15/12/24

OS DEZ MAIS ANTIGOS (VII)

Brasão de armas de Gonçalo Vaz de Campos.

O sétimo brasão mais antigo desta série foi dado a Gonçalo Vaz de Campos em 1465. Eis a carta de Dom Afonso V:

Armas de Gonçalo Vaz de Campos: "ũu escudo todo de campo azul e dentro em ele três cabeças de liões d'ouro, com as línguas vermelhas e arrancamentos vermelhos".
Armas de Gonçalo Vaz de Campos: "Ũu escudo todo de campo azul e dentro em ele três cabeças de liões d'ouro, com as línguas vermelhas e arrancamentos vermelhos".

Dom Afonso etc. A quantos esta carta de doação d'armas virem, fazemos saber que, consirando nós como a todo bõo rei e príncipe pertence remunerar e galardoar os serviços dos bõos e virtuosos servidores, seus súbditos e naturaes, e ainda os estrangeiros que lhes fazem, com aquela honra, mercee, acrecentamento e favor que requerem seus serviços, mericimentos e virtudes, conhecendo nós o bõo e honesto viver de Gonçalo Vaaz de Campos, escudeiro e criado de Dom Frei Vaasco d'Ataíde, nosso bem amado dívido e do nosso Conselho e prior da Ordem de São João em nossos Reinos etc., alcaide por o dito prior em a vila do Crato, e dês i porque honrosamente com ũu navio e homens seus e com armas nos serviu na filhada da nossa vila d'Alcácer, nas partes d'África, e nos fez outros muitos e espiciaes serviços, de que somos em boa nembrança, querendo-lhos galardoar com mercee e honra a ele, correspondente, nós, de nosso moto própio, certa ciência e poder absoluto, lhe damos e outorgamos d'hoje em diante pera sempre as seguintes novas armas, que per nosso espicial mandado lhe devisou e ordenou Purtugal, nosso Rei d'Armas, a saber, ũu escudo todo de campo azul e dentro em ele três cabeças de liões d'ouro, com as línguas vermelhas e arrancamentos vermelhos, segundo aqui, em o meio desta nossa carta, perfeitamente são pintadas. As quaes armas queremos que o dito Gonçalo Vaaz e seus filhos per linha dereita descendidos possam trazer assi em corregimentos e autos de guerra como em arreos de suas casas e persoas e em suas sepulturas, moimentos e jazigos. E delas possam usar assi e tão compridamente como usárom e usam de direito ou custume os escudeiros de cota d'armas em nossos Reinos e Senhorios. E daqui em diante possam gouvir de quaesquer privilégios, liberdades, franquezas e isenções que hão e se guardam e devem haver e seer guardadas, per quaesquer ordenações e custumes de nossos Reinos e Senhorios, todos aqueles que per serviços, virtudes, mericimentos foram ou são dadas armas, insígnios e demostrações de semelhantes sinaes. As quaes armas, insígnios, assi divisadas e aqui pintadas, damos e outorgamos ao dito Gonçalo Vaaz, contanto que nom faça prejuízo a algũas outras se algũas pessoas as houveram e tem primeiramente em nossos Reinos. E porém mandamos aos nossos reis d'armas e oficiaes delas que ora são e ao diante forem e a outros quaesquer oficiaes e pessoas a que esto per qualquer maneira pertença que daqui em diante ao dito Gonçalo Vaaz e a seus lídemos filhos e a todos seus lídemos descendentes leixem trazer as ditas armas e usar e gouvir delas e de tôdalas ditas franquezas e liberdades suso declaradas e lhe nom vão nem consentam ir contra ela em maneira algũa. E por memória e renembrança desto lhe mandamos dar esta nossa carta, assinada per nós e asseelada do nosso seelo do chumbo. Dante em a nossa vila de Portalegre, a 11 dias do mês de maio. Diego de Figueiredo a fez. Ano de 1465. (em leitura nova, Míst., liv. 3, fl. 45v)

Assim como a antecedente, esta carta foi lavrada pelo escrivão Diogo de Figueiredo. Daquela, destaquei a pouca argúcia do preâmbulo, a parte do texto que apresenta uma teoria da concessão heráldica. Aqui, ele não só a abrevia, mas lhe dá teor genérico.

Com efeito, mais interessante é a locução "de nosso moto própio, certa ciência e poder absoluto", porque se opõe a outro pormenor, que lemos nas cartas de Fernão Gil de Montarroio e (1450) e na de Gil e Vicente Simões (1438): "presente os nobres do nosso Conselho e fidalgos, cavaleiros e gentis-hómẽes da nossa Corte e oficiaes d'armas, segundo se per direito e tal auto requerem". Trocando em miúdos, no início do reinado efetivo de Dom Afonso V a mercê de armas novas (que enobrecia o seu recebedor) ainda ensejava uma cerimônia curial, que interpreto como consentimento da nobreza com o ato régio, perfeitamente de acordo com o conceito de monarquia feudal. Depois, não se menciona mais isso e no referido antecedente o mesmo escrivão já usara da expressão "de nosso própio moto e ciência" (1), aqui plenamente desenvolvida: a concessão heráldica era um ato da soberana e real vontade.

