23/05/25

O BRASÃO DO PAPA LEÃO XIV (III)

Um brasão de armas é um conceito verbal que se realiza por meio das artes visuais.

Nesta terceira e derradeira postagem sobre o brasão do papa Leão XIV, quero mostrar as realizações de vários artistas heráldicos. Como eu disse ao fim da antecedente, cada um tem um grau de perícia, um talento e um estilo próprios. Todos demonstram a vitalidade da arte heráldica e aguçam o caráter inexplicável do que tenho narrado desde o dia 19/05.

Como critério de seleção, dou as obras daqueles que aguardaram sair algo oficial (portanto, desde 10 de maio), respeitaram a permanência da mitra (em vez de pleitear ou sugerir a volta da tiara), cumprem o código heráldico (iluminando o meio escudo de prata) e as publicaram no Instagram ou no Facebook.

Armas do papa Leão XIV, por Marco Foppoli (publicado no Instagram, 10/05/2025).
Armas do papa Leão XIV, por Marco Foppoli (publicado no Instagram, 10/05/2025).

Começo por Marco Foppoli, heraldista italiano de forte estilo e boa fama. Além do desenho que se vê aqui, ele esboçou outros arranjos para as novas armas pontifícias e teceu uma crítica muito dura sobre o caso. Na sua realização, omite o mote.

De fato, até Bento XVI os papas, sem abrir mão do seu lema pastoral, deixavam de ostentá-lo. O Totus tuus de São João Paulo II talvez se tenha propagado mais depois da sua morte que durante o seu pontificado. O Cooperatores veritatis do dito Bento permanece pouco lembrado. Mas para Francisco o Miserando atque eligendo era tão programático que para 2016 proclamou o Jubileu Extraordinário da Misericórdia. O mesmo parece dar-se para Leão XIV:

Com efeito, a unidade foi sempre para mim uma preocupação constante, como o testemunha o lema que escolhi para o ministério episcopal: In Illo uno unum, expressão de Santo Agostinho de Hipona que nos recorda como também nós, embora sejamos muitos, "n'Aquele que é um [ou seja, Cristo], somos um só" (Comentários aos Salmos, 127, 3). (discurso aos representantes de outras igrejas e religiões em 19/05/2025)

Pode-se desgostar de inovações na Igreja ou na heráldica, mas é inegável que no nosso tempo o slogan tem um grande apelo. E o que é a velha divisa, se não um slogan?

Não obstante, uma divisa é geralmente escrita num filactério e isso demanda ao artista habilidade para fazê-lo com propriedade e beleza. O feito no desenho oficial das armas do papa Francisco combina com a ponta arredondada do escudo, mas as dobras apresentam erro. No de Leão XIV, faltou não só reparar esse erro, mas também adequar o panejamento à ponta ogival.

Armas do papa Leão XIV, por Xavier d'Andeville (publicado no Instagram, 10/05/2025).
Armas do papa Leão XIV, por Xavier d'Andeville (publicado no Instagram, 10/05/2025).

O segundo desenho, do heraldista francês Xavier d'Andeville, diverge não pouco do oficial: o escudo oval num cartucho, a mitra ornada, o cordão finamente enleado no listel. Algum erro? Nenhum! Exemplifica, inclusive, a pintura coerente da prata como branco. O mais são escolhas artísticas perfeitamente aceitáveis. Trata-se de uma versão que poderia figurar, por exemplo, num objeto comemorativo, como uma medalha ou um recipiente.

Armas do papa Leão XIV, por Vicente de la Lastra y Barrios (publicado no Instagram, 10/05/2025).
Armas do papa Leão XIV, por Vicente de la Lastra y Barrios (publicado no Instagram, 10/05/2025).

De outro país europeu, latino e historicamente católico é o espanhol Vicente de la Lastra y Barrios, autor de um desenho que revela mais do que aparenta: a mitra preciosa e as chaves de feição gótica, tudo numa prata mais cinzenta, provam que a deposição da tiara não se reduz à troca de um adereço rico por outro pobre, como às vezes quase se sugere. De fato, ao uso institucional convém uma arte mais austera, porém uma versão como esta não ficaria nada mal se tecida num paramento, num estandarte ou num reposteiro para ocasiões especiais.

