A sujeição dos povos eslavos aos impérios que dominavam a Europa Oriental fomentou uma ideologia influente nas bandeiras: o pan-eslavismo.
Embora a Reforma tenha cindido a cristandade ocidental para sempre, a permanência da língua latina no ensino, na ciência e na diplomacia durante a Idade Moderna permitiu que os católicos e os protestantes formassem uma comunidade de ideias: Galileu, Descartes, Espinosa, Leibniz, Lineu podiam ser lidos da Finlândia a Portugal e da Islândia a Malta.
Bandeira nacional da Sérvia. |
Os ortodoxos ficaram fora dessa "República das Letras". Ao leste porque, detrás das fronteiras suecas e polacas, a Rússia esteve encerrada até que o tsar Pedro I começou a abri-la no fim do século XVII. Ao sul porque esses cristãos viviam sob o domínio otomano. Isso é notável entre os povos que foram divididos por essas duas realidades, como os rutenos (ucranianos) e os romenos: dentro da Polônia e da Hungria puderam participar muito mais da vida europeia.
Isso começou a mudar em 1774, quando a Rússia acabou com a hegemonia otomana no mar Negro, impondo-lhe cláusulas não só comerciais, como a passagem livre das suas embarcações mercantes pelos estreitos, mas também a proteção da religião cristã e das suas igrejas pela Sublime Porta. A percepção de que a Rússia era a única potência que defendia os cristãos do Império Otomano foi substancial para o pan-eslavismo, especialmente nos Bálcãs.
A primeira vez que os sérvios se levantaram contra os otomanos na Idade Contemporânea foi em 1805, mas estes os sufocaram. A Rússia interveio em favor deles, pactuando uma anistia com a Sublime Porta em 1812, mas se perpetraram atrocidades contra o povo, o que provocou um segundo levantamento em 1815. Esse teve um pequeno sucesso, pois em 1817 Miloš Obrenović fez um acordo com o vizir de Belgrado para administrar os negócios interiores da Sérvia com o título de príncipe. Novamente, foi decisiva a intervenção da Rússia: pelo Tratado de Adrianópole (1829), instou o Império Otomano para resolver a questão sérvia. No ano seguinte, o sultão reconheceu o príncipe Miloš como dinasta e governante, ainda que tenha permanecido sob a sua suserania.
Mas logo o poder absoluto do príncipe causou tanta insatisfação que ele teve de aceitar uma constituição, a qual foi promulgada em 1835. Segundo o artigo 3.º, a bandeira nacional era "vermelha brilhante, branca e da cor de aço fosco" ("otvoreno-crvena, bjela i čelikasto-ugasita"). O problema é que a ordem estabelecida pelo Congresso de Viena era muito reticente a regimes constitucionais. Ora, nem o suserano império, nem a vizinha Áustria, nem a amistosa Rússia tinham então constituição e, a julgar pela má acolhida da bandeira, essa sibilina redação descrevia uma tricolor de faixas verticais, vermelha, branca e azul, o que pareceu semelhante demais à bandeira francesa, que nesse momento simbolizava a vitória do ideal revolucionário sobre a restauração borbônica.
Assim, a vigência da constituição não passou de dois meses, mas infundiu nos sérvios a vontade de ter uma bandeira. Ainda em 1835, o príncipe mesmo foi a Constantinopla para negociar o status do país, inclusive a concessão de um pavilhão mercante, o que se fez por fermã de Mamude II em fevereiro do ano seguinte: uma tricolor de faixas horizontais, vermelha, azul e branca.
Pavilhão da Sérvia no J. Siebmacher's grosses und allgemeines Wappenbuch, de Adolf Maximilian Gritzner (1878). Nesta ilustração, as estrelas e a figura central divergem do estabelecido pelo firmã de 1838. Talvez reflita uma variação real ou seja um erro do autor, devido ao desconhecimento do objeto, já que a frota sérvia era modesta e navegava mormente pelo rio Danúbio. |
Todos estes fatos deixam pouca dúvida sobre a relação da bandeira sérvia com a russa, pois até das negociações do príncipe junto à Sublime Porta o encarregado russo tomou parte. Com efeito, tanto a bandeira sérvia semelhou a russa de cabeça para baixo que em 1838 outro fermã acrescentou quatro estrelas à faixa vermelha junto à tralha e as armas principescas ao meio da faixa azul. Essas estrelas assinalavam a suserania otomana e foram, portanto, retiradas em 1878, quando o Tratado de Berlim reconheceu a independência da Sérvia.
Bandeira estatal da Sérvia. |
Por fim, em fevereiro de 1882 a Assembleia Nacional elevou o principado a reino e em junho para representar tal estatuto passou uma lei assumindo um brasão novo, o qual, como o antigo, carregava o centro da bandeira.
