03/12/24

OS DEZ MAIS ANTIGOS (I)

Brasão de armas de Gil e Vicente Simões.

O brasão mais antigo dentre os concedidos pelos reis de Portugal é aquele que os irmãos Gil e Vicente Simões receberam em 1438. Eis a carta de Dom Duarte:

Armas de Gil Simões: "ũu escudo branco com ũa ponta verde e, em ele, ũu lião negro rompente, gretado d'ouro, com unhas e língua vermelha".
Armas de Gil e Vicente Simões: "Ũu escudo branco com ũa ponta verde e, em ele, ũu lião negro rompente, gretado d'ouro, com unhas e língua vermelha".

Dom Duarte etc. A quantos esta carta virem, fazemos saber que Gil Simõez, cavaleiro nosso criado, nos disse, como bem sabiamos, a grã criação per longo tempo que em ele fizemos e seu irmão Vicente Simõez, escudeiro da nossa Casa. E esso meesmo os muitos e bõos serviços que deles tinhamos recebidos em a guerra dos mouros, que ora com eles houvemos. E como, outrossi, fôrom com o Ifante Dom Hanrique e com o Ifante Dom Fernando, meus irmãos, sobre Tânger cercados com eles em o palanque do infindo poderio dos mouros, que sobre eles veo, seendo eles per nosso serviço em muitas e bõas cousas e feridos per muitas vezes, postos em grandes trabalhos e perigos, guerreando contra eles per terra e per mar, a guisa de bõos em navios e em fustas nossos e seus, seendo deles capitães, dando sempre de si conto de bõos. E que pero que assi sejam hómẽes de boa geeração e tenham dívido com algũus bõos cavaleiros fidalgos dos nossos Reinos, de que eles poderiam trazer suas armas ou sinaes direitamente, a eles prazia mais de lhas nós darmos per seus bõos merecimentos que as haverem per outra maneira. E que porém nos pediam por mercee que em galardão de seus bõos costumes e serviços e trabalhos nos prouvesse de lhe dar armas que eles e todos de seu linhagem possam trazer e se refertar por fidalgos e gentis-hómẽes e gouvir de tôdolos privilégios e liberdades de fidalgos e gentis-hómẽes. E nós, veendo seu justo pedir, seendo em verdadeiro conhecimento de todos seus bõos feitos e serviços, que deles temos recebidos e entendemos de receber, e querendo-lhe fazer graça e mercee, como a aqueles que por nosso serviço e seu bõo acrecentamento sempre se trabalhárom de acrecentar de louvor d'armas, presente os nobres do nosso Conselho e fidalgos, cavaleiros e gentis-hómẽes da nossa Corte e oficiaes d'armas, segundo se per direito requere, lhe damos e outorgamos que eles hajam e possam trazer daqui em diante por armas, pera eles e tôdolos do seu linhagem, que deles vierem e descenderem, ũu escudo branco com ũa pinta [sic] verde e, em ele, ũu lião negro rompente, gretado d'ouro, com unhas e língua vermelha, as quaes armas lhe nós damos e outorgamos pera eles e tôdolos que deles vierem e descenderem, e os havemos por fidalgos e gentis-hómẽes. E queremos e mandamos que hajam tôdolos privilégios e liberdades e honras que os fidalgos hão e de direito devem haver, como aqueles que per seus merecimentos o merecem. E em testemunho delo lhe mandamos dar esta nossa carta, assinada per nós e asseelada do nosso seelo do chumbo. Dante em a vila d'Avis, dez dias de julho. Martim Gil a fez. Era de 1438 anos. (em leitura nova, Míst., liv. 4, fl. 45; na Chanc. de D. Duarte, liv. 1, fl. 236)

Este documento revela bem mais do que parece à primeira vista. Para começar, a sua forma não mostra titubeio; ao contrário, já se compõe das partes que permaneceriam muito estáveis até o fim da monarquia:

  • Protocolo inicial (titulação e direção): "Dom Duarte etc. A quantos esta carta virem, fazemos saber...".
  • Texto:
    • Exposição: "que Gil Simõez, cavaleiro nosso criado, nos disse, como bem sabiamos...";
    • dispositivo: "E nós, veendo seu justo pedir... lhe damos e outorgamos...".
  • Protocolo final (subscrição e data): "E em testemunho delo lhe mandamos...".