Armas do papa Leão XIV, por Gabriel Muniz (publicado no Instagram, 10/05/2025).
Armas do papa Leão XIV, por Gabriel Muniz (publicado no Instagram, 10/05/2025).

O último desenho que vi no dia 10 foi feito pelo mexicano Gabriel Muniz. De técnica bastante modesta, à qual cabem mesmo reparos, chamou-me a atenção que seja a primeira postagem de um carrossel pedagógico acerca da questão.

Armas do papa Leão XIV, por Sandy Turnbull (publicado no Facebook, 13/05/2025).
Armas do papa Leão XIV, por Sandy Turnbull (publicado no Facebook, 13/05/2025).

Furando a bolha da latinidade e do Instagram, o australiano Sandy Turnbull publicou um desenho seu no grupo Ecclesiastical Heraldry do Facebook. Destaca-se pelo cuidado dos pormenores: o livro deitado torna o coração flechado mais visível; os palhetões das chaves têm cruzes floridas; a divisa está escrita num espaço delimitado pelo cordão, sem listel. Sublinho que a inscrição em filactério não é uma norma, mas um hábito.

Armas do papa Leão XIV, por Giuseppe Quattrociocchi (publicado no Instagram, 18/05/2025).
Armas do papa Leão XIV, por Giuseppe Quattrociocchi (publicado no Instagram, 18/05/2025).

Já no dia em que se solenizou o início do novo pontificado, o italiano Giuseppe Quattrociocchi publicou um desenho que bem se poderia tornar oficial, porque é original e apresenta um arranjo harmônico e um estilo equilibrado, nem tão fosco nem tão luminoso.

Armas do papa Leão XIV, por Paulo André Costa (publicado no Instagram, 18/05/2025).
Armas do papa Leão XIV, por Paulo André Costa (publicado no Instagram, 18/05/2025).

Também no Brasil temos artistas heráldicos talentosos que contribuíram com o caso. No mesmo dia, o padre Paulo André Costa, da diocese de Teixeira de Freitas (BA), publicou o seu desenho. Ressai a elegância do escudo, com a qual combinam muito bem as curvas e dobras do listel. Em heráldica, elegância não é algo que se persegue vaidosamente, mas um sinal de maturidade artística.

Armas do papa Leão XIV, por Rafael Lima (publicado no Instagram, 19/05/2025).
Armas do papa Leão XIV, por Rafael Lima (publicado no Instagram, 19/05/2025).

Enfim, Rafael Lima, outro heraldista brasileiro, oferece um desenho que pelos traços, pelas formas, pelo arranjo, pela iluminura poderia armoriar belamente qualquer objeto, tanto colorido como monocromo: um selo, uma moeda, uma bandeira, um paramento, um impresso etc.

Para acabar, reforço: todos estes desenhos são realizações corretas do mesmo brasão, a saber, talhado, o primeiro de azul com uma flor de lis de prata; o segundo de prata com um coração inflamado e atravessado por uma flecha em contrabanda, tudo de vermelho e sustido por um livro fechado de sua cor; por cima do escudo a mitra papal e sob ele as chaves petrinas em aspa; divisa: In illo uno unum. Um brasão de armas é um conceito verbal que se realiza por meio das artes visuais.

21/05/25

O BRASÃO DO PAPA LEÃO XIV (II)

Ouro, vermelho, azul, púrpura, preto, prata,
Verde, veiros, arminho: é, pois, a conta exata.

De acordo com o costume, praticado há séculos, e a instrução Ut sive sollicite, emitida pela Santa Sé em 1969, Robert Francis Prevost, OSA, nomeado bispo titular de Sufar e administrador apostólico de Chiclayo, no Peru, assumiu um brasão de armas em 2014. Antes da ordenação episcopal, a Província de Nossa Senhora do Bom Conselho, nos Estados Unidos (Midwest Augustinians), donde o prelado é natural, noticiou o fato.

