05/11/23

CORES PAN-ESLAVAS: RÚSSIA

A ocidentalização da Rússia sob Pedro o Grande foi decisiva para a história das bandeiras na Europa Oriental.

No terceiro quartel do século XVII, a Holanda possuía a maior e mais poderosa marinha da Terra: obtivera do monarca espanhol o reconhecimento da sua independência em 1648, depois de oitenta anos de guerra; conteve a Suécia dentro do mar Báltico em 1658; fez uma paz vantajosa com Portugal em 1661, que lhe assegurou domínios ultramarinos na Ásia e na África; derrotou a Inglaterra em 1667.

Bandeira da Rússia.
Bandeira da Rússia.

Não obstante, outra potência ascendia no oriente: um antigo principado eslavo, que até meados do século XVI nem era páreo para os cãs tártaros ao leste e ao sul nem sobrepujava a Lituânia ao oeste. Já no fim do XVII, o seu soberano intitulava-se tsar de toda a Rússia e o seu território estendia-se além dos montes Urais, Sibéria adentro, até o oceano Pacífico. Contudo, ainda não tinha saída para os mares ocidentais, a não ser através das águas árticas.

Nesse momento, o tsar chamava-se Pedro e foi ele quem conseguiu conquistar o porto de Azov aos otomanos em 1696, ganhando acesso ao mar Negro, e a região da Íngria aos suecos em 1703, ganhando acesso ao mar Báltico. Poucos dias depois, fundou aí a nova capital do seu império, à qual deu o nome do santo do seu nome: São Petersburgo. Ele efetivamente tomou o título de imperador em 1721.

Os russos venceram essas duas campanhas porque construíram frotas nos rios próximos às fortalezas inimigas. Pedro I percebeu que o poder dos estados europeus estava, em grande medida, nas suas marinhas. Com efeito, ele participou, sempre que possível de forma discreta ou até incógnita, de uma embaixada que partiu de Moscou em março de 1697, passou por Riga, Königsberg, Hanôver e alcançou Amsterdã em agosto. Ao longo de cinco meses nos Países Baixos, chegou a trabalhar num estaleiro da Companhia das Índias Orientais. Em janeiro, embarcou para Londres, onde dedicou mais quatro meses e meio ao estudo da construção naval. A volta fez pela Saxônia e Boêmia até Viena.

Se no âmbito político a Grande Embaixada fracassou, já que nenhuma potência se aliou à Rússia contra o Império Otomano, o mesmo não se pode dizer quanto ao âmbito tecnológico, pois além do aprendizado pessoal, rendeu ao tsar a contratação de muitos artesãos e navegantes, mormente holandeses, para servi-lo na sua nova marinha. Ademais, o retorno a Moscou deu início a uma série de reformas que veio tornar-se uma verdadeira revolução cultural. Com efeito, até então a Rússia ficara alheia à evolução das ideias que na Europa católica e protestante a língua latina veiculava. Apesar do território extensíssimo, o tsar não diferia muito dos príncipes, seus antecessores medievais, que partilhavam grandemente o poder com os boiardos e o clero.

Pavilhão que Pedro o Grande arvorou no mar Branco em 1693 (imagem disponível na base Muzei Rossii).
Pavilhão que Pedro o Grande arvorou no mar Branco em 1693 (imagem disponível na base Muzei Rossii).

As bandeiras refletem com precisão todas estas coisas. Até Pedro o Grande, os tsares sequer traziam bandeiras de armas, já que, profundamente enraizados na cultura bizantina, o seu emblema era a águia dicéfala dos Paleólogos. Os seus estandartes mostravam ícones sagrados, depois também esse emblema. A atestação mais antiga da tricolor data de 1693, quando o dito Pedro navegou no mar Branco, inspecionando a frota recém-construída em Arkhangelsk. Caso insólito, essa bandeira está preservada e acha-se hoje no Museu Naval Central, em São Petersburgo. Tem três faixas horizontais, branca, azul e vermelha, e sobre elas as armas do tsar.

Pavilhões da Rússia no Nieuwe Hollandse scheepsbouw (1695), de Carel Allard.
Pavilhões da Rússia no Nieuwe Hollandse scheepsbouw (1695), de Carel Allard.

