A escolha de certa cor não acontece aleatoriamente, mas é sugerida por referências habituais.
Curiosamente, o Livro do Armeiro-Mor contém um dos testemunhos mais antigos das armas que representariam definitivamente a Irlanda a partir do reinado de Isabel I (1558-1603). Como razoei na postagem de 01/05/2021, o capítulo dessa obra que abrange os brasões dos reis e príncipes cristãos e mouros foi tirado do Armorial Wijnbergen. Embora este remonte ao fim do século XIII, a literatura heráldica atribuía diversas insígnias ao soberano da Irlanda. Somente a partir de Jaime I (1603-25) é que a harpa de ouro (depois cordada de prata) em campo de azul compôs, como ainda compõe, o terceiro quartel das armas reais britânicas.
Bandeira da Irlanda. |
Apesar da estabilidade que a realeza deu ao sinal da harpa, não é o azul, mas sim o verde a cor nacional da Irlanda. A sua atestação mais antiga acha-se na correspondência do P.e Luke Wadding durante a guerra dos católicos confederados contra o domínio protestante. Consta aí que Owen Roe O'Neill (Eoghan Ruadh Ó Néill) arvorou um pavilhão verde com uma harpa amarela em 1642. Não obstante, foi a Society of United Irishmen ('Sociedade dos Irlandeses Unidos') que difundiu tal bandeira a partir de 1798, quando, inspirada pelas Revoluções Americana e Francesa, provocou uma revolta republicana.
Armas da Irlanda. |
Segundo Brian Ó Cuív em artigo de 1978, o verde aparece vinculado de modo recorrente à Irlanda na literatura irlandesa, o que vem ao encontro do que tenho observado neste blog: a escolha de certa cor não acontece aleatoriamente, mas é sugerida por referências habituais. Na verdade, o título do citado artigo — The Wearing of the Green — repete o de uma famosa balada sobre a Revolta de 1798. Ademais, da perspectiva heráldica, o verde parece uma solução inteligente, já que permitiu a conservação do brasão promovido pela monarquia e, ao mesmo tempo, marcar distanciamento desse regime. A República da Irlanda soube aproveitar bem isso: a bandeira das armas serve de estandarte presidencial, enquanto a bandeira verde é o jaque naval.
Estandarte presidencial da Irlanda. |
A tricolor verde, branca e alaranjada surgiu na conjuntura de outra revolução francesa, a de 1848, daí o seu arranjo vertical. Consta que Thomas Francis Meagher, um Young Irelander ('Jovem Irlandês'), trouxera essa bandeira da França, aonde fora saudar a nova república, e a desfraldou em março desse ano sobre a sede da sua organização, em Waterford. A respeito dela no mês seguinte em Dublin, ele apregoou que "the white in the centre signifies a lasting truce between Orange and Green and I trust that beneath its folds the hands of Irish Protestants and Irish Catholics may be clasped in generous and heroic brotherhood" ("o branco no centro significa uma trégua duradoura entre o Laranja e o Verde e eu confio que sob as suas dobras as mãos dos irlandeses protestantes e dos irlandeses católicos possam unir-se em generosa e heroica fraternidade").
Jaque naval da Irlanda. |
Com efeito, em contraposição ao crescente compromisso dos United Irishmen com a causa católica, em 1795 fundou-se a Orange Order ('Ordem de Orange'), cujo nome homenageia Guilherme III, rei da Inglaterra, Escócia e Irlanda e príncipe de Orange (1), porque a sua ascensão ao trono não se deveu ao melhor direito, mas sim para garantir que a Coroa permanecesse protestante. Carlos II, seu antecessor e cunhado, fora deposto pela Revolução Gloriosa porque professava o catolicismo e isso causava problemas.
Contudo, a tricolor só venceu a popularidade da bandeira verde após o Levante da Páscoa, em 1916. Daí que em 1922, quando a república revolucionária deu lugar por tratado de paz com a Grã-Bretanha ao Estado Livre Irlandês, este se tenha cingido a acolher o uso já espontâneo da tricolor. A primeira e vigente norma sobre ela é a Constituição de 1937, cujo artigo 7.º diz que "a bandeira nacional é a tricolor verde, branca e laranja". Em vez de lei, o Departamento do Taoiseach ('Primeiro-Ministro') emite 'diretrizes' (guidelines) sobre a sua forma e o seu uso.
Tanto em 1848 como em 1922, a tricolor foi adotada com a esperança de que unisse todos os irlandeses, mas à medida que o estado irlandês se afastava do britânico, rompendo o derradeiro laço em 1949, ao se tornar uma república, na Irlanda do Norte essa bandeira transformava-se num sinal de divisão, pois passou a representar apenas os irlandeses católicos e republicanos. O dissenso é tão grave que, embora o Acordo da Sexta-Feira Santa tenha apaziguado a região desde 1998, a Irlanda do Norte ainda não possui bandeira.
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