Armas de Robert Prevost, assumidas enquanto bispo titular de Sufar e administrador apostólico de Chiclayo (imagem disponível no portal Midwest Augustinians).
Armas de Robert Prevost, assumidas enquanto bispo titular de Sufar e administrador apostólico de Chiclayo (imagem disponível no portal Midwest Augustinians).

Segundo a notícia, a criação das armas pautou-se por um raciocínio anglo-germânico: partiu-se o escudo, reservando-se o primeiro campo à diocese e deixando-se o segundo ao ordinário. Tendo Chiclayo por padroeira a Imaculada Conceição, pôs-se uma flor de lis de prata sobre azul, a figura e a cor marianas por excelência. Sendo o então bispo Prevost augustiniano, pôs-se o emblema dessa ordem sobre prata. Entre um campo e o outro, traçou-se uma linha diagonal, ou seja, um escudo talhado.

"Armas da Religião de Santo Augustinho" no Tesouro de nobreza, de Francisco Coelho (1675).
"Armas da Religião de Santo Augustinho" no Tesouro de nobreza, de Francisco Coelho (1675). (1)

A Ordem de Santo Agostinho foi fundada na Itália central em 1244 pela união de comunidades eremíticas, às quais o papa Inocêncio IV recomendou a adoção da chamada Regra de Santo Agostinho, já observada pelos cônegos regulares, pelos dominicanos e pelos mercedários. Como tantas ordens religiosas, a augustiniana possui um emblema que transita da divisa ao brasão, a depender da presença ou ausência de escudo, e hoje é uma marca. Por isso, descreve-se apenas como um coração inflamado e atravessado por uma flecha sobre um livro, sem fixidez de esmaltes. No brasão episcopal sob exame, o coração e a flecha estão vermelhos e o livro tem cores naturais.

Os próprios agostinhos apontam que duas passagens das Confissões elucidam o símbolo. Logo depois da sua conversão, querendo abandonar o mister de rétor, Agostinho conta que, apesar de só saberem disso os mais achegados, houve quem tivesse tentado dissuadi-lo, mas o seu coração fora flechado pelo Senhor com o seu amor ("Sagittaveras tu cor nostrum caritate tua", 9, 3). Mais adiante (10, 8), respondendo ao que se ama quando se ama a Deus ("Quid amatur, cum Deus amatur?"), declara: "Percussisti cor meum verbo tuo, et amavi te" ("Tocaste o meu coração com a tua palavra e então te amei"). Em síntese, o amor a Deus estimula a razão a buscar entendê-Lo e esta descobre que Ele é amor.

Em particular, o talho do escudo parece-me certeiro, porque uma flor de lis ocupa uma área aproximadamente romboidal e o livro precisa de um pouco de perspectiva para ficar reconhecível, de modo que a diagonal corre harmoniosamente entre uma figura e a outra. Eu diria, porém, que a leitura latino-americana inverte o conceito anglo-germânico, interpretando no primeiro campo uma insígnia pessoal, de tipo devocional, e no segundo a indicação da ordem religiosa à qual o prelado se associa, como por último se viu nas armas do papa Gregório XVI. Também aí acho virtude, porque Leão XIV, enquanto norte-americano nato e peruano naturalizado, tem mesmo essa dupla identidade: "A minha própria história é a de um cidadão, descendente de imigrantes, e também emigrado" (discurso ao corpo diplomático junto à Santa Sé no dia 16).

Enfim, foi igualmente nos escritos augustinianos que o Santo Padre buscou o seu lema pastoral, precisamente nos Comentários aos salmos (127, 3): "Os cristãos são muitos e o Cristo, um. Esses cristãos com a sua cabeça, que subiu ao céu, são um Cristo: não que ele seja um e nós muitos, mas nós, embora muitos, naquele um somos um" ("Multi enim Christiani, et unus Christus. Ipsi Christiani cum capite suo, quod ascendit in cælo, unus est Christus: non ille unus et nos multi, sed et nos multi in illo uno unum"; tradução minha).

