17/12/24

OS DEZ MAIS ANTIGOS (VIII)

Brasão de armas de Álvaro Afonso Frade.

O oitavo brasão mais antigo desta série foi dado a Álvaro Afonso Frade em 1471. Eis a carta de Dom Afonso V:

Armas de Álvaro Afonso Frade: "escudo em quarteirões, do qual o campo do primeiro quartel é de celestre ou de çafira a ũu pesante branco ou d'arjante, e do segundo quartel o campo é do pesante em celestre e nele ũa estrela de púrpura ou amatista; sobre tudo, ũa cruz de golas ou de robi sobre ũa ponta ondada do primeiro quartel".
Armas de Álvaro Afonso Frade: "Escudo em quarteirões, do qual o campo do primeiro quartel é de celestre ou de çafira a ũu pesante branco ou d'arjante, e do segundo quartel o campo é do pesante em celestre e nele ũa estrela de púrpura ou amatista; sobre tudo, ũa cruz de golas ou de robi sobre ũa ponta ondada do primeiro quartel".

Dom Afonso etc. A quantos esta carta virem, fazemos saber que, consirando nós nos muitos, continuados e estremados serviços que recebidos temos d'Álvaro Afonso Frade, escudeiro, nosso vassalo, morador na nossa vila d'Olivença, assi nos nossos Reinos d'aquém-mar como aalém do mar, nas partes d'África, a saber, nas tomadas da nossa vila d'Alcácer e da nossa vila d'Arzila e da nossa cidade de Tânger, que com a graça de Nosso Senhor filhamos aos mouros, sendo sempre connosco per pessoa e com hómẽes d'armas, beesteiros e outra gente, onde mui bem e lealmente nos serviu, e consirando em sua bondade, indústria e descriçom e no bõo desejo e vontade com que sempre continou em nosso serviço, assi nos feitos das guerras como em tôdolos outros a nosso serviço tocantes, e querendo-lhe esto galardoar, como a nós cabe fazer a aqueles que bem e fielmente nos servem, e por lhe fazermos graça e mercee, temos por bem e de nosso moto própio, querer, vontade e poder absoluto queremos e nos praz lhe darmos ũu escudo d'armas novas, a saber, o escudo em quarteirões, do qual o campo do primeiro quartel é de celestre ou de çafira a ũu pesante branco ou d'arjante, e do segundo quartel o campo é do pesante em celestre e nele ũa estrela de púrpura ou amatista; sobre tudo, ũa cruz de golas ou de robi sobre ũa ponta ondada do primeiro quartel, segundo aqui, nesta nossa carta patente, são pintadas e blasonadas, as quaes estabelecemos e queremos que desde agora e sempre que o dito Álvaro Afonso possa trazer e teer e delas, per custume dos outros que as têm, usar e gouvir em batalhas, torneos, cercos de vilas, combates de castelos, arroídos, bandos, escaramuças e em firmaes, anees e sinetes e em quaesquer outros lugares, assi de guerra como de paz, como per qualquer outro modo que lhe aprouver, sem outro embargo que lhe sobre elo seja posto. E isso mesmo queremos que seus filhos e descendentes, que dele descenderem per legítimo matrimônio, hajam as ditas armas e delas possam gouvir, como sobredito é. E porém mandamos ao nosso Primeiro Rei d'Armas e oficiaes delas que assi o proviquem em seus livros, registem, porque assi é nossa mercê e vontade. E em testemunho desto lhe mandamos dar esta nossa carta patente, por lembrança e memória delo, assinada por nós e asseelada do nosso seelo do chumbo. Dada em a nossa vila de Sintra, 8 dias de novembro. Antão Gonçálvez a fez. Ano de Nosso Senhor Jesu-Cristo de 1471. (em leitura nova, Míst., liv. 3, fl. 12; na Chanc. de D. Afonso V, liv. 21, fl. 14)

Em 1471, o estudo do brasão já se tinha tornado a heráldica, isto é, a arte dos arautos, graças à difusão de tratados que eles escreviam, copiavam, ampliavam e refundiam, até aqui quase todos em língua francesa. Tudo isso se percebe na presente carta.

