10/02/21

DE QUE MODO SE HÃO DE TRAZER AS ARMAS EM VESTIMENTAS

A heráldica foi codificada num período em que a sociedade ocidental amava a alegoria: o brasão é uma alegoria do seu portador, tornando-o presente quando ausente.


Do Tractatus de insigniis et armis (1358), de Bártolo de Sassoferrato:

(28) Quandoque dixi quod ista arma portantur insuper vestibus hominis, et tunc illud quod in armis habet se ut pars superior debet esse versus caput hominis, et quod vero habet se ut inferior, versus pedes. Item in eo quod depingitur in anteriori parte hominis, ut in pectore, pars nobilior armæ debet respicere latus dextrum, cum illa sit nobilior pars hominis et principium motus, ut in præcedentibus dictum est.

(29) De eo vero quod depingitur ex parte posteriori hominis potest dubitari. Pro cujus declaratione præmitto unam quæstionem quæ fuit inter Judæos et me cum hebraicum addiscebam. Dicebant enim quod mos scribendi noster non erat rationalis, incipimus enim a latere sinistro scribere et protrahimus litteram versus latus dextrum, et sic illud quod debet esse principium motus est terminus, et illud quod debet esse terminus est principium. E converso autem modus scribendi eorum est rationabilis, quia incipiunt a latere dextro et vadunt ad sinistram.

Ad quod tollendum dicebam quod aliquid rationabiliter fieri dicitur respectu finis ad quem ordinatur. Et ideo finis dicitur primum in intellectu operantis, et naturaliter hæc vera sunt et probantur per leges. Nam si in intellectu operantis finis sit rationabilis et si postea non sequitur, dicitur rationabiliter operari (D, 3, 5, 9 [1]). Sed scriptura fit ut legatur; legi autem est oculis perspici (D, 28, 4, 1, 1 [2]), et sic legi fit per visum. Videre autem est pati, ut philosophi dicunt. Scriptura autem repræsentata in oculis nostris agit in oculos nostros; oculus autem pati dicitur quod patet quia ex hoc læditur. Cum ergo scriptura agat in oculos nostros, debet incipi ista actio a latere dextro ipsius scripturæ, quia illud latus est principium motus seu actionis. Sed latus dextrum scripturæ quæ nos respicit est respectu lateris sinistri. Nam sicut si unus homo volvat vultum suum versus meum directo, latus ejus dextrum est respectu mei sinistrum. Et sic apparet quod nos scribendo magis rationabiliter operamur: inspicimus enim finem, scilicet ut a latere dextro scriptura in nobis incipiat operari; secundum modum Judæorum incipimus a latere sinistro.

Ad propositum quæstionis qualiter arma debeant depingi rationabiliter a parte posteriori super vestes hominis dico quod illa pars armæ quæ se habet ut anterior vel ut nobilior debet esse versus latus sinistrum hominis portantis. Ratio: quia illa arma fit ut alius respiciens retro illud videat: facies ergo illius armæ est a parte posteriori.

Sed finge hominem habere unam faciem retro, procul dubio latus quod ante erat sinistrum ex parte posteriori erit dextrum. Vel pone aliquem velle scribere latinum in spathulis alicujus, sine dubio incipiet a parte sinistra, quia illa respectu litteræ in se erat dextra, ut supra ostensum est.

(28) Disse que às vezes se trazem essas armas sobre as vestimentas do homem, então o que nas armas se acha como parte superior deve ficar em direção à cabeça do homem, e o que se acha, porém, como inferior, em direção aos pés. Outrossim, no que se pinta na parte anterior do homem, como no peito, a parte mais nobre das armas deve voltar-se para o lado direito, já que é a parte mais nobre do homem e princípio do movimento, como se disse nos parágrafos precedentes.

(29) Porém do que se pinta pela parte posterior do homem se pode duvidar. Para o esclarecimento disto, adianto uma questão que houve entre mim e os judeus, quando aprendia hebraico. Com efeito, diziam que a nossa regra de escrita não era racional. Com efeito, começamos a escrever do lado esquerdo e traçamos a letra para o lado direito. Assim, o que deve ser o princípio do movimento é o término e o que deve ser o término é o princípio. Inversamente, o seu modo de escrever é razoável, porque começam do lado direito e vão em direção à esquerda.

