21/01/21

SE OS BASTARDOS PODEM USAR AS ARMAS OU INSÍGNIAS DA LINHAGEM

A filiação ilegítima exerceu uma função social tão importante outrora que a centralizada heráldica portuguesa a discriminava cuidadosamente.


Do Tractatus de insigniis et armis (1358), de Bártolo de Sassoferrato:

(11) Ex hoc posset quæri an bastardi vel spurii possunt uti illis signis. Et videtur quod non, quia non sunt de familia seu agnatione (D, 50, 16, 195 [1]). Contrarium tamen servatur in Tuscia de consuetudine, cui standum est. Quando tamen multiplicantur hi quibus competunt eadem arma, consuetum est per aliquos aliquid apponi ultra ut ab aliis decernantur, quod licet, sicut nomini adjicitur prænomen.

(11) Daí se poderia perguntar se os bastardos ou ilegítimos podem usar tais insígnias. Vê-se que não, porque não são da família ou linhagem (D, 50, 16, 195 [1]). No entanto, observa-se o contrário na Toscana por costume, à qual deve limitar-se. No entanto, quando se multiplicam aqueles a quem cabem as mesmas armas, é habitual apor-se, por alguns, algo mais para se destrinçarem dos outros, o que é permitido, assim como se acrescenta o prenome ao nome.

Notas:
[1] D, 50, 16. 195: Familiæ appellatio qualiter accipiatur, videamus. Et quidem varie accepta est: nam et in res et in personas diducitur. In res, ut puta in lege Duodecim Tabularum his verbis: "Agnatus proximus familiam habeto". Ad personas autem refertur familiæ significatio ita, cum de patrono et liberto loquitur lex (Vejamos em que sentido se toma a denominação de família: por certo, tomou-se de vários modos, pois se estende tanto às coisas como às pessoas. Às coisas, por exemplo, na lei das Doze Tábuas, com estas palavras: "Que o agnado mais próximo possua a escravaria". A pessoas refere-se a significação de família quando, por exemplo, a lei fala do patrono e do liberto).

Comentário:

Raramente se presta atenção ao fato de que em 1640 e nos anos seguintes, quando Portugal se rebelou contra o rei Filipe III (IV de Castela), outro estado da monarquia também se separou: o principado da Catalunha. Mas à diferença dos portugueses, os catalães não dispunham de nenhum pretendente nativo ao título de conde de Barcelona, já que a segunda dinastia convergira com a reinante em Castela (1) após a sucessão de Fernando o Católico, de modo que tiveram de buscar a proteção de Luís XIII, rei da França, sob cuja vassalagem permaneceram por pouco mais de um decênio. A Casa de Bragança foi, pois, decisiva para a restauração da independência portuguesa. Como vimos na postagem de 09/01, foi fundada por Afonso de Portugal, um filho natural de Dom João I, mas esse próprio rei protagonizou o episódio anterior em que a soberania do reino foi assegurada por um filho ilegítimo, pois ele mesmo era bastardo de Dom Pedro I.

Se hoje em dia a palavra bastardo não serve nem mais de insulto, de tão arcaica que parece — de fato, a filiação ilegítima é coisa do passado —, vê-se que essa convenção desempenhou funções de monta nas relações sociais durante a Idade Média tardia e a Idade Moderna, tanto que mereceu um tratamento acurado dentro do sistema heráldico português. Com efeito, primitivamente os filhos ilegítimos diferençavam as armas paternas em pé de igualdade com os legítimos. Por exemplo, na postagem anterior, dei as armas de Dom Sancho II e de seus irmãos, Dom Afonso III e Dom Fernando de Portugal. As do segundo foram herdadas, é claro, por seu filho, o rei Dom Dinis, ao passo que a irmã mais velha deste, Dona Branca de Portugal, senhora do Mosteiro de Las Huelgas, trazia um esquartelado, o primeiro e quarto de vermelho com um castelo de ouro; o segundo e terceiro de prata com cinco escudetes de azul, besantados do campo, postos em cruz, os dos flancos apontados ao centro.