Armas de Robert Prevost enquanto cardeal do título de Santa Mônica na fachada dessa igreja (foto de Mountain Butorac, publicada no Instagram).
Armas de Robert Prevost, enquanto cardeal do título de Santa Mônica, na fachada dessa igreja (foto de Mountain Butorac, publicada no Instagram).

Apesar de tão potente divisa, sinto que o ambiente divisivo das redes sociais, que descrevi na postagem antecedente, apressou a Santa Sé a demarcar que a mitra continuaria por cima do escudo papal, tal como está aí faz vinte anos. Mas aqui começa o inexplicável, porque se o papa quis manter o seu brasão e havia pressa, bastava trocar as insígnias cardinalícias pelas pontifícias. Afinal, sem jamais se alterar o ordenamento dessas armas, a sua dignidade eclesiástica ascendeu duas vezes no último biênio: arcebispo ad personam e bispo emérito de Chiclayo (30/01/2023) e cardeal da Santa Igreja Romana (30/09/2023) (2).

Inexplicavelmente, na manhã de 10 de maio na rede social X a Secretaria de Estado da Santa Sé publicou um desenho que rotulou de "Stemma ufficiale del Santo Padre Leone XIV" ("Brasão oficial do Santo Padre Leão XIV"), mas em vez do meio campo de prata, mostra uma cor que estarreceu a comunidade heráldica: bege. Ora, não é necessária uma introdução nem mesmo mediana à armaria para aprender que nela só se admitem dois metais (ouro e prata), cinco cores (vermelho, azul, negro, verde e púrpura) e duas peles (arminho e veiros). E ainda que se possa pintar certa figura ao natural, isso nunca se aplica ao escudo.

Desenho oficial das armas do papa Leão XIV (imagem disponível no portal da Santa Sé).
Desenho oficial das armas do papa Leão XIV (imagem disponível no portal da Santa Sé).

À falta de alguma nota que circunstanciasse o desenho, uns arremedaram o tal do bege, "corrigindo" as suas antecipações; outros esperaram que logo se esclareceria um suposto acidente. Contudo, a spiegazione ('explicação') que saiu no Boletim da Sala de Imprensa a 14 de maio não trouxe o esperado ajuste. Antes, confirma a percepção de um trabalho apressado, inclusive pela falta de revisão textual (3).

Edição do desenho oficial das armas do papa Leão XIV, por Paul Nizinskyj (publicado no Facebook, 16/05/2025).
Edição do desenho oficial das armas do papa Leão XIV, por Paul Nizinskyj (publicado no Facebook, 16/05/2025).

Assim, tentou-se solver o insolúvel brasonando-se o segundo campo "di bianco" ("de branco") e explicando-se que está "in tonalità avorio" ("em tonalidade marfim"). Ora, nada disso é aceitável. Tanto faz dizer que é branco, marfim ou bege, porque nenhuma dessas cores existe na heráldica. Considere-se, por exemplo, que dado brasão tem uma presa de elefante de prata. Certo artista poderá pintar essa figura de branco ou cinza. Se não fosse de prata, mas de sua cor natural, ele deveria, aí sim, empregar um tom próximo ao do marfim. Mas o nosso desenhista fez de um cinza-escuro a flor de lis, a mitra e uma das chaves, o que lhe obrigaria repetir esse tom na outra metade do escudo. Evidentemente, reexaminar o esboço e clarear tudo era uma opção.

Armas primitivas do papa Leão XIV, enquanto bispo titular de Sufar e administrador apostólico de Chiclayo, por Alejandro Rojas (imagem disponível na Wikimedia Commons).
Armas primitivas do papa Leão XIV, enquanto bispo titular de Sufar e administrador apostólico de Chiclayo, por Alejandro Rojas (imagem disponível na Wikimedia Commons).