Bandeiras da Iugoslávia no Flags of maritime nations (1943-45). |
Embora a relação da bandeira sérvia com a russa pareça bastante segura, é igualmente certo que na década de trinta não cabe falar de cores pan-eslavas. Já a bandeira do Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos, era a mesma que o Congresso Eslavo de 1848 adotara: uma tricolor de faixas horizontais, azul, branca e vermelha. Esse estado constituiu-se em 1918, após a queda da monarquia austro-húngara, unindo os eslavos que tinham sido súditos de Sua Majestade Imperial e Real ao reino sérvio, daí o nome que tomou em 1929: Iugoslávia ('Eslávia do Sul').
Selos postais iugoslavos de 1980 com as bandeiras estatal e das repúblicas federadas. |
Ao fim da Segunda Guerra Mundial, o Partido Comunista da Iugoslávia, que encabeçara a resistência contra a ocupação do Eixo, instaurou uma república federativa socialista, mas ao contrário dos bolcheviques em 1917, que julgavam o nacionalismo uma ideologia burguesa, em 1945 o socialismo já não impunha a destituição dos símbolos nacionais, ao menos a bandeira. Preservou-se, pois, a tricolor azul, branca e vermelha e para exprimir o ideal comunista sobrepôs-se uma estrela vermelha com um perfil amarelo. Como nesse período a Sérvia era uma das repúblicas federadas, a Constituição de 1947 restaurou a tricolor vermelha, azul e branca com a mesma estrela sobreposta.
Sem a estrela, a dualidade do azul-branco-vermelho iugoslavo e do vermelho-azul-branco sérvio sobreviveu à queda do regime em 1990 e à guerra que se seguiu em meio à desintegração da Iugoslávia, já que Slobodan Milošević, então presidente da Sérvia, sustentou o projeto federativo com Montenegro até a sua renúncia e subsequente prisão por crimes contra a humanidade em 2001. Em 2003, a República Federal da Iugoslávia deu lugar, então, à União Estatal da Sérvia e Montenegro, ainda sob a tricolor azul, branca e vermelha, mas essa derradeira tentativa durou apenas três anos: Montenegro separou-se e a Sérvia adotou uma constituição nova, cujo artigo sétimo pospôs a uma lei complementar a regulação do brasão e da bandeira.
A lei a que a constituição remete foi, enfim, passada em 2009 e estabelece duas bandeiras, uma estatal, com as pequenas armas, e a outra nacional, sem as pequenas armas, mas as disposições sobre o uso de uma e da outra são complexas e confusas. Isso reflete, na verdade, uma constante histórica, pois desde o fermã de 1838 os sérvios mantiveram o uso civil da tricolor sem o brasão. Com o tempo, ela passou a representar a nação, enquanto a presença do brasão assinalava, como ainda assinala, o estado. O problema é que, nesse caso, a nação é bem maior que o estado.
Bandeira da República Sérvia (Bósnia e Herzegovina). |
Convém observar que os bósnios, croatas, montenegrinos e sérvios falam, de uma perspectiva estritamente linguística, o mesmo idioma, ainda que cada povo lhe dê o seu próprio nome e o regule pela sua própria padronização. O que distingue mais visivelmente os sérvios é o uso do alfabeto cirílico e a adesão à Igreja Ortodoxa Sérvia, mas as fronteiras étnicas nunca coincidiram com as fronteiras políticas. Isso sempre causou conflitos na região, inclusive as guerras no último decênio do século passado. Na Bósnia, a solução foi repartir o país entre dois entes federados: a Federação da Bósnia e Herzegovina e a República Sérvia (Republika Srpska). Desta a bandeira é, precisamente, a tricolor vermelha, azul e branca com outras proporções e tonalidades. Com um brasão no centro, também serviu de bandeira à República Sérvia da Krajina, estado não reconhecido dos sérvios na Croácia de 1991 a 1995, o qual evacuou a maior parte da população após a ofensiva final das forças croatas.
Dentro dessa conjuntura, é compreensível que os cidadãos da República da Sérvia usem da bandeira estatal por a perceberem como a bandeira do país, ao passo que a ausência do brasão permite que a tricolor alcance os seus compatrícios além das fronteiras desse país (a "Grande Sérvia").
Pequenas e grandes armas da Sérvia (imagem disponível no portal do governo sérvio). |
Um elemento desse brasão merece um derradeiro apontamento. O artigo 10.º da lei de 2009 afirma que ele é o estabelecido pela lei de 1882. Trocando em miúdos, a República da Sérvia assumiu as armas do Reino da Sérvia, com coroa real e pavilhão. Isso aconteceu, na verdade, noutros países da Europa Oriental após a queda do socialismo: a Hungria, a Rússia, a Bulgária e Montenegro repuseram a coroa como ornamento externo e a Polônia, a Tchéquia e a Romênia, sobre as cabeças das águias e do leão. Isso quer dizer que no fim do século passado e no começo deste restaurações monárquicas se tornaram tão improváveis que se ressignificou essa figura: não mais a forma do estado, mas a sua soberania, independentemente da forma.
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