Brasão de armas de Fernão Gil de Montarroio.
O segundo brasão mais antigo desta série foi dado a Fernão Gil de Montarroio em 1450. Eis a carta de Dom Afonso V:
Dom Afonso, per graça de Deus Rei de Portugal e do Algarve e Senhor de Ceita. A quantos esta carta virem, fazemos saber que, segundo a doutrina dos sabedores, conhecida per evidência de feito e prática usada geeralmente antre tôdolos príncipes e razom natural, nos costrange amar tôdolos nossos súbditos e naturaes e, muito em espicial, aqueles que per criaçom, amor e bõos serviços a nós o têm merecido, porque quanto a razom é mais chegada per longa criaçom e serviços ou per outra algũa maneira, tanto o amor deve seer mais firme e intenso pera francamente obrar nas cousas pera que naturalmente é ordenado. E porém consirando nós a grande criaçom que por mui longo tempo o mui Excelente e mui Poderoso Príncipe e Comprido de muitas Virtudes el-Rei, meu Senhor e padre, cuja alma Deus haja, e nós fezemos em Fernam Gil, seu criado e nosso tesoureiro, e os muitos grandes serviços que ao dito Senhor e a nós tem feitos e ao diante entendemos dele receber; e dês i como serviu o muito Poderoso e muito Virtuoso e de Grande Memória el-Rei Dom Joam, meu avoo, cuja alma Deus haja, em a tomada de Ceita; e como em tôdalas outras cousas em que polos ditos Senhores e per nós foi encarregado deu sempre de si bõo conto, como homem leal e bõo e digno de todo bem e honra; e bem assi, consirando o singular amor que lhe por sua lealdade e serviços os ditos Senhores tevérom e nós esso meesmo teemos, todo juntamente nos obrigou e obriga de o acrecentarmos em honra a ele, correspondente. Confiando dele e de sua bondade, como foi e ao diante nos seria sempre leal e verdadeiro vassalo, querendo-lho reconhecer, como todo príncipe é teúdo a seus bõos servidores e, naturalmente, polas sobreditas razões somos obrigado a fazer, o fezemos cavaleiro. E nom embargante nós seermos certo ele seer de bõa geeraçom e haver dívido com algũus grandes cavaleiros e fidalgos, de que ele poderia trazer suas armas ou sinais dereitamente, porque nos ele disse que seria mais contente, por memória de sua criaçom e serviços, de lhe nós darmos armas que ele e os filhos, que ora tem e tôdolos outros de seu linhagem podessem trazer, que de as haver per outra maneira, pera se poderem refertar por fidalgos e gentis-hómẽes e gouvirem dos privilégios e liberdades e franquezas e exenções de fidalgos; e dês i porque ele foi o primeiro cavaleiro que fezemos despois que per graça de Deus fomos em estado de Rei, nós, com deliberada vontade por lhe fazermos mercee, presente os nobres do nosso Conselho e fidalgos, cavaleiros e gentis-hómẽes da nossa Corte e oficiaes d'armas, segundo se per direito e tal auto requerem, lhe damos e outorgamos que ele e os ditos seus filhos, que ora tem e houver, e tôdolos outros de seu linhagem, que deles vierem e decenderem, hajam e possam trazer daqui em diante por armas ũu escudo d'ouro com ũu crecente branco e, sobre as pontas dele, ũa águia vermelha, de cabeça partida e de bicos e pees brancos, com senhas chapeletas d'hera nas cabeças. As quaes armas lhe nós assi damos e outorgamos pera ele e pera os ditos seus filhos e pera tôdolos outros que deles vierem e descenderem e os havemos daqui em diante por fidalgos e gentis-hómẽes e que por taes se possam chamar e refertar em qualquer cousa, auta e lugar que compridoiro for. E damos a ele e a todos aqueles que dele descenderem por títolo e apelido Monterroio e queremos que se possam daqui em diante dele chamar por louvor de sua memória em todo tempo e caso que lhes aprouver, assi e pela guisa que os fidalgos e nobres hómẽes geeralmente custumárom de se chamar, segundo a linhagem de que som e naturalmente decendem. E também queremos e outorgamos e mandamos que hajam e gouvam e lhe sejam guardadas compridamente tôdalas honras, privilégios e liberdades e franquezas e eixeções que per direito, leis e custumes dos nossos Reinos os fidalgos deles ham e devem d'haver, como aqueles que per seus bõos merecimentos o merecem. E em testemunho desto, por sua guarda e segurança, lhe mandamos dar esta nossa carta, assinada per nós e asseelada com o nosso seelo do chumbo. Dante em a nossa mui Nobre e sempre mui Leal Cidade de Lisboa, 21 do mês d'outubro. Diego Gonçálvez a fez. Ano do Nacimento de Nosso Senhor Jesu-Cristo de mil e quatrocentos cinquenta anos. (em leitura nova, Míst., liv. 3, fl. 105v)
Passaram-se doze anos desde que Dom Duarte concedera brasão de armas aos irmãos Gil e Vicente Simões (cf. a postagem antecedente). Tal hiato deveu-se à morte desse rei no mesmo ano de 1438 e à consequente regência da rainha Dona Leonor, sua mulher, e do infante Dom Pedro, seu irmão, durante a menoridade de Dom Afonso V, encerrada em 1448.