Mesmo admitindo que diplomas têm, em geral, essa estrutura, a fluência do texto torna improvável que estejamos diante do primeiro espécime do seu gênero. Com efeito, sabemos que havia oficiais de armas na Corte portuguesa desde o reinado de Dom João I, pai e antecessor de Dom Duarte. De um deles a literatura heráldica desde os Triunfos de la nobleza lusitana (1631), do padre Antônio Soares de Albergaria, menciona o nome: Harrieta. Tal nome sugere origem anglo-normanda, quiçá alguém do séquito da rainha Dona Filipa. (1)

Ademais, conhecemos ao menos um brasão que Dom João I deve ter concedido: o de João das Regras. Este jurista defendeu a causa do Mestre de Avis nas Cortes de 1385, que acabaram aclamando-o rei de Portugal. O Doutor João foi chanceler-mor do mesmo rei e reitor da Universidade de Lisboa. Morreu em 1404 e está sepultado na igreja do antigo Convento de São Domingos, em Benfica. O túmulo ostenta oito escudos das suas armas: uma aspa de filetes entre duas cruzes florenciadas e vazias no alto e no baixo e duas serpes nos flancos. A primeira iluminura acha-se no Tesouro de nobreza (1675), de Francisco Coelho: o campo vermelho e todas as figuras de ouro. (2)

Portanto, a carta de Gil e Vicente Simões marca possivelmente a integração plena do brasão ao sistema das mercês régias, de modo que a partir daí se passou a registrar regularmente as cartas de armas novas na Chancelaria Real.

Outro aspecto da concessão heráldica que já aparece neste espécime e se praticou perenemente é a nobilitação. Trocando em miúdos, a carta de armas não só concedia certo brasão a alguém, mas também o tirava do "número dos plebeus", enobrecendo-o ("e os havemos por fidalgos e gentis-hómẽes"). Daí que a mercê abrangesse "tôdolos privilégios e liberdades e honras que os fidalgos hão e de direito devem haver".

Convém lembrar (leia-se a postagem de 11/01/21) que em 1476 Dom Afonso V, filho e sucessor de Dom Duarte, ao delegar no rei de armas Portugal a potestade de passar as mercês heráldicas da Coroa, revela que nos seus reinos e senhorios os plebeus podiam ter brasões, ainda que neles lhes vedasse o emprego dos metais. Portanto, a nobilitação via carta de brasão cooperou para que essa espécie de emblema evoluísse de identificador pessoal na Idade Média a marca de nobreza e honra na Moderna. Essa evolução já se encontra acabada no regimento manuelino (1512), de tal maneira que do sujeito cujo foro nobre era reconhecido por carta de brasão se diria fidalgo de cota de armas.

Não obstante, a precedência da nobilitação à fidalguia de linhagem diverge fortemente da prática posterior. Ora, o nosso texto ressalta que Gil e Vicente Simões eram "hómẽes de boa geeração" e tinham "dívido com algũus bõos cavaleiros fidalgos" (3), mas preferiram receber armas novas por mercê do rei como recompensa dos seus merecimentos. Isso rareou cada vez mais até desaparecer no século XVIII.

É verdade que ao findar o século XVI restavam apenas três praças sob domínio português no Algarve d'além-mar (Ceuta, Tânger e Mazagão) e as conquistas em Marrocos propiciaram a maioria das concessões de armas novas a partir dos próprios Gil e Vicente Simões, que "fôrom com o Ifante Dom Hanrique e com o Ifante Dom Fernando [...] sobre Tânger cercados com eles em o palanque do infindo poderio dos mouros" (o chamado Desastre de Tânger, em 1437). Mas depois também não faltaram oportunidades para façanhas dignas de novos brasões, como a Guerra Luso-Holandesa (1603–61) ou a da Restauração (1640–68). O problema é que a ênfase da heráldica gentilícia veio recaindo mais e mais sobre a genealogia.

Há outras essenciais diferenças entre a heráldica na carta de Gil e Vicente Simões e a estatuída posteriormente, a começar pela concessão das mesmas armas a duas pessoas. Tampouco se dava timbre. Contudo, na armaria portuguesa desde Dom Manuel I, o brasão é individual, ainda que possa compor-se das armas de várias linhagens, e o timbre se tornou um elemento indispensável.