Armas de Dona Branca de Portugal, senhora do mosteiro de Las Huelgas: esquartelado, o primeiro e quarto de vermelho com um castelo de ouro; o segundo e terceiro de prata com cinco escudetes de azul, besantados do campo, postos em cruz, os dos flancos apontados ao centro.
Armas de Dona Branca de Portugal, senhora do Mosteiro de Las Huelgas: esquartelado, o primeiro e quarto de vermelho com um castelo de ouro; o segundo e terceiro de prata com cinco escudetes de azul, besantados do campo, postos em cruz, os dos flancos apontados ao centro.

Do matrimônio com a rainha Dona Beatriz, filha de Afonso X de Castela, havia, ainda, um filho mais novo: Dom Afonso de Portugal, senhor de Portalegre, cujas armas eram as inversas da primogênita, ou seja, outro esquartelado, o primeiro e quarto de prata com cinco escudetes de azul, besantados do campo, postos em cruz, os dos flancos apontados ao centro; o segundo e terceiro de vermelho com um castelo de ouro. Considerando que eram filhos e netos de rainhas castelhanas, é uma bela alternância: no brasão da infanta precedem as armas da linhagem feminina e nas do infante, as da varonil.

Armas de Dom Afonso de Portugal, senhor de Portalegre: esquartelado, o primeiro e quarto de prata com cinco escudetes de azul, besantados do campo, postos em cruz, os dos flancos apontados ao centro; o segundo e terceiro de vermelho com um castelo de ouro.
Armas de Dom Afonso de Portugal, senhor de Portalegre: esquartelado, o primeiro e quarto de prata com cinco escudetes de azul, besantados do campo, postos em cruz, os dos flancos apontados ao centro; o segundo e terceiro de vermelho com um castelo de ouro.

Mas Dom Afonso III também gerou uma numerosa prole fora do casamento. Conhece-se o brasão de Afonso Dinis: de azul com cinco escudetes de prata, besantados do campo, postos em cruz, os dos flancos apontados ao centro, isto é, as armas de Portugal antigo diferençadas pela inversão dos esmaltes.

Armas de Dom Afonso Dinis: de azul com cinco escudetes de prata, besantados do campo, postos em cruz, os dos flancos apontados ao centro.
Armas de Afonso Dinis: de azul com cinco escudetes de prata, besantados do campo, postos em cruz, os dos flancos apontados ao centro.

Conhece-se, bem assim, o brasão de Leonor Afonso, senhora de Pedrógão e Neiva: palado de prata e vermelho, de quatro peças, o primeiro e terceiro carregados de três escudetes de azul, besantados de prata; o segundo e quarto, de três castelos de ouro.

Armas de Dona Leonor Afonso, senhora de Pedrógão e Neiva: palado de prata e vermelho, de quatro peças, o primeiro e terceiro carregados de três escudetes de azul, besantados de prata; o segundo e quarto, de três castelos de ouro.
Armas de Leonor Afonso, senhora de Pedrógão e Neiva: palado de prata e vermelho, de quatro peças, o primeiro e terceiro carregados de três escudetes de azul, besantados de prata; o segundo e quarto, de três castelos de ouro.

Enfim, outro bastardo, Martim Afonso, o Chichorro, segundo deduzem Miguel Metelo de Seixas e João Bernardo Galvão-Telles em artigo de 2012, trazia mais um esquartelado: o primeiro e quarto de prata com cinco escudetes de azul, besantados do campo, postos em cruz, os dos flancos apontados ao centro; o segundo e terceiro de prata com um leão de púrpura. Embora a atestação mais antiga desse brasão date de 1469, os autores argumentam que não só é compatível com os usos heráldicos da geração de Dom Afonso III, mas também postulam que a escolha do leão se deveu ao fato de os irmãos terem esgotado as possibilidades de esquarteladuras simétricas com o castelo das armas da avó paterna, restando o leão, que fazia igualmente parte delas. Com efeito, essas são as armas dos Sousas Chichorros ou do Prado, porque Dom Martim casou com uma neta de Mem Garcia de Sousa, chefe da Casa de Sousa.

