23/05/24

TESOURO DE NOBREZA (XII)

Armas do príncipe de Portugal e dos duques de Bragança e Aveiro.

Do Tesouro de nobreza (1675):

Fólio 20 – 10. Armas d'el-Rei Dom João (foi chamado O de Boa Memória e o primeiro do nome); 11. Armas d'el-Rei Dom Duarte (foi grande favorecedor dos doutos); 12. Armas d'el-Rei Dom Afonso (foi o quinto do nome e chamado O Africano); 13. Armas d'el-Rei Dom João (foi o segundo do nome); 14. Armas d'el-Rei Dom Manuel (foi o que mandou descobrir a Índia Oriental); 15. Armas d'el-Rei Dom João (foi chamado Pai da Pátria e o terceiro do nome); 16. Armas d'el-Rei Dom Sebastião (foi o que se perdeu em África); 17. Armas d'el-Rei Dom Henrique (foi cardeal); 18. Armas d'el-Rei Dom João (foi restaurador do Reino de Portugal e o quinto do nome). Armas do Príncipe de Portugal; Armas dos Duques de Bragança; Armas dos Duques de Aveiro e Torres Novas.
Fólio 20 – 10. Armas d'el-Rei Dom João (foi chamado O de Boa Memória e o primeiro do nome); 11. Armas d'el-Rei Dom Duarte (foi grande favorecedor dos doutos); 12. Armas d'el-Rei Dom Afonso (foi o quinto do nome e chamado O Africano); 13. Armas d'el-Rei Dom João (foi o segundo do nome); 14. Armas d'el-Rei Dom Manuel (foi o que mandou descobrir a Índia Oriental); 15. Armas d'el-Rei Dom João (foi chamado Pai da Pátria e o terceiro do nome); 16. Armas d'el-Rei Dom Sebastião (foi o que se perdeu em África); 17. Armas d'el-Rei Dom Henrique (foi cardeal); 18. Armas d'el-Rei Dom João (foi restaurador do Reino de Portugal e o quinto do nome). Armas do Príncipe de Portugal; Armas dos Duques de Bragança; Armas dos Duques de Aveiro e Torres Novas.

Comentário:

A partir destes brasões, Francisco Coelho segue oTriunfos de la nobleza lusitana (1631), do padre Antônio Soares de Albergaria. Sobre esse livro, remeto o leitor à postagem introdutória; aqui convém lembrar que o rei de armas Índia traduziu nCódice 21-F-15, conservado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, mas tal tradução é, na verdade, um rascunho. Como texto não revisado, contém numerosos barbarismos e erros, que corrijo, de modo a oferecer um texto inteligível (1). Leiamos, pois, o que se diz a respeito das armas do príncipe:

