Brasão de armas de Vasco Peres Gante.
O terceiro brasão mais antigo desta série foi renovado a Pero Rodrigues Gante em 1454. Eis a carta de Dom Afonso V:
Armas de Vasco Peres Gante: "Ũu escudo vermelho e dous guantes d'armas d'argente; em meo deles ũu arco verde torquio, com sua corda de prata arredor". |
Dom Afonso etc. A todos os que esta nossa carta virem, fazemos saber que per Purtugal, nosso Rei d'Armas, nos foi certificado em como o Sereníssimo Senhor Rei, padre nosso, cuja alma Deus haja, a requerimento do Ifante Dom Pedro, seu irmão, lhe fora dito que Vaasco Pérez Guante, morador em a nossa vila d'Elvas, escudeiro e vassalo d'el-Rei, meu avoo, andara com ele fora destes Reinos, em Hongria e em outras províncias, assi em guerra como em paz, em as quaes ele o servira como escudeiro e homem de boa criaçom e fora com ele nos exércitos das guerras e conquistas que o Emperador Seguismundos fezera aos turcos nas guerras de Baláfia e Roxia e que, porém, vistos seus trabalhos honrosos, em que o assi havia servido, exercitando seu corpo, em galardom e mérito de seus serviços pidia ao dito Senhor Rei, nosso padre, que lhe desse parte naqueles benefícios honrosos que os reis e príncipes custumam a dar a aqueles que suas vidas despõem a periigo por suas honras e famas e lhe desse novo escudo d'armas, que ele e os de seu linhagem trouvessem, porque a maior glória era a ele havê-las per seus bõos merecimentos que por louvor de seus predecessores, as quaes armas que lhe per o dito Senhor dadas fôrom som estas: ũu escudo vermelho e dous guantes d'armas d'argente; em meo deles ũu arco verde torquio, com sua corda de prata arredor, dando-lhas e confirmando pera ele e pera todos seus descendentes e que as podessem trazer, assi como aqueles que as direitamente trazer devem, segundo em a carta que delo houve mais largamente se contém. E agora novamente Pero Rodríguez Guante nos disse que ele era sobrinho do dito Vaasco Pírez, filho de ũu seu irmão, ao qual assi a herança como as armas de direito pertenciam e que, porém, nos pedia por mercê que lhe confirmassemos as ditas armas. E vista per nós a dita carta e a certidão que nos o dito Rei d'Armas delo fez e dês i por ele seer pessoa hábil e desposta, escudeiro criado do nosso primo, Dom Pedro, arcebispo que foi da nossa cidade de Lisboa, e isso mesmo ele nos haver servido em guerra fora destes Reinos e consiirando os ditos serviços que nos assi feitos tem e ao diante dele receber esperamos, nós lhe outorgamos as ditas armas, que daqui em diante ele e todos seus descendentes as hajam e possam trazer e gouvir de tôdolos privilégios, honras, liberdades e exeições que os fidalgos em nossos Reinos ham e de direito devem d'haver. Em testemunho da qual cousa lhe mandamos dar esta nossa carta, per nós sinada e selada do nosso seelo de chumbo. Dante em a nossa cidade de Lisboa, vinte dias de julho. Diego de Figueiredo a fez. Ano de Nosso Senhor Jesu-Cristo 1454. (em leitura nova, Míst., liv. 2, fl. 177v; na Chanc. de D. Afonso V, liv. 10, fl. 79)
Esse texto é superinteressante, ainda que saibamos pouquíssimo sobre a genealogia dos Gantes. Parece terem vindo de Navarrete, em Castela, para Elvas, no Alentejo. Logo, a mercê não criou uma linhagem nova, mas galardoou um escudeiro pelos seus serviços notáveis. Este não era o requerente da carta, mas um tio dele.
