07/12/24

OS DEZ MAIS ANTIGOS (III)

Brasão de armas de Vasco Peres Gante.

O terceiro brasão mais antigo desta série foi renovado a Pero Rodrigues Gante em 1454. Eis a carta de Dom Afonso V:

Armas de Vasco Pires Gante: "ũu escudo vermelho e dous guantes d'armas d'argente; em meo deles ũu arco verde torquio, com sua corda de prata arredor".
Armas de Vasco Peres Gante: "Ũu escudo vermelho e dous guantes d'armas d'argente; em meo deles ũu arco verde torquio, com sua corda de prata arredor".

Dom Afonso etc. A todos os que esta nossa carta virem, fazemos saber que per Purtugal, nosso Rei d'Armas, nos foi certificado em como o Sereníssimo Senhor Rei, padre nosso, cuja alma Deus haja, a requerimento do Ifante Dom Pedro, seu irmão, lhe fora dito que Vaasco Pérez Guante, morador em a nossa vila d'Elvas, escudeiro e vassalo d'el-Rei, meu avoo, andara com ele fora destes Reinos, em Hongria e em outras províncias, assi em guerra como em paz, em as quaes ele o servira como escudeiro e homem de boa criaçom e fora com ele nos exércitos das guerras e conquistas que o Emperador Seguismundos fezera aos turcos nas guerras de Baláfia e Roxia e que, porém, vistos seus trabalhos honrosos, em que o assi havia servido, exercitando seu corpo, em galardom e mérito de seus serviços pidia ao dito Senhor Rei, nosso padre, que lhe desse parte naqueles benefícios honrosos que os reis e príncipes custumam a dar a aqueles que suas vidas despõem a periigo por suas honras e famas e lhe desse novo escudo d'armas, que ele e os de seu linhagem trouvessem, porque a maior glória era a ele havê-las per seus bõos merecimentos que por louvor de seus predecessores, as quaes armas que lhe per o dito Senhor dadas fôrom som estas: ũu escudo vermelho e dous guantes d'armas d'argente; em meo deles ũu arco verde torquio, com sua corda de prata arredor, dando-lhas e confirmando pera ele e pera todos seus descendentes e que as podessem trazer, assi como aqueles que as direitamente trazer devem, segundo em a carta que delo houve mais largamente se contém. E agora novamente Pero Rodríguez Guante nos disse que ele era sobrinho do dito Vaasco Pírez, filho de ũu seu irmão, ao qual assi a herança como as armas de direito pertenciam e que, porém, nos pedia por mercê que lhe confirmassemos as ditas armas. E vista per nós a dita carta e a certidão que nos o dito Rei d'Armas delo fez e dês i por ele seer pessoa hábil e desposta, escudeiro criado do nosso primo, Dom Pedro, arcebispo que foi da nossa cidade de Lisboa, e isso mesmo ele nos haver servido em guerra fora destes Reinos e consiirando os ditos serviços que nos assi feitos tem e ao diante dele receber esperamos, nós lhe outorgamos as ditas armas, que daqui em diante ele e todos seus descendentes as hajam e possam trazer e gouvir de tôdolos privilégios, honras, liberdades e exeições que os fidalgos em nossos Reinos ham e de direito devem d'haver. Em testemunho da qual cousa lhe mandamos dar esta nossa carta, per nós sinada e selada do nosso seelo de chumbo. Dante em a nossa cidade de Lisboa, vinte dias de julho. Diego de Figueiredo a fez. Ano de Nosso Senhor Jesu-Cristo 1454. (em leitura nova, Míst., liv. 2, fl. 177v; na Chanc. de D. Afonso V, liv. 10, fl. 79)

Esse texto é superinteressante, ainda que saibamos pouquíssimo sobre a genealogia dos Gantes. Parece terem vindo de Navarrete, em Castela, para Elvas, no Alentejo. Logo, a mercê não criou uma linhagem nova, mas galardoou um escudeiro pelos seus serviços notáveis. Este não era o requerente da carta, mas um tio dele.

Ora, se o requerimento tratava de mera certificação, por que recorrer ao rei? Afinal, para tanto bastava um oficial de armas. Provavelmente, quando Dom Duarte deu o brasão a Vasco Peres Gante, ainda não se registrava essa espécie de mercê na Chancelaria Real, mas sim no cartório particular do oficial de armas que ordenou o brasão, dando-se a entender aqui que neste caso tal foi o rei de armas Portugal, mencionado pela primeira vez nesse tipo de diploma. Portanto, essa carta fortalece a hipótese de que a de Gil e Vicente Simões não foi a primeira do gênero, mas sim aquela a partir da qual o brasão de armas se integrou plenamente ao sistema das mercês régias (leia-se a postagem de 03/12).