Armas presumíveis de Martim Afonso Chichorro: esquartelado, o primeiro e quarto de prata com cinco escudetes de azul, besantados do campo, postos em cruz, os dos flancos apontados ao centro; o segundo e terceiro de prata com um leão de púrpura.
Armas presumíveis de Martim Afonso Chichorro: esquartelado, o primeiro e quarto de prata com cinco escudetes de azul, besantados do campo, postos em cruz, os dos flancos apontados ao centro; o segundo e terceiro de prata com um leão de púrpura.

Mas Afonso Dinis também casou com uma neta de Mem Garcia de Sousa e um de seus filhos esquartelou as armas paternas e as maternas: o primeiro e quarto de prata com cinco escudetes de azul, besantados do campo, postos em cruz, os dos flancos apontados ao centro; o segundo e terceiro de vermelho com uma caderna de crescentes de prata. Estas são as armas dos Sousas de Arronches, pois a partir dessas uniões dos bastardos de Dom Afonso III com as remanescentes da linhagem dos Sousas, essa casa partiu-se em dois ramos.

Armas de Diogo Afonso de Sousa: esquartelado, o primeiro e quarto de prata com cinco escudetes de azul, besantados do campo, postos em cruz, os dos flancos apontados ao centro; o segundo e terceiro de vermelho com uma caderna de crescentes de prata.
Armas de Diogo Afonso de Sousa: esquartelado, o primeiro e quarto de prata com cinco escudetes de azul, besantados do campo, postos em cruz, os dos flancos apontados ao centro; o segundo e terceiro de vermelho com uma caderna de crescentes de prata.

Mas ao longo da descendência de Diogo Afonso perdeu-se a diferença nas armas de Portugal antigo, que desde o século XIV aparecem com os seus esmaltes plenos. Finalmente, a referência à linhagem real assumiu a forma das armas do Reino, diferençadas por um filete de negro em barra. Esse filete constituiu a base do sistema de quebras instituído pelo regimento manuelino (2).

Armas dos Sousas de Arronches: esquartelado, no primeiro e quarto as armas do reino, diferençadas por um filete de negro em barra; o segundo e terceiro de vermelho com uma caderna de crescentes de prata.
Armas dos Sousas de Arronches: esquartelado, no primeiro e quarto as armas do Reino, diferençadas por um filete de negro em barra; o segundo e terceiro de vermelho com uma caderna de crescentes de prata.

Resumidamente, esse sistema funcionava assim:

  • Os filhos naturais sobrepunham um bastão de negro, que equivale a um filete em banda;
  • os bastardos sobrepunham o dito filete de negro em barra, mas:
    • se a bastardia era condição tanto do armígero como de seu pai ou mãe, sobrepunha dois filetes;
    • se essa condição se repetia desde o avô ou a avó, sobrepunha três filetes;
    • se o armígero era filho legítimo de bastardo ou bastarda, o filete reduzia-se a dois terços;
    • se era neto legítimo de bastardo ou bastarda, reduzia-se a um terço.
  • os filhos adulterinos, incestuosos e sacrílegos, quando especialmente autorizados, sobrepunham um filete de prata, endentado respectivamente de azul, verde e vermelho.

Pessoalmente, considerando que a heráldica se destinava em grande medida a honrar os seus usuários, duvido muito de que tantas notas desonrosas se aplicassem com o rigor sob o qual foram concebidas.

Notas:
(1) Na verdade, eram ramos da mesma dinastia: a Casa de Trastâmara.
(2) Em francês, a língua original da heráldica, o verbo briser e o substantivo brisure designam a alteração de certas armas tanto pelos filhos legítimos como pelos ilegítimos. A tradução desses termos para o português é 'quebrar' e 'quebra', mas como na nossa língua normalmente se diz diferençar e diferença, a palavra quebra acaba assinalando mais propriamente a especificidade dos ilegítimos. Sobre o citado regimento, leia-se a postagem de 13/01 e as seguintes.

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