Com efeito, pela primeira vez faz-se referência a um dos oficiais de armas como o primeiro — sem dúvida o rei de armas Portugal — e dispôs-se o registro da mercê nos livros desses oficiais. Vale a pena repassar o caminho percorrido até aqui:

  • Na carta de Gil e Vicente Simões (1438) e na de Fernão Gil de Montarroio (1450), os oficiais de armas aparecem como assistentes ao ato de concessão das armas, se bem que a qualidade delas permite presumir com bastante segurança que eles as criaram;
  • na carta de Pero Rodrigues Gante (1454), menciona-se pela primeira vez o rei de armas Portugal como o certificador de que Vasco Peres Gante recebera armas novas de Dom Duarte, o que supõe consulta de um registro, possivelmente um cartório particular que remontava ao reinado de Dom João I;
  • na carta de Álvaro Gonçalves de Cáceres (1459), explicita-se pela primeira vez que um oficial dessa classe — o rei de armas Algarve — ordenara o brasão concedido;
  • na carta de Martim Esteves Boto (1462), faz-se a primeira menção do rei de armas Portugal como o criador do brasão concedido.

Finalmente, que houvesse um membro principal e o registro particular tivesse devindo matéria do interesse da Coroa indica que o conjunto dos oficiais de armas do rei português já funcionava como uma corporação.

Além disso, é neste diploma que também pela primeira vez se usa o verbo blasonar ("segundo aqui, nesta nossa carta patente, são pintadas e blasonadas"). Na citada carta de 1459 diz-se que as armas "fôrom assinadas" por Algarve, na de 1462 que "foram devisadas" por Portugal e que ele "devisou e ordenou" as antecedentes, a Gonçalo Vaz de Campos (1465). Portanto, um paulatino refinamento que não parece meramente léxico; antes, é um refinamento conceitual que as palavras pouco a pouco iam exprimindo, tudo sob visível influência ultrapirenaica.

Ora, não bastasse o termo blasonar, este rei de armas rompeu com o uso de linguagem chã (e amiúde ambígua), praticada até aqui, para descrever o brasão, tentando introduzir vários galicismos: a um pesante, arjante e golas por à un besant, argent e gueules. Curiosamente, a semelhança de azur com azul deve ter levado ao brasonamento dessa cor como celest(r)e.

Na verdade, a maior prova de que o nosso oficial de armas conhecia a literatura heráldica circulante é a vinculação dos esmaltes a pedras preciosas: o azul à safira, a púrpura à ametista e o vermelho ao rubi. Quase chega a ser possível afirmar que ele leu algum tratado do grupo que começa com o Livre des armes (cerca de 1402) e sob a forma do Blason de toutes armes (1494) foi atribuído ao arauto Sicília (cf. a postagem de 14/03/21).

Outro aspecto que indica o avanço da cultura heráldica é o quanto se especifica o uso do brasão, tanto na guerra ("em batalhas, torneos, cercos de vilas, combates de castelos, arroídos, bandos, escaramuças") como na paz ("em firmaes, anees e sinetes"). Relacionando isso ao que se diz sobre o armígero — que levou "hómẽes d'armas, beesteiros e outra gente" às conquistas de Alcácer Ceguer, Arzila e Tânger —, fica corroborado que Dom Afonso V estava mesmo criando uma nobreza nova a partir de burgueses ricos e leais. Ao mesmo tempo, demonstra-se que o estamento nobre ainda servia de braço armado à Coroa.

Ainda a respeito de Álvaro Afonso Frade, ele teve descendência, que se multiplicou já desde a segunda geração. Inclusive, algumas mulheres usaram de um curioso feminino do sobrenome: Fradeça. Apesar disso, houve tendência ao abandono do sobrenome em todos os ramos e, de fato, nas coletâneas de cartas de armas não consta que se tenham passado as dessa linhagem a pessoa alguma. O timbre aparece a partir dos Triunfos de la nobleza lusitana (1631), do padre Antônio Soares de Albergaria: uma aspa vermelha, carregada de uma estrela de prata.

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