09/12/24

OS DEZ MAIS ANTIGOS (IV)

Brasão de armas de Álvaro Gonçalves de Cáceres.

O quarto brasão mais antigo desta série foi dado a Álvaro Gonçalves de Cáceres em 1459. Eis a carta de Dom Afonso V:

Armas de Álvaro Gonçalves de Cáceres: "ũu escudo de campo d'ouro com ũa palma verde com seu fruito e, em cima dela, ũa estrela vermelha".
Armas de Álvaro Gonçalves de Cáceres: "Ũu escudo de campo d'ouro com ũa palma verde com seu fruito e, em cima dela, ũa estrela vermelha".

Ao mui Virtuoso e mui Excelente Príncipe Frederico, per graça de Deus Emperador dos Romãos e sempre acrescentador amigo seu, como irmão mui amado, em via dos infiees gloriosamente triunfar, e aos outros mui Esclarecidos per essa meesma graça Reis, seus amigos, como irmãos mui caros, Dom Afonso, per semelhante graça Rei de Portugal e do Algarve e Senhor de Ceita e d'Alcácer em África, saúde e sincera dileiçom. Aos Ilustres Príncipes, dos Reis primos-gênitos, e aos Duques, seus amigos, como parentes amados, e aos Magníficos Marqueses, Notaves Meestres das Órdẽes, Condes, Nobres, Barões e Estremados Cavaleiros e a quaesquer outros fiees cristãos, muitas saúdes. Como a honra de cada ũu desejada galardom de toda vertude seja, justa cousa é a aqueles ser dada, que som d'esmeradas bondades e resplandor de fremosa lealdade guarnecidos, por o qual nós, consiirando que o discreto Álvoro Gonçálvez de Cáceres, nosso servidor e leitor das carônicas e livros de Castela, barom virtuoso e fiel por serviço de Deus e nosso, em África connosco e em nossa frota e hoste passou, contra aquela gente bárbara e cruel em a tomada d'Alcácer Ceguel foi, onde animosa e prudentemente se houve, como merecedor da ordem melitar, servando a maneira acustumada, ali per nossa mão cavaleiro o armamos e fezemos. E como rezoável e conveniente cousa é que os filhos e todos os outros seus, dele descendentes, das honras dos padres e seus maiores gozem por resplandor de sua pessoa e honra de seus socessores, as armas, de fundo em esta nossa carta pintadas fulicidas (1), lhe damos e outorgamos pera sempre, a saber, ũu escudo de campo d'ouro com ũa palma verde, com seu fruito e, em cima dela, ũa estrela vermelha, segundo per Algarve, nosso Rei d'Armas, lhe fôrom assinadas, as quaes o dito Álvoro Gonçálvez e tôdolos outros seus descendentes possam trazer em suas cotas d'armas e escudos e guarnimentos que eles quiserem, sem algũu costrangimento sobre elo lhe ser posto por pessoa algũa. E, portanto, ao dito Emperador e a tôdolos reis e príncipes e a quaesquer deles a que esto perteencer afeituosamente rogamos que em seus reinos e senhorios lhes praza leixar trazer as ditas armas ao dito Álvoro Gonçálvez e a todos seus descendentes, como dito é, e se algũu em tal quiser contradizer, por nossa contemplação o defendam e emparem em todo elo. E em testemunho das quaes cousas lhe mandamos dar esta carta, dada em a nossa mui Nobre e sempre Leal Cidade de Lisboa, assinada per nossa mão e asseelada com o nosso seelo do chumbo pendente, a 23 dias de junho. Álvoro López a fez. Ano do Nacimento de Nosso Senhor Jesu-Cristo de 1459 anos. (em leitura nova, Míst., liv. 4, fl. 1)

Passaram-se quase quatro anos desde a concessão de brasão a Vasco Peres/Pero Rodrigues Gante e mais de nove desde aqueloutra a Fernão Gil de Montarroio. Levanto duas hipóteses para explicar por que a de Álvaro Gonçalves de Cáceres — que não se acha na Chancelaria, mas apenas na Leitura Nova — difere tanto das três antecedentes, especialmente pela longa e dupla saudação, antes ("Ao mui Virtuoso e mui Excelente Príncipe...") e depois da titulação ("Aos Ilustres Príncipes..."), e pela precação ("E, portanto, ao dito Emperador e a tôdolos reis e príncipes e a quaesquer deles...").

