20/10/23

BANDEIRAS CRUZADAS: DINAMARCA

Assim como nos brasões, o sinal da cruz nas bandeiras amiúde se prestou à lenda.

Outra das vantagens das bandeiras cruzadas era que se prestavam facilmente à lenda. Esta, em geral, divulgava o direito divino de quem empunhava uma bandeira dessas ou a justeza da sua causa perante a infidelidade ou perfídia do adversário. E isso muito antes das cruzadas.

Bandeira de Dinamarca.
Bandeira de Dinamarca.

Com efeito, Eusébio de Cesareia relata no Bíos Megálou Kōnstantínou ('Vida de Constantino o Grande', 337) que, após a conversão desse imperador romano à fé cristã em 312, ele e o seu exército viram uma cruz de luz sobre o sol junto com a sentença En toútōi níka, que em latim se difundiu como In hoc signo vinces, isto é, 'Com este sinal vencerás'. À noite, foi o próprio Jesus Cristo quem lhe apareceu em sonho e lhe mandou que fizesse um sinal semelhante em defesa contra os seus inimigos. Segundo o autor, esse sinal, dito lábaro, tinha a forma de uma cruz: a haste era rematada pelas letras Χ (qui) e Ρ (rô), iniciais de Χριστός ('Cristo'), e a trave sustentava um pano com as imagens do imperador e de seus filhos. Em seguida, Constantino venceu o usurpador Maxêncio na Batalha da Ponte Mílvia.

Tudo isso — a visão da cruz no céu, a aparição de Cristo em sonho, a vitória gloriosa sobre os infiéis ou pérfidos — tornou-se um lugar-comum da historiografia pré-científica no Ocidente. Por exemplo, o Milagre de Ourique, origem mítica das armas reais portuguesas, segue esse roteiro. No caso da Dinamarca, a versão clássica da lenda situa-se na Cruzada Livônia.

Conta-se que o rei Valdemar II estava com o seu exército em 1219 em Lyndanisse (hoje Tallinn), aonde fora socorrer os cavaleiros porta-espadas, quando os pagãos estônios o cercaram. Acuados em grave apuro, os cristãos clamaram por ajuda ao céu, de onde desceu, então, uma bandeira vermelha com uma cruz branca e se ouviu uma voz, dizendo que quem a levantasse logo derrotaria os seus oponentes. Foi o que aconteceu.

Armas e bandeira do rei da Dinamarca ("Die Koning van Denmarke") no Armorial de Gueldres (ms. 15652-56, conservado na Koninklijke Bibliotheek/Bibliothèque royale (KBR), Bruxelas).
Armas e bandeira do rei da Dinamarca ("Die Koning van Denmarke") no Armorial de Gueldres (ms. 15652-56, conservado na Koninklijke Bibliotheek/Bibliothèque royale (KBR), Bruxelas).

A atestação mais antiga da Dannebrog, como os dinamarqueses chamam a sua bandeira, está no Armorial do Arauto Gueldres (1395-1402), em que se veem as armas do rei da Dinamarca ("Die Koning van Denmarke"), isto é, de ouro com corações de vermelho e três leopardos de azul, lampassados de vermelho e coroados de ouro, alinhados em pala; elmo de ouro; paquife de arminho e vermelho; timbre: dois chifres de arminho com quatro leques de penas de pavão de sua cor. Ao lado do timbre, aparece uma bandeira vermelha com uma cruz branca.

É possível que o uso da cruz tenha começado durante o reinado de Valdemar IV, quem de 1356 a 1365 trouxe um selo que mostra um escudo com uma cruz e nos cantões as letras do seu nome, matizados de ornamentos tanto o campo como a peça. É provável que ele a tenha tomado da bandeira imperial de guerra (Sturmfahne). Com efeito, fora educado na corte de Luís IV e armado cavaleiro na Terra Santa pelo margrave de Brandemburgo e filho homônimo desse imperador. Portanto, identificava-se com os ideais do império e também da cruzada.

À sua vez, a Sturmfahne está descrita num termo que registra a investidura dos cônsules de Cremona em 1195: "Confanonus vero cum quo eos investivit erat rubeus, habens crucem albam intus" ("O gonfalão com o qual os investiu era vermelho, tendo uma cruz branca dentro"). No norte da Itália, aos gibelinos esse vexilo serviu de sinal da sua aliança ao Império, enquanto os guelfos — a cidade de Milão à sua cabeça — assumiram bandeiras exatamente inversas: uma cruz vermelha em campo branco/de prata.

Entretanto, no século XV a Sturmfahne era a própria bandeira imperial (a águia bicípite negra em campo dourado) com um pendão vermelho. Isso permitiu que a Dannebrog representasse inconfundivelmente o reino da Dinamarca não só na terra, como também no mar. Desde 1625 estabeleceram-se normas distinguindo a marinha real e a mercante. Essa distinção fazia-se, como ainda se faz, pela forma do batente: bífida para os navios do rei e reta para as embarcações mercantis. A proibição do pavilhão de guerra aos mercadores foi reafirmada até o fim desse século, mas no seguinte houve várias concessões sob certas circunstâncias por interesse do estado, como às companhias de comércio.

Bandeira estatal da Dinamarca.
Bandeira estatal da Dinamarca.

Apesar dessa liberalidade, uma circular vedou o uso civil da Dannebrog em terra a partir de 1834, até que outra em 1854 permitiu que qualquer um no reino a hasteie. Isso é muito curioso, pois foi precisamente nesse período que o romantismo popularizou a lenda da bandeira que caiu do céu. Ao mesmo tempo, contraria clarissimamente a afirmação frequente de que seja a bandeira nacional mais antiga em uso: em pleno século XIX, quando esse conceito era já extensamente praticado, a Dannebrog ainda era a bandeira do rei e do reino, mas não do povo.

Pavilhão de guerra da Dinamarca.
Pavilhão de guerra da Dinamarca.

Das mais antigas ainda vigentes são, isto sim, as regulações da bandeira dinamarquesa. As proporções do pavilhão de guerra foram definidas em 1696 e alteradas em 1856; as do pavilhão mercante, por portaria em 1748, relaxadas por circular em 1893. Trocando em miúdos, a bandeira nacional ainda obedece à norma do pavilhão mercante e a bandeira estatal (Rigets flag 'bandeira do Reino'), à do pavilhão de guerra, se bem que para este (orlogsflag) uma resolução em 1939 estabeleceu um vermelho mais escuro.

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