Brasão de armas de João Gonçalves da Câmara.
O quinto brasão mais antigo desta série foi dado a João Gonçalves da Câmara em 1460. Eis a carta de Dom Afonso V:
Armas de João Gonçalves da Câmara: "Ũu escudo preto e ao pee ũa montanha verde, sobre a qual está fundada e edificada ũa torre de prata, antre dous lobos d'ouro". |
Dom Afonso, pela graça de Deus Rei de Portugal e do Algarve e Senhor de Ceita e d'Alcácer em África. A quantos esta carta virem, fazemos saber que, consirando nós como a justiça é luz e centro de tôdalas virtudes, de cujo seo procede aquela parte que chamam estribuitiva, a qual antre tôdolos homens mais pertence aos reis, por cuja rezão os antigos sabedores dissérom que nom era justiça ũa soo singular virtude, pois em ela se acrecentavam todas, donde se segue que a liberaleza e benfeituria assi é necessária ao príncipe, que sem ela claro nem justo pode ser chamado, ca se de todos espera receber serviço, com rezão deve ser liberal e gracioso de seus benefícios, dando a seus súbditos benefícios honrosos e prazívees acrecentamentos aos seus fiees servidores e, portanto, é milhor o seu principado quanto de milhores sojeitos é acrecentado. E havendo nós certa sabedoria dos muitos leaes serviços que João Gonçálvez de Câmara de Lobos, cavaleiro criado do Ifante Dom Hanrique, meu muito prezado e amado tio, há feitos em tempo dos reis, nosso avoo e padre, progenitores nossos, que Deus haja, assi em a dita cidade de Ceita como em Tânger, onde se ele houve mui grandemente em os feitos das armas contra os infiees, e isso meesmo fazendo-nos outros muitos serviços per outras muitas maneiras. As quaes cousas consiradas per nós, querendo-lhe fazer mercee em remuneraçom de seus bõos serviços, lhe damos insíneas de nobreza e apelido, a saber, ũu escudo preto e ao pee ũa montanha verde, sobre a qual está fundada e edificada ũa torre de prata, antre dous lobos d'ouro. As quaes armas e apelido lhe nós damos e ensinuamos e alevantamos a vós, sobredito João Gonçálvez de Câmara de Lobos, e a vossos legítimos herdeiros, os quaes de vós decenderem. E per esta presente vos unimos e ajuntamos e agregamos ao conto e aa companhia de tôdolos outros nobres hómẽes. E per este ordenamento mandamos e estabelecemos a todos vossos herdeiros, que de vós legitimamente decenderem, que daqui em diante possaes usar de tôdalas honras, prerrogativas de que tôdolos nobres usam, possam usar, assi de custume como de direito. E por maior firmeza e corroboraçom e por vigor desta presente lêtera, vos outorgamos as ditas armas e possaes usar delas, assi em qualquer feito e jogo d'armas como em aaz de batalha, sem vos em esto ser posto nenhũu embargo. Dada em a nossa vila de Santarém, quatro dias do mês de julho. Pedr'Afonso, Veedor de nossa Fazenda, das cousas que pertencem a tôdolos feitos do mar Ouciano, a fez per nosso mandado. Ano do Nacimento de Nosso Senhor Jesu-Cristo de 1460. (em leitura nova, Míst., liv. 3, fl. 56v)
Essa carta dá uma sequência mais coerente com a de Fernão Gil de Montarroio (1450) do que com a duas antecedentes, de Álvaro Gonçalves de Cáceres (1459) e Vasco Peres/Pero Rodrigues Gante (1454), porque nela se voltou a praticar o formulário típico:
- Protocolo inicial (titulação e direção): "Dom Afonso... A quantos esta carta virem...".
- Texto:
- Preâmbulo: "consirando nós como a justiça...";
- exposição: "E havendo nós certa sabedoria...";
- dispositivo: "As quaes cousas consiradas per nós, querendo-lhe fazer mercee em remuneraçom de seus bõos serviços, lhe damos...".
- Protocolo final (data e subscrição): "Dada em a nossa vila... ".
Em particular, o preâmbulo é muito bem desenvolvido, tanto a sua forma como o seu conteúdo. Quanto à forma, a língua portuguesa estava mais apta à expressão do raciocínio complexo e o autor aproveitou-se disso, usando não só de orações relativas, mas também de coordenadas conclusivas ("pois em ela se acrecentavam todas, donde se segue que...", "ca se de todos espera...", "portanto, é milhor..."), embora estribuitiva por distributiva deixe ver a vacilação dos latinismos, que persistiria pelo resto do século. Quanto ao conteúdo, de uma primeira leitura é possível destacar que se idealiza um rei grato e justo ("se de todos espera receber serviço, com rezão deve ser liberal e gracioso de seus benefícios"), porém uma leitura mais atenta vai perceber que, num momento em que a nobreza ainda era o braço armado da Coroa, o rei estava, na verdade, refirmando-se como a fonte da justiça ("luz e centro de tôdalas virtudes, de cujo seo procede aquela parte que chamam estribuitiva, a qual antre tôdolos homens mais pertence aos reis"). Com efeito, Dom Afonso V, Dom João II e Dom Manuel I fizeram da heráldica gentilícia autêntica estratégia de centralização da monarquia.