Os problemas não acabam aqui. Além de correto, o desenho de 2014 pertence indubitavelmente a Robert Francis Prevost, hoje papa Leão XIV, tanto se ele o tiver comprado como se o tiver ganhado. Repito, pois: bastava copiar o escudo e acrescentar-lhe as insígnias pontifícias. Não se daria margem a questionamentos; no máximo, a juízos estéticos, que são, afinal, inevitáveis. Mas o desenho saído no dia 10 comporta sim dúvida quanto aos direitos autorais, já que o escudo é cópia daquele feito e publicado na Wikimedia Commons aos 6 de janeiro de 2015 por Alejandro Rojas (usuário SajoR), heraldista colombiano. (4)

Eu mesmo recorro com frequência a elementos disponíveis em repositórios, mas não vendo os desenhos que tão somente elaboro para ilustrar os meus apontamentos. Como declarei várias vezes neste blog, não sou artista, mas apenas um estudioso da heráldica. Muitíssimo diferente é o caso de quem desenha o brasão do papa! Trata-se de um chefe de estado, cujas armas são cunhadas em moedas, tecidas em reposteiros, adesivadas em veículos etc. Como não se cuidou de averiguar a originalidade das formas?

É verdade que se foram os consultores que socorriam a Sé Apostólica em matéria heráldica desde São João XXIII (leia-se a dita postagem antecedente). Mas é igualmente verdadeiro que não faltam bons profissionais na atualidade, cada um com diverso domínio técnico, talento artístico e estilo pessoal, como mostrarei na próxima postagem.

Notas:
(1) Em Portugal, os agostinhos punham o emblema da ordem sobre o peito duma águia de duas cabeças com o sol e a lua nas garras e um tinteiro e um cinto nos bicos.
(2) Até 6 de fevereiro deste ano, Prevost foi cardeal-diácono do título de Santa Mônica, que o papa Francisco criara especificamente para ele. Foi então que ascendeu a cardeal-bispo de Albano, mas isso não teve implicação heráldica. Durante o curto período em que a sua dignidade mais alta foi o arcebispado ad personam, as suas insígnias foram a cruz de duas travessas e o galero verde de vinte borlas; depois de elevado à púrpura, mudou apenas o galero vermelho de trinta borlas.
(3) Falta coesão ao brasonamento ("nel 1° d'azzurro a un giglio", "nel 2° di bianco, al cuore"), há erros de pontuação ("Il bianco [...], è un colore") e sintaxe ("riprende le parole di [che] sant'Agostino ha pronunciato").
(4) Os termos de uso estão na própria página do arquivo e estabelecem que se dê crédito ao autor e, caso se faça alteração, se compartilhe sob os mesmos termos.

19/05/25

O BRASÃO DO PAPA LEÃO XIV (I)

"O meu reino não é deste mundo." (Jo, 18, 36)

"O papa é pop". Quando o século XX começou, sentava-se no sólio petrino Leão XIII, o primeiro dos pontífices romanos que se deixou filmar por uma câmera. Perto do fim, o desenvolvimento dos meios de comunicação e transporte propiciaram a São João Paulo II fazer do papado um fenômeno de massa, daí a canção dos Engenheiros do Hawaii já em 1990. Desde então, poucos acontecimentos engajam mais a porção de maioria católica do orbe que a morte do Santo Padre e a eleição do seu sucessor imediato.

Não emprego fortuitamente o verbo engajar. O passamento do papa Francisco e o conclave que se seguiu aos ritos fúnebres e elegeu Leão XIV deram-se sob o domínio das redes sociais, cuja governança é, do ponto de vista moral, mais que questionável. Foi nesse ambiente que ocorreu a ordenação das novas armas pontifícias. A meu ver, de modo infeliz. Sobre esse aspecto, passo a lavrar uma breve crônica.

Foto oficial do papa Leão XIV com a sua assinatura e o seu brasão (imagem disponível na Vatican Media).
Foto oficial do papa Leão XIV com a sua assinatura e o seu brasão (imagem disponível na Vatican Media).