São as mesmas d'el-Rei, seu pai, cujos estados há de herdar. Não têm outra diferença que ser a viseira algum tanto menos aberta e inclinada à parte direita, em sinal de sujeição e obediência, e no remate superior do escudo atravessa um banco de pinchar ou labéu de prata, afirmado nos castelos, de três pés. Esta é ũa demostração de que se diferença do escudo real em que é príncipe.
Gerardo Legh, inglês, em um livro notável que fez de armaria (2), chama a este banco de pinchar filete com três línguas ou língua com três pontas, que segundo Honório, que ele alega, significam a primeira o pai, a do meio o filho e a última a mãe, e que representam o morgado ou sucessor em vida do pai. E advirte que não se podem pôr pares e o número pode chegar até nove e alega que Opton tem o contrário (Opton, Budeu, Alciato por estes ele citados). O Infante Dom Pedro, Duque de Coimbra, em um tratado que fez da nobreza, que anda de mão, chama a este filete banco de pinchar e Francisco Rodrigues Lobo (em sua Cortes em aldeia, diálogo 2, fol. 16) o cita, dizendo que este mesmo infante trazia um monte pendente do banco. Deste vocábulo pinchar se colige o efeito desta figura, porque morto o pai, bota o banco fora das armas, que é segundo língua antiga pinchar é mesmo que 'botar de si'.
Deste banco usam os príncipes de Inglaterra, como o fez Duarte, filho d'el-Rei Dom Duarte, quando lhe deu seu pai título de príncipe de Vivália, dando-lhe o condado de Cornúbia e Céstria, ano de 1301 (Ortélio em o seu livro das cidades de Inglaterra, tratando de Céstria). Cláudio Paradino em suas Lianças genealógicas (p. 231) blasona desta maneira o escudo de Filipo de Trácia França, filho primogênito d'el-Rei Filipe de Valois, que foi duque de Orleans, ano de 1345.
As empresas e motes são as que os mesmos príncipes tomam, conformando as letras com as figuras, como desino e fundamento que cada um tem para emprender cousas altas. E assi em Portugal foi costume dos príncipes trazer motes e empresas, mesclando-as com as suas armas, porque ainda que naquele tempo não estavam tão apuradas como hoje nem eram sujeitas a arte, que delas e para eles se fizeram os modernos, não lhes faltava entendimento e curiosidade. O príncipe Dom Fernando, filho d'el-Rei Dom João o I, trazia ũa grinalda de hera com seus raciminhos e no meio a cruz de Avis, de cuja cavalaria era mestre.
Ainda que debaixo deste nome príncipe se entende imperador, rei, duque, marquês, conde etc. e em Roma chamavam príncipes aos cônsules, senadores e nobres, contudo se deve entender em rigor por herdeiro do reino, como se usou em Portugal e Aragão (o nome de príncipe se derivou de princeps, que significa 'o que tem o primeiro lugar', e assi foi mui bem dado este título aos filhos dos reis, que são os primeiros na sucessão do reino; Santo Augustinho, Santo Isidoro, Lanceloto e Conrado). Os reis de Castela intitulam ao primogênito príncipe de las Asturias, sendo o primeiro que assi se intitulou o Infante Dom Henrique, filho primogênito d'el-Rei Dom João, ano de 1390 (Zurita nos Anais, t.º 2, lib. 10, cap. 46, fol. 401), e em França se nomeavam príncipe até que no tempo de um que, por descuido de seu aio, caiu em um tanque, donde havia um delfim, que se pôs debaixo do menino e o sustentou, trazendo-o sobre si até que acudiu gente. E assi como a sentiu, chegou à borda e esteve quedo até o tomaram de cima. E dizem que ali por diante costumava subir em riba dele e andava grande espacio espaço pela água, de que lhe resulta que, por o benefício deste delfim, se ordenou por el-Rei que dali em diante não se chamasse príncipe, senão delfim, e seu estado fosse o Delfinado. Hay Há outra maneira de estado, cujo senhorio se chama principado e o senhor que o tem logo toma o nome de príncipe, assi como o de Táranto, de Esquilache e outros que há em Itália, Flandes e Elemanha, os quais não têm outra dignidade mais excelente que a do nome de príncipe principado e senhorio em que são constituídos.
El-Rei Dom Fernando de Aragão, querendo coroar o Infante Dom Afonso, tomou do altar ũa coroa de muita riqueza que ele mandou lavrar para sua coroação e a pôs sobre sua cabeça e tomó el ceptro tomou o cetro e pomo real e estando em seu trono chegou o infante e vestiu-lhe el-Rei um manto e pôs-lhe um chapéu na cabeça e ũa barra vara de ouro na mão e deu-lhe paz e título de príncipe de Girona, por seu primogênito, como antes se chamava duque, porque já em o Reino de Castela e Leão se havia dado ao sucessor em o reino o título de príncipe de Astúrias, à imitação d'el-Rei do Reino de Inglaterra, porque nela ao herdeiro que sucedia em o reino se chamava príncipe de Gales, de donde veio este título. Com a mesma cerimônia fez el-Rei duque de Penafiel ao Infante Dom João, seu filho (Zurita em Los anales, tít.º 3, lib. 12, cap. 34).