Com relação ao brasonamento, não se descreviam as armas a partir da figura principal, mas de baixo para cima. Acerca da primeira figura, a literatura heráldica concorda que pinta é erro de cópia por ponta e tal ponta é um monte. Similarmente, tem-se interpretado que o termo gretado exprime estar o leão semeado de manchinhas como gotas, talvez por influência de outros casos (a águia dos Maias, as cabras dos Resendes etc.). Pessoalmente, imagino que por ponta se tenha designado uma campanha e a semeadura seja mesmo de gretas (4), porém optei por reproduzir tudo conforme a tradição. Observe-se, enfim, que se diz branco por prata, confusão que perduraria longo tempo na heráldica portuguesa.

Por acaso, Vicente Simões morreu sem descendência, portanto as armas foram transmitidas à de Gil. Este casou duas vezes: primeiro com Inês de Vilhena, depois com Teresa Valarinho. Aquele matrimônio gerou Vicência, que casou com Rui de Faro, cujos descendentes conservaram o apelido/sobrenome Simões até a oitava geração (5). O segundo gerou Vicente Simões Valarinho, que fundou a Capela de Nossa Senhora da Encarnação na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, em Portimão, onde foi sepultado sob campa com as suas armas. Seus descendentes usaram do dito sobrenome até a quarta geração.

As armas de Gil Simões foram passadas a outros sem parentesco com ele: segundo José de Sousa Machado nos Brasões inéditos (1909), a Antônio Simões em 1592 ("sem diferença por representar o dito ganhador"!) e a Julião de Abreu Simões em 1670 (6); no Cartório da Nobreza, consta até o século XVIII a José Xavier Dinis Pereira de Almeida Serra em 1733 (7), a Manuel Lopes Caetano Cortês Serra em 1771 (8) e Antônio Simões Ressurgido em 1788 (9).

Portanto, o primeiro brasão dado comprovadamente por um rei de Portugal também demonstra que a heráldica gentilícia portuguesa evoluiu para uma "heráldica de sobrenomes", ou seja, a quem requeresse carta de armas bastava viver "à lei da nobreza" e ter sobrenome constante do armorial para que se lhe passasse brasão de tais armas e fosse reconhecido fidalgo de cota de armas.

Notas:
(1) Dona Filipa era filha do duque João de Lancastre, filho do rei Eduardo III da Inglaterra. O contato com a esfera anglo-normanda influiu fortemente na armaria portuguesa, a começar pelo sistema de diferenças da Casa Real com base no lambel.
(2) Dom João I foi quem primeiro tomou a serpe por timbre, talvez mais um elemento de influência anglo-normanda. Será demasiada coincidência que o Doutor João das Regras tenha trazido essa mesma figura por armas se não o tiver sido por concessão.
(3) Consta que Gil e Vicente Simões tinham uma irmã chamada Mor da Cunha. Presumivelmente, era com os da Cunha que todos se aparentavam.
(4) A meu ver, Antônio de Vilas Boas e Sampaio na Nobiliarquia portuguesa (1676) é quem melhor brasonou as armas dos Simões em linguagem moderna: "em campo de prata, leão negro, picado de ouro e armado de vermelho sobre um campo verde ao pé do escudo". Ainda assim, o termo picado sugere que o leão está semeado de bolinhas. Além disso, é nesse livro que se acha a referência mais antiga ao timbre dessa linhagem: o leão das armas.
(5) Simões é originariamente um patronímico: Simoniz > Simõez > Simões. Quer isto dizer que Gil e Vicente eram filhos de um Simão. Mas o fato mesmo de se ter tornado o nome de uma linhagem nobre pode ter favorecido a sua retenção de geração em geração na descendência de Gil Simões.
(6) O escudo partido de Simões e Abreus e, por diferença, uma brica vermelha com um trifólio de ouro.
(7) O escudo esquartelado de Almeidas, Serras, Pereiras e Simões e, por diferença, uma brica azul com um farpão de prata (liv. 1, fl. 195).
(8) O escudo esquartelado de Simões, Serras, Gonçalves e Corteses e, por diferença, uma brica azul com um trifólio de prata (liv. 1, fl. 164).
(9) As armas dos Simões e, por diferença, uma brica azul com um farpão de prata (liv. 4, fl. 60v).

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