Quanto ao armígero, pela primeira vez premiou-se um navegador: é possível que justamente pelas suas façanhas em Ceuta e Tânger o infante Dom Henrique, como governador da Ordem de Cristo, tenha escolhido João Gonçalves Zargo ou Zarco para explorar o arquipélago ao oeste da costa marroquina. Em 1418 juntamente com Tristão Vaz Teixeira reconheceu a ilha do Porto Santo e no ano seguinte novamente com ele mais Bartolomeu Perestrelo a da Madeira. Foi aí que descobriu uma baía e nela uma gruta habitada por uma multidão de lobos-marinhos. O lugar ficou, então, conhecido como Câmara de Lobos, nome que Dom Afonso V escolheu para criar uma linhagem nova a partir de João Gonçalves, cujos descendentes o encurtaram: da Câmara.
A propósito, das dez concessões heráldicas mais antigas somente a linhagem de João Gonçalves da Câmara ascendeu à alta nobreza. Tendo ele e os companheiros convencido o infante e senhor das ilhas a povoá-las, cada um recebeu aí uma capitania: Tristão Vaz a de Machico em 1440, Bartolomeu Perestrelo a do Porto Santo em 1446 e João Gonçalves a do Funchal em 1450. Na quinta geração, Simão Gonçalves da Câmara foi feito conde da Calheta por Dom Sebastião em 1576. A capitania permaneceu na Casa da Calheta até a sétima geração do navegador: em 1656, João Gonçalves da Câmara morreu sem descendência e os títulos e bens foram herdados por Mariana de Lancastre, sua irmã e mulher de João Rodrigues de Vasconcelos e Sousa, conde de Castelo Melhor. A capitania do Funchal foi incorporada na Coroa em 1766, quando em compensação Dom José elevou José de Vasconcelos e Sousa a marquês de Castelo Melhor e o título de conde da Calheta passou ao herdeiro desse marquesado.
Além da capitania do Funchal, o segundo filho de João Gonçalves, chamado Rui Gonçalves da Câmara, comprou em 1474 a capitania de São Miguel, nos Açores. A favor de seu trineto, do mesmo nome, Dom Filipe I criou o condado de Vila Franca em 1583, mas em 1652 Dom Rodrigo da Câmara, terceiro e derradeiro conde, foi condenado por sodomia e sentenciado ao confisco dos seus bens e à prisão perpétua. A pedido de Dona Maria Coutinho, sua esposa e filha de Dom Francisco da Gama, conde da Vidigueira, a capitania foi restituída a Dom Manuel Luís Baltasar da Câmara, seu filho, por Dom Afonso VI, que o criou conde da Ribeira Grande em 1662. As capitanias açorianas foram extintas no mesmo ano de 1766, mas a Casa da Ribeira Grande sob a varonia dos Câmaras perdurou até o fim da monarquia.
João Gonçalves gerou, ainda, cinco filhas e um filho, Garcia, que também transmitiu o sobrenome Câmara. Portanto, teve uma vasta geração, com a qual talvez entronque este subscritor, descendente tanto por parte de sua avó paterna como por parte da materna de Francisco Antônio da Câmara, morador na ribeira do Apodi, capitania do Rio Grande do Norte, no fim do século XVIII e começo do seguinte.
As armas dos Câmaras sofreram alterações inexplicáveis antes das coletâneas do século XVI. Já nas quintilhas de João Rodrigues de Sá (publicadas no Cancioneiro geral, de Garcia de Resende, 1516), o campo é verde e não há monte: "Nũa torre de menagem | dous lobos querem trepar | em campo cor dum pumar, | que são armas da linhagem | mui dina de nomear". O mesmo na carta de brasão que Pedro Álvares da Fonseca, bisneto de João Gonçalves da Câmara, segundo capitão do Funchal, recebeu em 1533: "de verde e ũa torre de menagem de prata cuberta e em cima do curifeu ũa cruz d'ouro antre dous lobos de sua cor, pegados na torre" (1). Esse brasonamento praticamente descreve a iluminura que está no final do Livro da nobreza e perfeição das armas, de Antônio Godinho (2).
Contudo, o padre Antônio Soares de Albergaria deve ter nos seus estudos achado o registro da mercê a João Gonçalves da Câmara, pois nos Triunfos de la nobleza lusitana (1631) recobra o ordenamento original: "Una torre de plata en campo negro, asentada sobre un monte verde, y dos lobos de oro, armados de negro, empinados". Dessa mesma forma desenha as armas dos condes da Calheta e de Vila Franca nos Troféus lusitanos (1632). Seguiram-no com alguma variação Francisco Coelho no Tesouro de nobreza (1675), Antônio Caetano de Sousa nas Memórias históricas e genealógicas dos grandes de Portugal (1739) e Frei Manuel de Santo Antônio e Silva no Tesouro da nobreza de Portugal (1783).
Possivelmente, as alterações foram introduzidas na Casa de Vila Franca para se diferençar daquela da Calheta e acabaram por causar grande confusão.
Por fim, cabe ressaltar que, embora João Gonçalves da Câmara tenha ganhado brasão dez anos depois de ter sido nomeado capitão do Funchal e o povoamento da Madeira tenha sido o maior feito da sua vida, nada disso aparece na sua carta de armas (3), mas tão somente uma vaga menção a serviços nas praças africanas. Não parece algo fortuito, mas mostra, a meu ver, que em 1460 a gesta ultramarina por si só, sem embate contra o Islã, não bastava para alcançar uma mercê de armas novas e, por conseguinte, o enobrecimento.
(1) O escudo partido de Câmaras e Ornelas e, por diferença, uma brica de prata com um M negro (Chanc. de D. João III, liv. 45, fl. 52v).
Nenhum comentário:
Postar um comentário