O dia 8 de maio entardecia em Roma quando a chaminé da Capela Sistina soprou fumaça branca. Os sinos das igrejas tocaram por toda a parte e os fiéis souberam, então, que findara a vacância da Sé Apostólica. Pouco mais de uma hora depois, o cardeal protodiácono Dominique Mamberti saiu à sacada da Basílica Vaticana e anunciou: "Habemus papam!". O Colégio Cardinalício elegera Robert Francis Prevost, que se impôs o nome de Leão XIV. Em seguida, o sumo pontífice saudou o povo na praça, dirigiu-lhe uma mensagem e abençoou a cidade e o mundo.

Antes que o papa voltasse aos negócios que o esperavam dentro do Vaticano, a comunidade heráldica já reagia. Isso foi natural, afinal todos os que entraram no conclave são bispos e, como tais, podem ter brasões de armas. Hoje, graças à amplitude e à solidez da Wikimedia, tornou-se muito fácil achar essas armas. Não obstante, o eleito à sucessão de Pedro pode manter aquelas de que vinha usando ou modificá-las, em qualquer caso acrescentando-lhes as insígnias do seu primado. Os heraldistas ganham, desse modo, oportunidade para fazer um bom debate.

Efetivamente, em 1978 Bruno Bernard Heim trocou por ouro a cor negra da cruz e do M que em campo azul até então trouxera por armas o cardeal Karol Wojtyła, agora papa João Paulo II. Em 2005, Andrea Cordero Lanza di Montezemolo criou um brasão novo para Bento XVI, aproveitando as figuras daquele usado pelo cardeal Joseph Ratzinger. Tanto o arcebispo Heim como o cardeal Lanza di Montezemolo trabalharam por longo tempo no serviço diplomático da Santa Sé e estudaram com afinco a heráldica da Igreja, a respeito da qual escreveram manuais didáticos (1). O segundo chegou a aperfeiçoar as armas do papa Francisco em 2013.

Em 2025, lamentavelmente não resta especialista da mesma altura, ao menos entre o clero. O arcebispo Heim (2003), o cardeal Lanza di Montezemolo (2017) e outros grandes mestres, como o teuto-brasileiro Paulo Lachenmayer, OSB (1990), foram-se há muitos anos. Não faltam, porém, artistas heráldicos, tanto bons quanto ruins. Ora, os mesmos repositórios online que difundem o conhecimento facilitam que qualquer um monte pretensos brasões sem rigor técnico nem compromisso ético. As mesmas redes sociais que divulgam os trabalhos dos talentosos propagam informações falsas. Como se não bastasse, o plágio legalizado, que é a inteligência artificial "generativa", piora tudo.

Assim, menos de 24 horas após o anúncio, alguns artistas saíram dos grupos fechados, postando nas redes sociais esboços de quais poderiam ser as armas de Leão XIV. Sem dúvida, gozavam da liberdade e do direito para fazê-lo, mas convinha? Só a pergunta já me parece conveniente, porque as coisas não se tornam virais na Internet pelo que as pessoas razoavelmente ponderam, mas pelo que a imagem sugere. Demorou, pois, poucas horas para que os exercícios artísticos evoluíssem para informações falsas e narrativas partidárias.

Notícia falsa sobre o brasão do papa Leão XIV.
Notícia falsa sobre o brasão do papa Leão XIV.

Infelizmente, a polarização política que em geral adoece a sociedade também fere o Corpo de Cristo. Na manhã da sexta-feira, dia 9, já me chegavam notícias que mostravam uma montagem: o escudo e o lema do cardeal Prevost, a tiara de São João Paulo II e as chaves do papa Francisco, tudo tomado dos desenhos mais usados na Wikipédia. Os textos afirmavam que era o brasão de Leão XIV e daí se levou isso às redes sociais, onde desencadeou uma batalha cultural pela tiara papal.

Emblema da Santa Sé (imagem disponível no website oficial).
Emblema da Santa Sé (imagem disponível no website oficial).