Além disso, é excepcional que Vasco Peres tenha merecido tal galardão não por façanhas em Marrocos, mas muito mais longe, nos Bálcãs, também contra "infiéis", aí os otomanos. Com efeito, o infante Dom Pedro, duque de Coimbra, partiu do reino em agosto de 1425 para a Inglaterra, de onde passou aos Países Baixos. Atravessou, então, a Alemanha e em fins do ano seguinte encontrou-se com Sigismundo de Luxemburgo, imperador eleito e rei consorte da Hungria e Croácia. A sua presença está atestada no cerco de Golubac (maio de 1428), na Sérvia. Rumou depois para a Itália, onde foi recebido pelo papa Martinho V. De Pisa passou à Catalunha e, tendo atravessado Castela, chegou de volta a Portugal em setembro de 1428. A menção à "Baláfia e Roxia", isto é, à Valáquia e Rússia, que se faz na carta de Vasco Peres Gante, deve-se provavelmente à permissão imperial em janeiro de 1428 para que o infante e seus homens combatessem os turcos ao longo do rio Danúbio até o mar Negro, o que não ocorreu (1).

É, enfim, curioso como nesse diploma o binômio mérito–legado beira a contradição. Diz que Vasco Peres preferiu receber armas novas "porque a maior glória era a ele havê-las per seus bõos merecimentos que por louvor de seus predecessores", porém a transmissão faz parte da natureza mesma do brasão. Daí que, tendo presumivelmente morrido sem descendência, seu sobrinho requereu-as como honra que de direito lhe pertencia. Isso bastaria, mas a respeito do próprio Pero Rodrigues se ressalta, como que justificando a renovação da mercê, que era "pessoa hábil e desposta", tendo "servido em guerra fora destes Reinos".

Com relação às armas, nos dois casos antecedentes (o de Gil e Vicente Simões e o de Fernão Gil de Montarroio), apontei que se brasonava de baixo para cima; aqui, dos flancos para o centro. Portanto, a figura principal ficava mesmo por último, ao contrário do que se observa hoje. Além disso, destes três o de Vasco Peres Gante é o primeiro cujo ordenamento se pode claramente vincular ao armígero, seja porque os guantes são figuras falantes (2), seja porque entre eles se pôs um objeto exótico — o arco turco (torquio) — em referência direta à gesta balcânica, apesar de infringir a regra de iluminura (verde sobre vermelho).

O defeito da iluminura foi consertado pela literatura heráldica desde a Beneditina lusitana (1651), de Frei Leão de Santo Tomás, pintando-se o arco de ouro e a corda de vermelho, o que ainda dava uma sombra. É no Tesouro da nobreza de Portugal (1783) que Frei Manuel de Santo Antônio e Silva, esmaltando a corda de verde, dá solução definitiva. Muito antes, a falta do timbre fora remediada pela carta de brasão que em 1529 se passara a Álvaro Nunes Gante: "ũu braço que sai do elmo, vestido de vermelho, picado d'ouro, com o arco das armas na mão" (3).

Para acabar, perceba-se que a hesitação em denominar a prata apresenta um elemento novo: o recurso ao galicismo argente. Mas o próprio descritor não se mostra convencido de seguir por aí, já que adiante emprega a palavra prata ao brasonar a corda do arco. Recordo que antes, nas duas cartas citadas, se designara esse metal por branco.

Notas:
(1) Como habitual entre os europeus ocidentais até o século XVIII, a Rússia era um país ao leste cuja localização exata francamente se desconhecia.
(2) Na carta em apreço, tanto o sobrenome como a figura das armas são grafados Guante/guante, porém é preciso levar em conta que na scripta medieval o dígrafo gu também se punha antes da vogal a, ficando a cargo do leitor discernir se o u se pronuncia ou não. Talvez o escrivão se tenha aproveitado disso para tornar perfeita a referência da figura ao nome, mas a julgar pela sua forma castelhana, este é, de fato, Gante.
(3) O escudo esquartelado de Gantes e Sardinhas e, por diferença, uma moleta de ouro (Chanc. de D. João III, liv. 17, fl. 70v). Não sei com que justeza esse Álvaro Nunes recebeu as armas de Vasco Peres Gante, já que na sua carta se declara apenas que "ele decendia da geração e linhagem dos Guantes por parte de seu pai" e, como eu disse no início do comentário, falta estudo acerca da genealogia dos Gantes. De todo modo, no brasonamento acaba-se por esclarecer um pormenor do ordenamento: "com sua corda de prata arredor". O que se quis dizer com arredor? O brasonador de 1529 respeitou o texto original, ao tempo que sentiu a necessidade de acrescentar: "com a corda de prata derrador também em pala".

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