Esse texto apresenta notável precisão. Efetivamente, nos reinos hispânicos os filhos dos reis tinham o título de infante (ifante no castelhano e no português antigos), do latim infans,infantis 'que não fala; criança'. Além-Pireneus, também se dizia enfant de France, mas normalmente fils/fille de France, isto é, 'filho/a de França'. A imprecisão do texto está na romanceação da história, como característico da literatura heráldica moderna.

Com efeito, em 1142 o conde Guigo de Albon tomou o sobrenome de seu pai, Guigo Delfim (Guigo Delphinus), por título do seu feudo: delfim de Viennois (delphinus Viennensis). Em 1349, Humberto II vendeu o Delfinado ao rei Filipe VI da França sob a condição de que passasse a Carlos (futuro Carlos V), filho do duque João da Normandia (futuro João I). Desde então, o filho mais velho do monarca reinante intitulou-se delfim de Viennois e, depois de Henrique II (1547-59), delfim de França.

Portanto, foi de fato na Grã-Bretanha que se começou a vincular o título de príncipe ao herdeiro do rei e é fácil entender por quê. Em 1283, quando Eduardo I da Inglaterra acabou a conquista de Gales, um senhor galês tinha o título de príncipe desse país: Llywelyn de Gwynedd. Até então não havia novidade, pois o termo significava o mesmo desde a Antiguidade tardia: um governante soberano.

Ora, em latim a palavra princeps,principis compõe-se de duas raízes: prin- de primus 'primeiro' e -cip- de capere 'tomar'. Portanto, da perspectiva etimológica quer dizer 'aquele que toma primeiro', isto é, 'o que ocupa o primeiro lugar'. Assim, o primeiro nome que os censores inscreviam na lista dos senadores era o princeps Senatus. Este é um dos títulos que Augusto assumiu na sua ascensão ao poder para manter uma aparência republicana. À medida que essa aparência era esquecida, o título ganhava conotação monárquica, consolidada ao longo da Idade Média.

Voltando à Grã-Bretanha, em 1301 Eduardo I criou o conde Eduardo de Ponthieu, seu filho (futuro Eduardo II), príncipe de Gales. Tendo-se renovado desde então, esse título tornou-se o mais alto dos dados habitualmente ao herdeiro do trono inglês, depois britânico (3).

Em 1388, o rei João I de Castela e o duque João de Lancastre fizeram a paz, noivando seus filhos, Henrique e Catarina, que receberam o título de príncipes das Astúrias. Também conhecido como João de Gante, em 1371 ele esposara a infanta Constança, filha do rei Pedro de Castela, que fora usurpado após longa guerra e morto em 1369 por Henrique II, bastardo de Afonso XI. O duque pretendia a coroa castelhana desde janeiro de 1372, mas esperou até 1386 para ir reclamá-la. Contava com o apoio de Dom João I, com quem casaria Filipa, sua filha, no começo do ano seguinte. Todavia, a sua campanha não prosperou, daí o tratado de 1388.

O título de príncipe como distinção do herdeiro de um rei foi, pois, trazido da Grã-Bretanha à Espanha e aí virou moda: Fernando I de Aragão investiu o infante Afonso, seu filho (futuro Afonso o Magnânimo), príncipe de Girona em 1414 e Carlos III de Navarra, o infante Carlos, seu neto, príncipe de Viana em 1423. Em Portugal, Rui de Pina relata na Crônica de Dom Duarte (1497-1504, cap. 5) que o uso desse título começou pelo infante Dom Afonso (futuro Afonso V):

E o Ifante Dom Afonso, filho primogênito, legítimo herdeiro d'el-Rei, que era minino, foi logo ali [em Sintra, 1433] jurado em auto solemne pelos ifantes e outros principaes por herdeiro dos Reinos despois da morte d'el-Rei, seu padre. E este ifante foi o primeiro filho herdeiro dos reis destes Reinos que se chamou príncepe, porque até ele tôdolos outros se chamaram ifantes primogênitos herdeiros.