Para demovê-los disso, eu dizia que se diz que algo se faz razoavelmente com respeito ao fim ao qual se dispõe. Por isso, o fim é chamado de primeira coisa na percepção de quem opera, o que é naturalmente verdadeiro e provado pelas leis, pois se o fim na percepção de quem opera for racional, mesmo que depois não se siga, diz-se que opera racionalmente (D, 3, 5, 9 [1]). Ora, a escrita é feita para ser lida e ler é observar com os olhos (D, 28, 4, 1, 1 [2]). Assim, a leitura é feita pela vista e ver é sofrer, como dizem os filósofos: a escrita representada nos nossos olhos age nos nossos olhos; diz-se que o olho sofre, o que é claro, porque se fere em virtude disso. Como a escrita age nos nossos olhos, deve-se, pois, começar essa ação pelo lado direito da própria escrita, porque esse lado é o princípio do movimento ou da ação. Mas o lado direito da escrita que se volta para nós é o lado esquerdo relativamente ao nosso, tal como se um homem volver o seu rosto diretamente para o meu, o seu lado direito será o esquerdo relativamente ao meu. Assim, é claro que nós operamos mais razoavelmente ao escrever. Com efeito, observamos o fim: é evidente que a escrita comece a operar em nós do lado direito; segundo o modo dos judeus, começamos do lado esquerdo.

Em face da questão proposta de que modo se devem razoavelmente pintar as armas sobre as vestimentas de um homem pela parte posterior digo que a parte das armas que se acha como anterior ou mais nobre deve ficar em direção ao lado esquerdo do homem que as traz. Razão: porque se fazem essas armas para que outro observador as veja atrás: a face das armas fica, pois, do lado posterior.

Ora, finja-se que um homem tem uma face para trás: longe de qualquer dúvida, o lado que antes era o esquerdo será pela parte posterior o direito. Ou, por exemplo, alguém quer escrever latim nas espáduas de alguém: sem dúvida, começará da esquerda, porque será a direita relativamente à letra em si, como se mostrou acima.

Notas:
[1] D, 3, 5, 9: Sed an ultro mihi tribuitur actio sumptuum quos feci? Et puto competere, nisi specialiter id actum est, ut neuter adversus alterum habeat actionem. [1] Is autem qui negotiorum gestorum agit non solum si effectum habuit negotium quod gessit, actione ista utetur, sed sufficit, si utiliter gessit, etsi effectum non habuit negotium (Mas, além disso, é-me atribuída a ação dos gastos que fiz? Penso que compete, a não ser que se tenha feito especialmente de modo que nenhum dos dois tenha ação contra o outro. [1] Aquele que intenta uma ação dos negócios administrados, use a ação não só se o negócio que administrou teve efeito, mas basta se o administrou validamente, mesmo que o negócio não tenha tido efeito).
[2] D, 28, 4, 1: Quæ in testamento legi possunt, ea inconsulto deleta et inducta nihilominus valent, consulto, non valent (O que se pode ler num testamento, apesar de apagado e rasurado sem intenção, vale; com intenção, não vale).

Comentário:

Homenagem de Eduardo I, rei da Inglaterra, a Filipe IV o Belo, rei da França, em 1286, iluminada por Jean Fouquet nas Grandes chroniques de France entre 1455 e 1460 (BnF, Fr. 6465, f. 301v).
Homenagem de Eduardo I, rei da Inglaterra, a Filipe IV o Belo, rei da França, em 1286, iluminada por Jean Fouquet nas Grandes chroniques de France entre 1455 e 1460 (BnF, Fr. 6465, f. 301v).

Essa imagem ilustra a homenagem que Eduardo I, rei da Inglaterra, prestou em 1286 como duque da Aquitânia a Filipe IV, recém-coroado rei da França. Note, caro leitor, que ambos vestem uma túnica armoriada. Hoje, é impensável imaginar Elizabeth II num vestido todo estampado com as armas reais britânicas. Na verdade, essa moda não passou da Idade Média. Contudo, pelos padrões atuais não é nada absurdo que alguém use, por exemplo, certa peça azul com bolinhas brancas. Ora, essa estampa é a mesma dos escudetes das armas primitivas do rei português. Que se brasonem "de azul besantados de prata" é só particularidade da linguagem heráldica. Isso nos leva a uma hipótese que vem sendo levantada pelos estudiosos desde Charles du Fresne du Cange (1610-1688): a influência dos tecidos na origem da heráldica. Com efeito, é perfeitamente possível que as partições, peças e repartições de que tratei na postagem de 04/02 tenham sido tomadas de tecidos ornados com padrões geométricos, como ainda se pratica. Michel Pastoureau, num artigo anterior (1976) ao seu famoso Traité d'héraldique, já razoava:

