27/01/21

DE QUE MODO SE TRAZEM EM BANDEIRAS OS SINAIS QUE REPRESENTAM ALGO PREEXISTENTE

"A arte imita a natureza tanto quanto pode" é uma das frases mais potentes de Bártolo no De insigniis et armis, porque aí está a força da heráldica.


Do Tractatus de insigniis et armis (1358), de Bártolo de Sassoferrato:

(14) His præmissis, videamus qualiter portantur in vexillis illa signa quæ significant aliquam rem præexistentem. Ad quod dico quod ars imitatur naturam in quantum potest, unde ista signa debent fieri secundum esse et naturam rei quam figurant et non aliter (D, 1, 7, 16 [1]; D, 1, 7, 29 [2]; D, 1, 5, 14 [3]).

De natura autem vexilli, cum portatur in hasta, secundum illum usum ad quem vexillum est destinatum, hasta præcedit et vexillum sequitur. Unde quodcumque animal quod debemus pingere in vexillo facies ejus debet respicere hastam, cum de natura faciei sit antecedere.

Idem in omni re figurata quæ habet partes quæ denominantur per ante et post, ut in præcedenti membro dictum est. Tunc enim pars rei anterior debet esse versus hastam, alias enim videretur incidere tamquam monstrum. Sed si alicujus rei solummodo pars anterior portaretur pro armis, ut sunt quidam qui faciem arietis vel bovis pro signo suo portant, tunc non potest pars anterior respicere hastam, sed a latere respicit.

(14) Adiantado isso, vejamos de que modo se trazem em bandeiras os sinais que representam alguma coisa preexistente. A propósito disto, digo que a arte imita a natureza tanto quanto pode, daí que esses sinais devam fazer-se segundo o ser e a natureza da coisa que figuram, não de outro modo (D, 1, 7, 16 [1]; D, 1, 7, 29 [2]; D, 1, 5, 14 [3]).

Sobre a natureza da bandeira, como é levada numa haste, conforme o uso ao qual a bandeira está destinada, a haste precede e a bandeira segue. Daí que qualquer animal que devamos pintar na bandeira deve ter a sua face voltada para a haste, dado que é próprio da face preceder.

O mesmo em toda a coisa figurada que tem partes que se denominam por um diante e um detrás, como se disse no parágrafo precedente. Com efeito, a parte dianteira da coisa deve, então, estar em direção à haste; de outra forma ver-se-ia tombar para trás, tal qual um monstro. Mas se se trouxer apenas a parte dianteira de alguma coisa por armas, como alguns que trazem a cara de um carneiro ou de um boi por sinal seu, então a parte dianteira não pode voltar-se para haste, mas sim de frente.

Notas:
[1] D, 1, 7, 16: Adoptio enim in his personis locum habet in quibus etiam natura potest habere (Com efeito, a adoção tem lugar naquelas pessoas nas quais a natureza também pode ter).
[2] D, 1, 7, 29: Si pater naturalis loqui quidem non possit, alio tamen modo quam sermone manifestum facere possit velle se filium suum in adoptionem dare: perinde confirmatur adoptio, ac si jure facta esset (Certamente, se o pai natural não puder falar, mas puder, de um modo diferente da fala, tornar manifesto que quer dar seu filho à adoção, a adoção é igualmente confirmada, como se tivesse sido feita de acordo com o direito).
[3] D, 1, 5, 14: Non sunt liberi, qui contra formam humani generis converso more procreantur: veluti si mulier monstrosum aliquid aut prodigiosum enixa sit (Não são livres aqueles que, transtornado o costume, são engendrados contrariamente à forma da espécie humana. Por exemplo, se uma mulher tiver dado à luz algo monstruoso ou prodigioso).

Comentário:

Se entre os improváveis leitores houver algum versado na língua latina, talvez me tenha acusado de incúria por ainda não ter levantado nos comentários a questão da palavra insignia, presente no título do tratado e profusamente repetida ao longo do texto. Preencho esta lacuna agora. De fato, essa palavra não existe no latim clássico. Nessa norma, o correto é insigne, um substantivo neutro cujo nominativo-acusativo plural é insignia. Acontece que no latim medieval — o padrão no tempo de Bártolo —, tomou-se esse neutro plural por um feminino singular, o que, de resto, ocorreu na evolução do latim para as línguas românicas: folha vem de folia, plural de folium; pera, de pira, plural de pirum. Efetivamente, o latim vulgar transmitiu insignia para o espanhol (enseña), catalão (ensenya), francês (enseigne) e italiano (insegna), mas não para o português. Dispomos apenas do cultismo: insígnia.

Mas o que era um insigne? Era um sinal ou uma marca, também uma insígnia de função; especificamente no plural, eram os distintivos das patentes militares e das tropas. Ao longo da história romana, todas as insígnias de tropas só tiveram em comum o fato de que se penduravam no alto de uma haste: até as reformas de Mário (107 a.C.), eram esculturas de diferentes animais selvagens; depois, impôs-se a águia, símbolo de Júpiter, o deus tutelar do estado. Daí que esse insigne, próprio das legiões, tenha o nome de aquila. Outros insignia eram os signa e os vexilla. Um signum era uma haste carregada de coroas, efígies ou páteras. Um vexillum era literalmente um 'paninho' (diminutivo de velum, donde véu em português); também se trazia numa haste, estendido numa travessa. Como as bandeiras, da forma que as concebemos, e os brasões surgiram na Idade Média, adotaram-se as palavras vexillum e insigne para designar essas coisas em latim.