Deve-se igualmente à influência inglesa o acrescentamento de um lambel para diferençar as armas do príncipe enquanto o rei vivia e reinava. Cabe lembrar que durante a primeira dinastia a prole régia se valeu dos recursos clássicos para criar brasões distintos, como o reordenamento das peças e figuras ou a combinação com as armas maternas (cf. a postagem de 19/01/21).

O sistema de diferenças da Casa Real ficou estabelecido no bojo do regimento manuelino (cf. a postagem de 28/07/21). No entanto, Albergaria viveu sob a União Ibérica, quando o rei com a sua família morava em Castela e esse sistema caíra em desuso (4). À folha 22, o próprio Coelho pinta o lambel de ouro nas armas dos infantes (n.º 11). Mais de um centênio mais tarde, Frei Manuel de Santo Antônio e Silva veio empregar esse metal ao dar tanto as armas do príncipe como as dos infantes no Tesouro da nobreza de Portugal (1783, fl. 2v). Isso sugere que tal mudança se operou na sequência da Restauração e a incoerência do Tesouro é mais um dos anacronismos de Coelho.

O anacronismo não para aí. O Delfinado e os principados de Gales, das Astúrias, de Girona e de Viana e demais senhorios anexos eram, ao menos originariamente, enfeudados ao herdeiro do rei. Em 1645, Dom João IV, querendo que Dom Teodósio, seu filho, tivesse um título que assinalasse, como na França e na Inglaterra, a expansão da monarquia, o criou príncipe do Brasil (5). Logo, em vez de Príncipe de Portugal, a legenda do antepenúltimo brasão deveria dizer Príncipe do Brasil. Além disso, para o sustento de sua casa, o herdeiro do Reino recebeu o ducado de Bragança com as suas rendas. Assim, mantiveram-se separados o patrimônio ducal e o real (6).

A evolução do ducado bragantino leva-nos aos próximos brasão e texto:

As primeiras armas que teve esta casa foram ganhadas pelo dito Dom Afonso na Tomada de Ceita, donde seu pai o armou cavaleiro. E a ocasião foi que, indo em um cavalo branco, se encontrou com um valente mouro, a quem seguiu até cair no fosso da fortaleza e, caindo em cima dele, donde o matou com grande risco de sua vida. E porque o cavalo, como leal, o tirou fora, ao Infante Dom Afonso, sem lesão algũa, estando com três feridas nos peitos, de que morreu logo, tomou por timbre de suas armas um cavalo bridado de ouro com cabeçadas e correias vermelhas, que são as mesmas cores de que ia adornado. E ainda que o cavalo demonstra guerra, também nota paz.
As armas lhe deu el-Rei, seu pai, derivadas das reais, porém com diferença, quem soube brasonar Arrieta, seu rei d'armas, segundo certos cadernos que vi seus de algũas famílias.
Puseram-se estas armas em santor, que é em aspa, que significa conflito de batalha, pelo perigo que corria sua vida. E demais de ser de a cor vermelha das armas reais, se lhe deu pelo sangue que derramou contra infiéis e o cavalo do timbre, pela razão dita.
Destas armas usaram os senhores desta casa até o Duque Dom Jaime, que usou de outras, e por isso se chamam armas antigas da Casa de Bragança. Delas usa o marquês de Ferreira, condes do Vimioso e de Odemira, os Faros e Portugais (ainda que com algũa diferença), por serem ramos deste tronco.
Quando el-Rei Dom Manuel foi a Castela para ser jurado por príncipe daqueles reinos, à prevenção de não ter então filho, fez jurar aos grandes de Portugal por seu herdeiro e sucessor a Dom Jaime, seu sobrinho, quarto duque de Bragança, a quem direitamente tocava a sucessão de Portugal, como filho de Dona Isabel, sua irmã, e de Dom Fernando, terceiro duque, dando-lhe como a tal príncipe as armas reais com a diferença do banco. E porque despois casou segunda vez el-Rei Dom Manuel com Dona Maria, filha dos Reis Católicos, de quem teve o príncipe Dom Afonso João, que lhe sucedeu no Reino, traz o escudo o duque de Bragança as armas reais com o elmo à parte direita com a viseira, pela sujeição que mostra ter às armas reais.