Primeiro, Álvaro Gonçalves tinha claramente origem castelhana. O sobrenome aponta que veio de Cáceres, na Estremadura, e a carta (a única fonte que temos sobre a sua vida) informa que entrou para o serviço do paço como "leitor das carônicas e livros de Castela". Interpreto que ele lia para o rei obras históricas e literárias em castelhano em momentos de lazer. Talvez tenha saído da sua terra natal em meio à guerra entre facções nobiliárias, uma encabeçada pelo rei João de Navarra e a outra pelo condestável Álvaro de Luna com o apoio do rei João II, que durou de 1437 a 1445. Talvez desejasse algum dia retornar, daí ter recebido uma carta tão precatória de Dom Afonso V, que tinha então boa relação com Henrique IV de Castela, seu cunhado.

Segundo, a carta a Pero Rodrigues Gante fora uma renovação de uma mercê nova, com o perdão da redundância, de modo que a última concessão efetiva (a Fernão Gil de Montarroio) ficara tão longe que se perdera o seu formulário. De fato, outro aspecto formal desse texto chama a atenção: a sua sintaxe é muito alatinada, mais que o normal sob o Humanismo. Será tradução literal de um original latino? Todavia, o próprio ordenamento das armas enfraquece esta hipótese.

Ora, tendo-se afirmado no próprio texto que Álvaro Gonçalves esteve na tomada de Alcácer Ceguer (1458), onde o rei o armou cavaleiro, fica evidente que a palmeira refere ao seu desempenho animoso e prudente nessa conquista, pois apesar de haver palmeiras nativas em Portugal, elas abundam muito mais além-mar, em África. Isso demonstra continuidade com o arco turco de Vasco Peres Gante, isto é, a incorporação de elementos exóticos no repertório heráldico, o que faria escola na armaria portuguesa.

Atente-se, a propósito, à referência ao rei de armas Algarve: não só é a primeira menção desse ofício, mas também pela primeira vez se declara que as armas foram criadas (aqui se diz "fôrom assinadas") por um oficial dessa classe. Convém recapitular que na carta de Gil e Vicente Simões e na de Fernão Gil de Montarroio os oficiais de armas aparecem apenas como participantes do ato de concessão heráldica e na de Pero Rodrigues Gante menciona-se o rei de armas Portugal como o certificador de que Vasco Peres Gante ganhou brasão e qual. O presente diploma é, ademais, o primeiro que, além do brasonamento, continha sem dúvida uma iluminura das armas ("de fundo em esta nossa carta pintadas").

As armas de Álvaro Gonçalves de Cáceres foram passadas em 1535 a Manuel da Fonseca, filho de Álvaro de Cáceres e neto de Manuel de Cáceres, mas não sei com que justeza, pois à obscuridade acerca daquele cavaleiro se somam a importância e proximidade da vila de Cáceres, o que aumenta sobremaneira a probabilidade de homonímia. Seja como for, essa carta ajuda-nos a discernir que "palma" deve ser um lapsus calami: "d'ouro com ũa palmeira verde com seu fruito de vermelho" (2). Entretanto, omite a estrela.

A respeito da estrela, desde Beneditina lusitana (1651), de Frei Leão de Santo Tomás, sabemos que nem carrega nem remata a palmeira, mas a encima: "ũa estrela vermelha em chefre [sic]". Isso tem, na verdade, sido recorrente nestas cartas mais antigas até aqui: brasona-se em linguagem tão chã que é necessário consultar a literatura heráldica para sanar ambiguidades.

Notas:
(1) A palavra fullicidas é claramente erro de cópia, porém difícil de corrigir.
(2) O escudo esquartelado de Cáceres e Fonsecas (Chanc. de D. João III, liv. 10, fl. 116). Esta carta também supre a falta de timbre na concessão: a palmeira das armas, cujos frutos estão aí brasonados de vermelho, mas diversamente na literatura heráldica. Anselmo Braamcamp Freire, na Armaria portuguesa (1909), entende que têm a sua cor natural. Isso é coerente com a indeterminação de esmalte na linguagem heráldica portuguesa.

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