Cena n.º 8 da Coluna de Trajano (113 d.C.): veem-se uma aquila, um vexillum e alguns signa.
Cena n.º 8 da Coluna de Trajano (113 d.C.): veem-se uma aquila, um vexillum e alguns signa.

Seja como for, esse sistema semiótico caducou, assim como a moda das empresas ou divisas vogou durante os séculos XV e XVI e passou (sobre estas, leia-se a nota 8 da postagem de 11/01), como também tem passado a moda dos monogramas, em voga até pouco tempo atrás (alguém ainda costuma bordar o seu em toalhas, lenços e lençóis?). Em contrapartida, a heráldica está aí há incríveis novecentos anos! O que será que ela tem de diferente que tornou o seu sucesso tão singular? Presumo seja o que Bártolo diz nessa parte do tratado: a heráldica imita tanto quanto pode a natureza. Mais uma vez, o mundo lusófono dispõe de exemplos interessantes (1).

Com efeito, desde tempo antigo inventaram-se as explicações mais mirabolantes para a origem e o significado das armas reais portuguesas, hoje nacionais. Li algumas e ainda me ressinto do tempo perdido. A "clássica" é o chamado Milagre de Ourique: o próprio Jesus Cristo teria aparecido a Dom Afonso Henriques na véspera da batalha e lhe teria dado os escudetes postos em cruz em memória do preço com que comprou o gênero humano e os besantes, daquele com que foi comprado pelos judeus, como conta a terceira parte da Monarquia lusitana (1632), de Frei Antônio Brandão (2). A mais "acadêmica" é que, como só os soberanos podiam cunhar moeda, o primeiro rei português resolveu salientar pelo próprio brasão a quebra da vassalagem para com o rei leonês. Todavia, a minha humilíssima opinião é que as armas assumidas nas primícias da heráldica são arbitrárias e a sua escolha seguia, quando muito, o critério de maximizar a distinção de outras no entorno. Ora, o rei de Leão já usava do animal mais comum, o leão; o de Castela, da obra humana mais comum, o castelo; o de Aragão, da peça mais comum, a pala (ou faixa, dependendo do espaço em que se reproduzisse).

O ponto, caro leitor, é que a heráldica tem uma capacidade ímpar não só de significar, mas de ser significativa. Noutras palavras, ao imitar tanto quanto pode a natureza, a heráldica dota de significado a identidade do senhor feudal que assumiu figuras ou padrões geométricos meramente distintivos, depois mitificados, como também a do cavaleiro que assumiu algum sinal da sua ordem, ou a do bispo que assumiu algum da sua devoção, ou a do artesão, algum do seu ofício, ou a do fidalgo que reivindicou as armas dos seus (supostos) antepassados, ou a do capitalista que recebeu armas alusivas aos seus negócios, ou a de qualquer um de nós que livremente decida assumir armas para si e carregá-las de uma referência genealógica, religiosa, política, profissional ou outra.

Em particular, nesta postagem Bártolo fala-nos de uma heráldica que já tinha tantas regras quanto pôde observar no seu incompleto trabalho, mas distava muito da codificação extrema que na Idade Moderna quase a asfixiou.

F. 90r do armorial De ministerio armorum (John Rylands Library, Latin MS 28).
F. 90r do armorial De ministerio armorum (John Rylands Library, Latin MS 28).

O armorial conhecido como De ministerio armorum, elaborado por um arauto português em 1416, contém exemplos ilustrativos do que Bártolo razoa: observe, prezado leitor, que o fólio reproduzido na imagem acima traz quatro brasões em bandeiras e outros quatro em escudos. São as armas de Frederico o Belicoso, marquês de Meissen (primeiras armas), landgrave da Turíngia (segundas armas), marquês da Marca Oriental (terceiras armas), conde palatino da Saxônia (quartas armas), conde de Orlamünde (quintas armas), burgrave de Altenburg (sextas armas), barão de Isenburg (terceiro escudo, inacabado) e Pleissnerland (sétimas armas). Note que não apenas o leão da primeira bandeira se volta para a haste, mas o do primeiro escudo se acha no mesmo sentido, como se olhasse para a rosa das armas seguintes. 

Como o professor de Perúsia ensina, em heráldica tudo que figura de perfil e tem uma dianteira e uma traseira fica normalmente voltado para a destra (que corresponde à esquerda do observador). Mas na heráldica clássica, mais que obedecer a um ordenamento inflexível, o brasão adequava-se à superfície a ser armoriada. Já vimos isso em relação ao número de peças ou figuras repetidas. A virada de uma figura para a sinistra (a direita do observador), como se reverenciasse o que está a esse lado, é outro aspecto disso. Denomina-se cortesia heráldica.

Notas:
(1) A esta altura da escrita do blog, confesso que não planejei os comentários de antemão e me sinto muito satisfeito em os tecer sempre a partir da história e realidade lusófonas, alcançando o objetivo inicial de preencher um pouco a lacuna com que se depara quem procura na nossa língua portuguesa saber mais sobre heráldica.
(2) Essa lenda veio sendo elaborada pelo menos desde meados do século XV, mas o seu detalhamento merece uma postagem própria.

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