Assim, apesar do longo intervalo, Dom Afonso fez a sua primeira concessão de armas novas logo no início do seu efetivo reinado e por ela claramente quis demonstrar continuidade, já que Fernão Gil de Montarroio, o favorecido, serviu, como a própria carta o justifica, tanto Dom Duarte, seu pai, como Dom João I, seu avô, e foi o primeiro cavaleiro que o dito Afonso armou. Ele devia ser, portanto, um homem maduro em 1450.
Com efeito, este espécime contém algumas inovações. Pela primeira vez, inseriu-se entre o protocolo inicial e a exposição um preâmbulo que procurava desenvolver uma teoria da mercê de armas novas: assinalava não só que o amor do súdito ao príncipe era recíproco, mas também que ele recompensava de modo especial quem prestava insignes serviços, além de estimular por tal recompensa outros a empreender feitos semelháveis. Percebe-se até mesmo certo exercício para exprimir tudo isso em português, quando o latim ainda era a língua do raciocínio e da dissertação.
Outro aspecto inovador é que por essa carta o rei deu a Fernão Gil tanto as armas que aí se brasonam como o apelido/sobrenome Montarroio. Com isso, alargava-se a mercê, pois à nobilitação se ajuntava a criação de uma casa nova, cujo chefe era o próprio recebedor dessa mercê. Todavia, não se conhece com certeza nem a ascendência nem a descendência de Fernão Gil. Segundo Cristóvão Alão de Morais (1632–93) na Pedatura lusitana (t. 6, v. 2), ele teve três filhos: Afonso, Jorge e Catarina (o que é coerente com o texto: "os filhos, que ora tem"). Apenas o do meio teve geração, transmitindo o nome e as armas. (1)
Observe-se, ainda, que a nobilitação se desdobra em dois momentos do texto. Logo após o dispositivo sobre o uso das armas, diz-se: "e os havemos daqui em diante por fidalgos e gentis-hómẽes...". Entre o dispositivo sobre o uso do nome e o protocolo final, estabelece-se a dimensão do foro: "E também queremos e outorgamos e mandamos que hajam e gouvam e lhe sejam guardadas compridamente tôdalas honras...". Mais tarde, essa segunda parte evoluiria para a chamada corroboração.
Enfim, propriamente quanto ao brasão, assim como o de Gil e Vicente Simões, chama a atenção que, embora seja singelo, tenha pormenores que sugerem o trabalho de um oficial de armas: não uma mera águia, mas pousada sobre um crescente e coroada com guirlandas de hera (2). Em ambas as cartas, esses oficiais são, de fato, mencionados entre os assistentes ao ato de concessão, mas por enquanto falta a autoria da criação heráldica. Por outro lado, é notável o quão chã é a linguagem: em vez de bicada e armada de prata, uma águia "de bico e pees brancos". A propósito, vai-se confirmando que o brasonamento de baixo para cima e a confusão da prata com o branco são características dessa época.
(1) A genealogia dos Montarroios é tão obscura que merece um estudo à parte. O sobrenome refere indubitavelmente a um topônimo e há, de fato, uma aldeia chamada Monte Arroio no município de Sintra. Deve vir, como parece, de Monte do Arroio (daí a variante Monterroio). E tendo-o Dom Afonso V escolhido para criar uma linhagem nova, assume-se que ninguém o usava de forma amplamente notória. Somando-se a isso a sua escassa frequência, a probabilidade de alguém desse sobrenome descender de Fernão Gil é grande. Dentre eles, Francisco Xavier Taveira de Macedo, a quem se passou em 1784 brasão das armas dos Taveiras, Macedos, Andrades e Montarroios, estas por Maria de Andrade Montarroio, uma sua trisavó (Cart. da Nobr., liv. 3, fl. 122). Não obstante, a obscuridade começa pelas deduções dos próprios genealogistas. Assim, o citado Alão de Morais vincula os Montarroios com os de Monroy, ao passo que Felgueiras Gaio (Nobiliário de famílias de Portugal, v. 21), com os de Monterroso, ambas linhagens espanholas, provenientes de vilas homônimas, Monroy na Estremadura e Monterroso na Galiza.
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