A figuração da cruz num pedaço de pano foi uma das operações semióticas mais bem-sucedidas da civilização ocidental.
Como pus na primeira postagem desta série, as bandeiras, tal como as concebemos, isto é, panos leves e fortes, fixados verticalmente a uma haste, difundiram-se da China para a Europa. Portanto, foi no Oriente Médio que os cristãos ocidentais as viram pela primeira vez ao confrontarem os muçulmanos pelo domínio da Terra Santa.
Bandeira da Inglaterra. |
Nesse momento — fim do século XI — ainda não havia heráldica e em face dos muçulmanos, que frequentemente escreviam versos do Alcorão nas suas bandeiras, aos cristãos bastava mostrar o símbolo da sua fé: a cruz. Assim começou uma história de sucesso, pois em vez de literalmente carregar uma cruz, pintá-la ou cosê-la num pano era muito mais fácil de fazer, de levar e de ver. Como então o antípoda era o Islã, cruzes de quaisquer formas serviam bem.
Com o desenvolvimento da heráldica, a cruz tornou-se tanto uma peça como uma figura muito estendida e, por isso mesmo, recebeu múltiplas formas, que começaram a distinguir pessoas e comunidades, assim religiosas como laicas. Algumas dessas cruzes vincularam-se a certos santos, os quais, sendo oragos dessas comunidades, as promoveram a verdadeiros emblemas coletivos. É o caso da cruz de São Jorge.
Segundo a tradição, São Jorge foi um soldado romano que pereceu sob a Grande Perseguição contra os cristãos em 303. Séculos depois, numa era em que a cristandade ocidental estava fortemente atravessada pelo ideal da cruzada, é compreensível que se tenha representado esse santo guerreiro como cavaleiro cruzado. Isso abrangia cota, bandeira, escudo e gualdrapa com uma cruz, que pouco a pouco se estabeleceu de vermelho em campo de prata. Ao mesmo tempo e em grande medida graças à Legenda áurea do bispo genovês Tiago de Varágine (morto em 1298), difundiram-se copiosamente lendas sobre esse mártir, como a de que salvou uma cidade contra a opressão de um dragão e as muitas de que socorria os seus devotos por meio de aparições milagrosas em batalhas, em que os ajudava a vencer os inimigos.
Eduardo III da Inglaterra com o manto da Ordem da Jarreteira no Livro de William Bruges (1430-40), primeiro Garter King of Arms ou rei de armas Jarreteira (Stowe MS 594, conservado na British Library). |
Por tudo isto, a bandeira branca com uma cruz vermelha, dita de São Jorge, divulgou-se em várias partes: Gênova, Catalunha, Aragão, Inglaterra, Portugal etc. Na Inglaterra, consta que o rei Eduardo I — que sucedeu a seu pai enquanto voltava da Nona Cruzada — usou de bandeiras de São Jorge nas suas campanhas contra os galeses e os escoceses, mas foi seu neto, Eduardo III, quem consagrou a devoção da Casa Real a esse santo quando fundou a Ordem da Jarreteira e a pôs sob o seu patronato em 1348. As armas dessa ordem eram, como ainda o são, um escudo de prata com uma cruz de vermelho, envolto na jarreteira que lhe dá nome.
Contudo, nesta matéria, como em tantas outras, a Grã-Bretanha apresenta a singularidade de nunca se ter passado lei sobre a forma e o uso da bandeira de São Jorge nem daquela de Santo André. Ao estudioso resta apontar certos fatos que findam na sua adoção como bandeiras nacionais.
Assim, após a fundação da Ordem da Jarreteira, conta-se que São Jorge apareceu aos ingleses na Batalha de Azincourt em outubro de 1415 e, tendo-a eles vencido, antes de o ano acabar um sínodo da igreja da Inglaterra declarou a festa desse mártir dúplice maior, "tamquam patrone et protectore dictæ nationis speciali" ("como padroeiro e protetor especial da dita nação"), segundo comunicou o arcebispo da Cantuária ao bispo de Londres.
Galé Subtle no Anthony Roll (1546): veem-se flâmulas com a cruz de São Jorge e o branco-verde da Casa de Tudor e outros vários vexilos, entre os quais a bandeira real (MS 22047, conservado na British Library). |
Em Azincourt, o exército inglês arvorou bandeiras das armas de Santo Edmundo, Santo Eduardo e São Jorge, cuja cruz também distinguia as vestes dos soldados do rei, tal como já se vinha praticando. As armas dos Santos Edmundo e Eduardo são imaginárias, respectivamente: de azul com três coroas de ouro e de azul com uma cruz florenciada de ouro entre cinco merletas do mesmo. Mas sob a Reforma Protestante, a primeira edição do Book of Common Prayer (1549) removeu do calendário litúrgico todas as comemorações de santos que não estão mencionados no Novo Testamento. A segunda edição (1552) introduziu três exceções: São Clemente, São Lourenço e São Jorge.