Nada disso é banal. A heráldica gentilícia sob Dom Afonso V se tornou uma estratégia para a centralização monárquica ou, noutras palavras, para a evolução rumo à monarquia absoluta. Observe-se que Martim Esteves Boto era de Évora e levou homens, cavalos e armas à conquista de Alcácer Ceguer e, de modo semelhante, Gonçalo Vaz de Campos, alcaide do Crato, serviu na mesma empresa "com ũu navio e homens seus e com armas". Portanto, uma nobreza nova, formada por burgueses ricos e leais à Coroa.

Manuel José da Costa Felgueiras Gaio (1750–1831) no Nobiliário de famílias de Portugal (v. 8) supõe que o tronco dos de Campos foi Martim de Campos, fidalgo que viveu no reinado de Dom Afonso III. Na quinta geração, põe Vasco Gil de Campos, pai de Gonçalo Vaz. Este morreu sem descendência (2), de modo que Gil Vaz, seu irmão, herdou as suas armas. Em 1529, passaram-se a Fernão de Campos, "da geração e linhagem dos de Campos e dos d'Abul por parte de sua mãe e avoos" (3). Será Fernão Anes de Campos, neto de Fernão Dias de Campos, primo-irmão de Vasco Gil? Se sim, ele não tinha direito a essas armas, já que não descendia de quem as ganhou.

Na verdade, as de Gonçalo Vaz de Campos são exemplo ilustrativo de armas que desde cedo se vincularam a um apelido/sobrenome frequente sem compromisso genealógico (4). Assim, segundo José de Sousa Machado nos Brasões inéditos (1909), foram passadas a Diogo de Moreira, neto de Diogo Pires de Campos, em 1584; a Rodrigo Morais de Campos em 1591; a Antônio de Albuquerque, neto de Tomás de Campos, e a Gaspar da Rocha, neto de Francisco de Campos, em 1644. No Cartório da Nobreza até o século XVIII (e no Arquivo heráldico-genealógico, do visconde de Sanches de Baena, 1872), consta terem-se passado a José Manuel do Amaral e Campos em 1754; a Inácio Xavier de Campos Magro em 1767; a Dom Francisco Franco Feijó, neto de Dona Guiomar de Campos, e a Joaquim Tibúrcio de Campos Ribeiro em 1775; a Antônio Novais de Campos em 1778 e a Jerônimo José Daniel Nogueira de Andrade, filho de Mariana Joaquina Veloso de Campos, em 1790. Nenhum tinha, até onde se sabe, parentesco com Gonçalo Vaz. E vai além: no Tesouro da nobreza de Portugal (1783), Frei Manuel de Santo Antônio e Silva diz, sem mais, que os Campelos usam dessas mesmas armas (5).

Voltando ao texto, Diogo de Figueiredo compensa a brevidade do preâmbulo inserindo uma corroboração ("As quaes armas, insígnios, assi divisadas e aqui pintadas, damos e outorgamos...") e em seguida uma longa precação ("E porém mandamos..."), esta antes da datação e aquela depois do dispositivo. A partir daqui, esses elementos incorporaram-se definitivamente à carta de brasão como gênero textual.

Notas:
(1) Essa expressão é interessante até mesmo da perspectiva linguística, pois se compõe quase toda de latinismos (moto, próp(r)io, ciência e absoluto). Resulta, pois, do ambiente humanista e, muito especialmente, da difusão do direito romano, que o próprio Afonso V favoreceu em Portugal, afinal foi sob ele que se concluiu a compilação jurídica que leva o seu nome: as Ordenações afonsinas (1446).
(2) Na carta em apreço, diz-se que Gonçalo Vaz de Campos era escudeiro e criado de Frei Vasco de Ataíde, prior da Ordem de São João. Será que ele não teve geração por ter igualmente sido um freire hospitalário?
(3) 
O escudo esquartelado de Campos e Abuis e, por diferença, uma dobre brica de prata e verde (Chanc. de D. João III, liv. 17, fl. 116). O timbre é aí o dos Abuis, de modo que o dos de Campos foi estabelecido por Antônio Godinho no Livro da nobreza e perfeição das armas, a saber, uma das cabeças de leão.
(4) Dom João Ribeiro Gaio, bispo de Malaca (m. em 1601), no Templo da honra de Portugal (publicado pelo conde António de São Paio no Elucidário nobiliárquico, v. 2, n. 1), canta que "[d]este Ramiro afamado | de Campos conde e senhor | vêm os Campos, cujo honor | lhe deu brasão sublimado | digno de todo o louvor". Portanto, dá a Terra de Campos, entre os antigos reinos de Castela e Leão, por origem do sobrenome. Isso é, por assim dizer, a hipótese fácil, característica da ficção genealógica, que alcança a perfeição ao encontrar um magnata, como o conde Ramiro Froilaz, por genearca. O mais plausível é que um topônimo tão vago quanto Campos tenha denominado diversas linhagens.
(5) Se bem que, segundo o mesmo autor, "usam também os Campelos das [armas] dos Morais, por ser ramo desta que viveu no lugar de Campelo, de que tomou o apelido". No século XVIII, a mercê de armas novas ficou tão ultrapassada e valorizava-se tanto a nobreza ancestral que se chegou ao cúmulo de se passarem as armas de certa linhagem a pessoas de sobrenome meramente semelhante.

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