Il semble bien que ce soient les bannières — et d'une manière plus générale les étoffes  qui aient joué le rôle le plus important, tant pour ce qui est des couleurs et des figures que pour ce qui est de leur emploi technique (règles) et de leur terminologie. Il est frappant de constater combien sont nombreux les termes de blason empruntés au vocabulaire des tissus : certainement plus de moitié des termes d'un usage courant au Moyen Age. (1)

Talvez as provas mais transcendentes de que o vestuário foi um suporte prestigioso do brasão sejam duas de natureza linguística, uma delas na nossa língua: na nobreza portuguesa o grau mais baixo ou, dito de outro modo, aquele com que o rei tirava um vassalo do número dos plebeus, era o fidalgo de cota de armas. A outra é que, por metonímia, essa mesma sobreveste passou a designar em inglês o próprio brasão: coat of arms. Era uma espécie de camisão, comprido até a metade das coxas, de mangas curtas ou sem mangas.

Fólio 1r das Chroniques de Jean Froissart (Koninklijke Bibliotheek, 72 A 25, c. 141o). Nas iluminuras veem-se várias sobrevestes armoriadas: a túnica (?) de Filipe VI, rei da França, e o tabardo do arauto inglês, ajoelhado diante daquele; as cotas de Afonso XI, rei de Castela, e Eduardo III, rei da Inglaterra.
Fólio 1r das Chroniques de Jean Froissart (Koninklijke Bibliotheek, 72 A 25, c. 141o). Nas iluminuras veem-se várias sobrevestes armoriadas: a túnica (?) de Filipe VI, rei da França, e o tabardo do arauto inglês, ajoelhado diante daquele; as cotas de Afonso XI, rei de Castela, e Eduardo III, rei da Inglaterra.

Depois, há uma maneira mais simples de ensinar a diferença entre a destra e a sinistra do brasão e a direita e a esquerda do observador do que evocar a escrita hebraica. Se não, vejamos:

Selo equestre de Dom Dinis (1318).
Selo equestre de Dom Dinis (1318).

Essa moldagem reproduz o selo equestre do rei Dom Dinis, impresso num documento de 1318, guardado nos Archives nationales de France, segundo Maria do Rosário Morujão em artigo de 2018. Para entender por que em heráldica se brasonam os lados ao contrário da observação, basta conceber um cavaleiro detrás do escudo, tal como se vê nesse selo: a sua direita é a destra do brasão e a sua esquerda, a sinistra (2). Mais que isso: essa concepção esclarece por que os pontos do escudo recebem nomes de partes do corpo humano: chefe (do francês chef e este do latim caput,capitis 'cabeça', que deu cabo em português), flanco, coração, (3), como expus na postagem de 31/01, aos quais agora acrescento o ponto de honra e o umbigo, respectivamente entre 2 e 5 e este e 8.

Pontos do escudo.
Pontos do escudo.

Observe, prezado leitor, que pela própria nomenclatura os pontos 2, 4, 5, 6 e 8 supõe uma pessoa detrás do escudo. Como resume Laurent Hablot num artigo de 2013:

L'effet produit par ces codes sémiologiques est donc bien de faire de l'écu armorié la figura de son titulaire. Ce principe, actif dès les origines du blason, va véritablement conditionner les pratiques héraldiques médiévales dans et hors de l'écu, dans la structure même du dessin, dans la hiérarchisation du contenu, dans la mise en scène des armoiries, dans la portée symbolique du bouclier armorié. (5)

Seja como for, a comparação com a escrita tem a sua utilidade. Mas antes de seguir, dois parênteses. O primeiro é que Cavallar et alii também duvidam de que Bártolo tenha aprendido hebraico, sob o argumento de que isso não está demonstrado alhures. Ora, o fato de ter dito addiscebam no De insigniis et armis não implica em que fosse fluente. Um estudo básico dessa língua para um intelectual do talhe do professor de Perúsia é perfeitamente plausível. Não à toa Cignoni chega a protestar contra esses editores, que parecem ter guiado a sua crítica por uma animosidade deliberada em face do próprio autor (sobre tudo isto, leiam-se as postagens de 25/01, 11/01 e 07/01). O segundo é que, reconhecido o esforço filosófico do doutor de Sassoferrato, seja da direita para a esquerda ou o inverso, ou, ainda, de cima para baixo, não há modos mais razoáveis de escrita. São diferenças meramente culturais (4).