Sem a competição com os antigos reis santos, consagrou-se, pois, a representação do reino e povo inglês pela bandeira de São Jorge, servindo, já na segunda metade do século XVI, de pavilhão tanto à marinha de guerra como à mercante, a esta desde o século antecedente. Uma distinção foi introduzida por proclamação de Carlos I em 1634, que restringiu à armada real a Bandeira da União (Union Flag). Antes e desde 1606, tanto os ingleses como os escoceses deviam arvorar a dita bandeira no topo do mastro grande, podendo aqueles trazer a de São Jorge e estes a de Santo André no traquete.
Grande selo da República da Inglaterra, Escócia e Irlanda (1655-59; desenho de John Goldar, 1785; imagem disponível na National Portrait Gallery). |
A cruz de São Jorge é, em suma, notável precedente das bandeiras nacionais, pois a Coroa seguiu sendo representada, como ainda o é, pela bandeira real. Com isso certamente contribuíram dois fatos: a longa tradição parlamentar, que aproximava a monarquia inglesa ao estado moderno, e a pequenez e homogeneidade do reino, que aproximava a Inglaterra ao conceito contemporâneo de nação. Prova disso é o fato de que, durante o breve período republicano (1649-60), a cruz de São Jorge não só voltou a servir de pavilhão, mas também de armas estatais, combinando-se em ambos os símbolos com a harpa irlandesa e depois também com a cruz de Santo André.
"Engelse rode vlag" ("bandeira vermelha inglesa") no Nieuwe Hollandse scheepsbouw (1695), de Carel Allard. |
Restaurada a monarquia, o uso e a forma dos pavilhões retrocedeu, em tese, ao regramento de 1634, mas a marinha mercante abusava de tal modo da Union Flag que falsários chegaram a adulterá-la para se passarem por navegantes ao serviço da Coroa. Daí a imposição do inconfundível Pavilhão Vermelho (Red Ensign): por proclamação em 1674, Carlos II determinou que os mercadores deviam arvorar a bandeira de São Jorge e um pano vermelho com esta mesma no cantão.
A Batalha de Terheide, de Jan Abrahamzoon Beerstraaten (1622-66). A batalha aconteceu em 1653, durante a Guerra Anglo-Holandesa, e na pintura veem-se bandeiras da República da Inglaterra e Irlanda (a cruz de São Jorge e a harpa irlandesa lado a lado), bandeiras de São Jorge, Red Ensigns e Blue Ensigns, além da Prinsenvlag (imagem disponível no portal do Rijksmuseum). |
A bandeira de São Jorge estava, ainda, presente noutros pavilhões navais, pois desde o fim do século XVI ela figurava no cantão de panos lisos ou listrados de diferentes cores, distinguindo as esquadras que compunham certa frota. Ao longo do século seguinte, procurou-se regular isso de tal forma que desde a Guerra Anglo-Holandesa (1652-54) havia uma esquadra vermelha, outra branca e uma terceira azul, sendo cada uma dessas cores a do pavilhão distintivo que a esquadra mostrava.
Finalmente, em 1706 e 1707 firmaram-se os Artigos da União, passaram-se os Atos da União e constituiu-se o Reino Unido da Grã-Bretanha. No que respeita às bandeiras, por proclamação no dito ano de 1707, a rainha Ana resolveu manter a Union Flag para identificar a nova Marinha Real Britânica, mas trocou a bandeira de São Jorge pela Union Flag nos cantões de todos os pavilhões.
Pavilhão naval da Grã-Bretanha. |
Ao mesmo tempo, o campo da White Ensign fora carregado de uma cruz chã vermelha, transformando-a, então, numa bandeira de São Jorge com a Union Flag no cantão. É plausível que esse acrescentamento se tenha feito devido à abundância de pavilhões brancos no começo do século XVIII (França, Espanha, Portugal etc.). Desde 1864, é o pavilhão naval da Grã-Bretanha, pois nesse ano se aboliram os distintivos de esquadra, reservando-se a White Ensign à Marinha Real.
Novamente por causa das particularidades constitucionais britânicas, atualmente não há um uso estatal constante da bandeira inglesa, porque diferentemente dos demais países constituintes, aos quais o Parlamento do Reino Unido devolveu certas matérias, dotando-os de poderes legislativos e executivos, a Inglaterra não tem parlamento nem governo próprio que hasteie regularmente a bandeira do país. Isso a tornou praticamente uma bandeira festiva: costuma ser exibida na Festa de São Jorge, que é o dia nacional da Inglaterra, e por ocasião de eventos esportivos, especialmente naqueles em que não há uma equipe britânica conjunta.
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