Mesmo assim, não fosse o caso, as pinturas da Grande Embaixada por Abraham Stork e o livro Nieuwe Hollandse scheepsbouw (1695), de Carel Allard, atestam inquestionavelmente a tricolor de Pedro I, quem se interessava também por esse assunto, já que em 1699 de próprio punho rascunhou dois pavilhões, um sem o brasão e o outro com uma aspa sobreposta às faixas, e logo faria modificações.

Pavilhão naval da Rússia.
Pavilhão naval da Rússia.

Assim, por decreto em 1705 o tsar reservou a tricolor às embarcações mercantes. À marinha de guerra pelo Código Naval de 1720 deu uma aspa azul em campo branco. Convém lembrar que essa figura também se denomina cruz de Santo André e que esse apóstolo — cujo sucessor é o patriarca de Constantinopla — teria viajado até a Cítia e chantado uma cruz onde fica hoje a cidade de Kiev. Em 1698, o mesmo Pedro fundara a primeira ordem honorífica russa: a Ordem de Santo André.

Jaque e bandeira de fortaleza da Rússia.
Jaque e bandeira de fortaleza da Rússia.

Além dessas duas signas, o Código Naval de 1720 estabeleceu outras duas: para assinalar a presença do imperador, um pano amarelo com as armas imperiais, cuja águia segura quatro cartas náuticas, uma em cada garra e bico; para o gurupés, um jaque vermelho com uma cruz branca e, sobre ela, uma aspa azul com perfil branco. Igual ao jaque era a bandeira que se içava sobre as fortalezas marítimas.

Anexo ao Decreto de 11 de junho de 1858 (imagem disponível na Wikimedia Commons).
Anexo ao Decreto de 11 de junho de 1858 (imagem disponível na Wikimedia Commons).

Servindo à criação de outros vários vexilos para a Casa e Marinha Imperiais, essas bandeiras vigeram até o fim da monarquia, mas por decreto de Alexandre II em 1858 se estabeleceu o "padrão da disposição das cores heráldicas do Império para estandartes, bandeiras e outros objetos". Esse padrão era uma bandeira de três faixas horizontais, preta, amarela e branca. Como a redação do ato não é nada clara, foi o uso que consagrou o pavilhão mercante como bandeira nacional e a tricolor heráldica como bandeira estatal. Todavia, não deixou de causar certa polêmica, o que se procurou resolver por meio do Código Naval em 1899, que designa a tricolor branca, azul e vermelha bandeira nacional.

"Bandeiras russas", cartão postal da Cruz Vermelha, 1914 (disponível na Biblioteca Nacional Russa).
"Bandeiras russas", cartão postal da Cruz Vermelha, 1914 (disponível na Biblioteca Nacional Russa).

Em setembro de 1914, portanto no ocaso do regime, apareceu uma "bandeira da união do tsar com o povo": a bandeira nacional com o estandarte imperial na forma de um cantão quadrado, cuja altura correspondia às faixas branca e azul. Mas, como se sabe, em 1917 a Revolução de Fevereiro levou à abdicação de Nicolau II e a Revolução de Outubro deu início à constituição do estado socialista, que se representava por bandeiras vermelhas.

A tricolor branca, azul e vermelha foi restaurada pelo Soviete Supremo da República Socialista Federativa Soviética Russa em agosto de 1991, agora em meio ao ocaso do regime que quase 74 anos antes a derrogara. Em 25 de dezembro, a bandeira vermelha com a foice e o martelo foi arriada e a tricolor hasteada sobre o Kremlin de Moscou, marcando a dissolução da União Soviética.

Estandarte do Presidente da Federação Russa.
Estandarte do Presidente da Federação Russa.

A lei vigente sobre a forma e o uso da bandeira russa data de 2000. Além da tricolor, a Federação Russa recuperou em 1992 os antigos pavilhão naval, jaque e bandeira de fortaleza, os quais estão regulados por outra lei do mesmo ano de 2000. Curiosamente, a primeira bandeira de Pedro o Grande tornou-se o estandarte presidencial.

Por todo o razoado, há pouca dúvida de que as cores da bandeira russa foram tomadas da holandesa, pois mesmo levando em conta que se compraram panos das mesmas cores para as bandeiras do Orjol, lançado em 1668 para singrar o Cáspio, esse navio foi construído também por mestres holandeses. Seja como for, graças à neerlandofilia de Pedro I e ao seu intuito de modernização, a bandeira russa estava destinada a inspirar as cores pan-eslavas.

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