Sequência dos elementos nas armas do marquês de Vila Real: esquartelado, no primeiro e quarto, de prata [1] com cinco escudetes de azul em cruz [2], carregados de cinco besantes de prata [3]; bordadura de vermelho [4], carregada de sete castelos de ouro [5]; brocante sobre tudo, um filete de negro em banda [6]; no segundo e terceiro de vermelho [7] com um castelo de ouro [8]; mantelado de prata [9] com dois leões batalhantes de púrpura, armados e lampassados de vermelho [10]; bordadura composta de ouro [11] e veiros [12], de dezoito peças; sobre o todo, partido de dois traços e cortado de um: o primeiro de azul [13] com um estoque de prata, empunhado de ouro [14]; o segundo, quarto e sexto de ouro [15] com quatro palas de vermelho [16] o terceiro e quinto de ouro [17] com dois lobos passantes de púrpura, um sobre o outro [18]; sobre o todo do todo, de ouro liso [19].
Sequência dos elementos nas armas do marquês de Vila Real: esquartelado, no primeiro e quarto, de prata [1] com cinco escudetes de azul em cruz [2], carregados de cinco besantes de prata [3], e uma bordadura de vermelho [4], carregada de sete castelos de ouro [5]; brocante sobre tudo, um filete de negro em banda [6]; no segundo e terceiro de vermelho [7] com um castelo de ouro [8]; mantelado de prata [9] com dois leões batalhantes de púrpura, armados e lampassados de vermelho [10]; bordadura composta de ouro [11] e veiros [12], de dezoito peças; sobre o todo, partido de dois traços e cortado de um: o primeiro de azul [13] com um estoque de prata, empunhado de ouro [14]; o segundo, quarto e sexto de ouro [15] com quatro palas de vermelho [16] o terceiro e quinto de ouro [17] com dois lobos passantes de púrpura, um sobre o outro [18]; sobre o todo do todo, de ouro liso [19].

Continuando, o brasão é, como eu já disse, um texto multimodal: visual e verbal. Como tal, supõe leitura e esta, à sua vez, comporta uma ordem de decodificação: no alfabeto latino escreve-se e lê-se da esquerda para a direita a partir do alto e na heráldica ordenam-se as armas no mesmo sentido, ainda que a destra preceda para a figura que tem uma dianteira e uma traseira visíveis. Não obstante, há uma diferença: a escrita corre simplesmente de um lado para outro, enquanto o brasão é formado por elementos sobrepostos, daí que a essa ordem anteceda, na verdade, outra, que parte do fundo para a superfície. As armas do marquês de Vila Real, que dei na postagem de 04/02 e volto a dar aqui, podem exemplificar bem isso: repare, prezado leitor, como os números se sucedem nas duas direções apontadas.

Notas:
(1) "Parece justamente que sejam as bandeiras — e de um modo mais geral os tecidos — que tenham desempenhado o papel mais importante, tanto no que diz respeito às cores e às figuras como no que diz respeito ao seu emprego técnico (regras) e à sua terminologia. É surpreendente constatar o quão numerosos são os termos de armaria emprestados do vocabulário dos tecidos: certamente mais da metade dos termos de uso corrente na Idade Média." (tradução minha)
(2) Na ortografia vigente da língua portuguesa, destra escreve-se com s. Com efeito, é o feminino substantivado de destro, do latim dexter, dextra, dextrum. Como é um vocábulo vernáculo, isto é, transmitido por meio do latim vulgar, o normal é que se escreva com s, ao passo que os cultismos, isto é, vocábulos tomados ao latim literário, se escrevem com a letra original, como o prefixo dextro-. O mesmo se aplica, por exemplo, a estender, do latim extendere, e extensão, de extensio,extensionis. Além disso, o português também tem a continuação vernácula do latim sinister, sinistra, sinistrum: é sestro, sestra, mas essa palavra está praticamente em desuso.
(3) Ponta é mais usual que , exceto na expressão pé ondado. No francês medieval, a analogia era perfeita: chief × pié, ou seja, 'cabeça' × 'pé', mas se perdeu no francês moderno devido à substituição de pié por pointe.
(4) Os textos remanescentes mais antigos na própria língua latina demonstram que primitivamente os romanos não só também escreveram da direita para a esquerda, mas ainda em ambas as direções, modo conhecido como bustrofédon: começava-se numa direção e ao fim da linha seguia-se abaixo na direção contrária.
(5) "O efeito produzido por esses códigos semiológicos é, pois, fazer justamente do escudo armoriado a figura do seu titular. Esse princípio, ativo desde as origens da armaria, vai verdadeiramente condicionar as práticas heráldicas medievais dentro e fora do escudo, na própria estrutura do desenho, na hierarquização do conteúdo, na realização do brasão, no porte simbólico do escudo armoriado." (tradução minha)

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