Ora, se o requerimento tratava de mera certificação, por que recorrer ao rei? Afinal, para tanto bastava um oficial de armas. Provavelmente, quando Dom Duarte deu o brasão a Vasco Peres Gante, ainda não se registrava essa espécie de mercê na Chancelaria Real, mas sim no cartório particular do oficial de armas que ordenou o brasão, dando-se a entender aqui que neste caso tal foi o rei de armas Portugal, mencionado pela primeira vez nesse tipo de diploma. Portanto, essa carta fortalece a hipótese de que a de Gil e Vicente Simões não foi a primeira do gênero, mas sim aquela a partir da qual o brasão de armas se integrou plenamente ao sistema das mercês régias (leia-se a postagem de 03/12).
Além disso, é excepcional que Vasco Peres tenha merecido tal galardão não por façanhas em Marrocos, mas muito mais longe, nos Bálcãs, também contra "infiéis", aí os otomanos. Com efeito, o infante Dom Pedro, duque de Coimbra, partiu do reino em agosto de 1425 para a Inglaterra, de onde passou aos Países Baixos. Atravessou, então, a Alemanha e em fins do ano seguinte encontrou-se com Sigismundo de Luxemburgo, imperador eleito e rei consorte da Hungria e Croácia. A sua presença está atestada no cerco de Golubac (maio de 1428), na Sérvia. Rumou depois para a Itália, onde foi recebido pelo papa Martinho V. De Pisa passou à Catalunha e, tendo atravessado Castela, chegou de volta a Portugal em setembro de 1428. A menção à "Baláfia e Roxia", isto é, à Valáquia e Rússia, que se faz na carta de Vasco Peres Gante, deve-se provavelmente à permissão imperial em janeiro de 1428 para que o infante e seus homens combatessem os turcos ao longo do rio Danúbio até o mar Negro, o que não ocorreu (1).
É, enfim, curioso como nesse diploma o binômio mérito–legado beira a contradição. Diz que Vasco Peres preferiu receber armas novas "porque a maior glória era a ele havê-las per seus bõos merecimentos que por louvor de seus predecessores", porém a transmissão faz parte da natureza mesma do brasão. Daí que, tendo presumivelmente morrido sem descendência, seu sobrinho requereu-as como honra que de direito lhe pertencia. Isso bastaria, mas a respeito do próprio Pero Rodrigues se ressalta, como que justificando a renovação da mercê, que era "pessoa hábil e desposta", tendo "servido em guerra fora destes Reinos".
Com relação às armas, nos dois casos antecedentes (o de Gil e Vicente Simões e o de Fernão Gil de Montarroio), apontei que se brasonava de baixo para cima; aqui, dos flancos para o centro. Portanto, a figura principal ficava mesmo por último, ao contrário do que se observa hoje. Além disso, destes três o de Vasco Peres Gante é o primeiro cujo ordenamento se pode claramente vincular ao armígero, seja porque os guantes são figuras falantes (2), seja porque entre eles se pôs um objeto exótico — o arco turco (torquio) — em referência direta à gesta balcânica, apesar de infringir a regra de iluminura (verde sobre vermelho).
O defeito da iluminura foi consertado pela literatura heráldica desde a Beneditina lusitana (1651), de Frei Leão de Santo Tomás, pintando-se o arco de ouro e a corda de vermelho, o que ainda dava uma sombra. É no Tesouro da nobreza de Portugal (1783) que Frei Manuel de Santo Antônio e Silva, esmaltando a corda de verde, dá solução definitiva. Muito antes, a falta do timbre fora remediada pela carta de brasão que em 1529 se passara a Álvaro Nunes Gante: "ũu braço que sai do elmo, vestido de vermelho, picado d'ouro, com o arco das armas na mão" (3).
Para acabar, perceba-se que a hesitação em denominar a prata apresenta um elemento novo: o recurso ao galicismo argente. Mas o próprio descritor não se mostra convencido de seguir por aí, já que adiante emprega a palavra prata ao brasonar a corda do arco. Recordo que antes, nas duas cartas citadas, se designara esse metal por branco.
(1) Como habitual entre os europeus ocidentais até o século XVIII, a Rússia era um país ao leste cuja localização exata francamente se desconhecia.
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