em campo de azul foi preservada nas armas nacionais, pois desde 1936 deixara de estar solta e sob a república removeu-se, obviamente, o escudete dinástico, tendo sido ordenada a forma vigente pela citada lei de 1975.

Nenhum comentário:

Postar um comentário