Nunca é excessivo esclarecer muito bem esse elemento da armaria pontifícia. Como objeto real, não é litúrgico; como objeto heráldico, não tem conotação espiritual. O objeto real foi formado nos séculos XIII e XIV, quando os pontífices romanos amiúde disputavam o poder com suseranos e vassalos. Logo, é uma insígnia secular, que assinala o poderio temporal do papa enquanto príncipe deste mundo. A insígnia espiritual, que distingue o bispo de Roma dos demais, são as chaves:

Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as forças do Inferno não poderão vencê-la. Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus. (Mateus, 16, 18–19)

Portanto, o servo dos servos de Deus não trabalha por um reino deste mundo, daí o gesto de São Paulo VI, quem antes de encerrar a terceira sessão do Concílio Vaticano II depôs a sua tiara sobre o altar da Basílica de São Pedro. Desde então, não se entronizam nem se coroam os papas, mas o recém-eleito preside a uma missa solene pelo início do seu ministério, onde recebe o pálio do pastor e o anel do pescador.

Armas do Vaticano (imagem disponível no portal da Santa Sé).
Armas do Vaticano (imagem disponível no portal da Santa Sé).

Enquanto objeto heráldico, a tiara continuou a timbrar o escudo pontifício até 2005, quando Bento XVI acolheu proposta do cardeal Lanza di Montezemolo, dando lugar a uma mitra, que "em recordação das simbologias da tiara, é de prata e tem três faixas de ouro (os três mencionados poderes de Ordem, Jurisdição e Magistério), ligados verticalmente entre si no centro para indicar a sua unidade na mesma pessoa". Considerando que isso aconteceu há vinte anos e adentramos o terceiro pontificado sob a mesma insígnia, creio que já podemos acolhê-la como objeto heráldico singular, denominando-a quiçá mitra papal.

Bandeira do Vaticano.
Bandeira do Vaticano.

Cumpre ressaltar que não se suprimiu, por isso, a tiara da heráldica papal, dado que está presente no emblema da Santa Sé, nas armas do Vaticano e na sua bandeira (2). É justo: a cidade-estado é um território deste mundo que assegura soberania à Santa Sé para governar a Igreja Militante. Apesar disso, a natureza do Vaticano difere bastante do Estado Pontifício, onde o pontífice regia uma numerosa população desde o Lácio até a Romanha, na Itália central, tendo de se encarregar da sua defesa, promover a sua prosperidade e prover os serviços públicos, tal qual um governante civil.

A era desses papas-reis findou em 1870 e São Paulo VI percebeu os sinais dos tempos em 1964, declinando do fausto monárquico. Virado o século, os papas têm preferido que os seus brasões os identifiquem como bispos de Roma, completando a mudança de ênfase, que é, de resto, coerente com o que cada um pregou ao solenizar o início do seu pontificado: nenhum disse que veio reinar, mas todos disseram que receberam o encargo de apascentar e pescar. A pompa principesca deu lugar à oração: "Omnes sancti et sanctæ Dei, vos illum adjuvate" ("Todos os santos e santas de Deus, ajudai-o").

"Brasão oficial do Santo Padre Leão XIV" (publicação da Secretaria de Estado da Santa Sé no X).
"Brasão oficial do Santo Padre Leão XIV" (publicação da Secretaria de Estado da Santa Sé no X).

Tudo se repete há tanto tempo que só o saudosismo de um papado medieval explica esse apego ao trirregno em pleno ano de 2025. As atribuições falsas de brasões alastraram-se de tal maneira ao longo da sexta-feira que na manhã de sábado, dia 10, a Secretaria de Estado publicou um desenho no X: "Stemma ufficiale del Santo Padre Leone XIV" ("Brasão oficial do Santo Padre Leão XIV"). Postas as circunstâncias, comentarei estritamente tal brasão na próxima postagem.

Notas:
(1) O arcebispo Heim publicou Heraldry in the Catholic Church: Its origin, customs and laws em 1978 (revisto, ampliado e traduzido para o italiano sob o título L'araldica nella Chiesa Cattolica: Origini, usi, legislazione em 2018) e o cardeal Lanza di Montezemolo com o padre Antonio Pompili, o Manuale di araldica ecclesiastica nella Chiesa Cattolica em 2014.
(2) A tiara também segue presente nos emblemas de alguns colégios, universidades e academias pontifícias.