Novamente, o texto é preciso, a não ser pelo recurso à fantasia na interpretação do brasão. Assim, as primeiras armas do duque de Bragança, assumidas por Dom Afonso, filho natural de Dom João I, eram em campo de prata uma aspa vermelha, carregada dos cinco escudetes das quinas. Esses escudetes variam enormemente de uma fonte para outra, até mesmo na mesma obra, como advertirei mais adiante (7). Mas em 1498 Dom Manuel I, prevenindo a extinção da dinastia, fez jurar Dom Jaime de Bragança, quarto duque e seu sobrinho, príncipe herdeiro. Em conformidade com tal elevação, o duque passou a trazer as armas do Reino, diferençadas por um lambel com as armas reais de Aragão e da Sicília, alusivas a uma de suas bisavós por parte de mãe: a rainha Dona Leonor, filha de Fernando I de Aragão e esposa de Dom Duarte. Embora o príncipe Miguel da Paz tenha nascido poucos meses depois do juramento de Dom Jaime, ele e seus sucessores retiveram as segundas armas (cf. a postagem de 09/01/21). Este é, pois, o estado das coisas que os Triunfos refletem. Inclusive, Albergaria estendeu-se por mais um parágrafo, que Coelho omite:

Hermano deste Rey Don Juan fue el Infante Don Duarte, que casó con Doña Isabel, hija del dicho Don Jaime. Y fueron padres de la Señora Doña Catalina, que casó con el Duque Don Juan, padres del Señor Don Teodosio, hasta el cual sucesivamente se continuaron por línea de varón los duques de Braganza, de modo que, por haberse casado el Emperador Carlos V con Doña Isabel, hija de los reyes Don Manuel y Doña María, hermana del infante, y haber nacido deste matrimonio el Rey Don Felipe II, es el Señor Don Teodosio, séptimo duque, tío segundo del Rey, nuestro Señor, por lo cual parece que en buena razón de estado debían los príncipes hacer sus lianzas con esta casa, tan católica y grandiosa, así porque, como se ha mostrado claramente, desciende de tantos reyes, como también por la mucha propincuidad con la Casa Real y tantas trabazones recíprocas hasta nuestros tiempos, porque parece es la fuente y centro de la misma nobleza. (8)

Faz muito sentido que, versando sobre os "triunfos da nobreza lusitana", Albergaria enalteça a casa mais nobre do Reino. Por que Coelho não traduziu tamanho elogio? Porque em 1640 o duque de Bragança foi aclamado rei de Portugal em meio à rebelião contra Dom Filipe III. E como eu disse mais acima, em 1645 Dom João IV doou o ducado a Dom Teodósio, seu primogênito. Consequentemente, as segundas armas da casa tornaram-se obsoletas, já que o príncipe trazia aquelas que lhe competiam como tal. Mesmo datando o Tesouro trinta anos depois desses eventos, Coelho não os atualiza, mas se cinge a copiar o trabalho de Albergaria.

Enfim, as armas do duque de Aveiro:

As armas destes senhores e casa são as reais de Portugal, como ramo do tronco real e tão propínquo a ele, com a diferença do labéu, que ao princípio atravessava todo o escudo e agora as quinas não mais, porque até a quarta e sexta geração não se extingue a bastardia (Guilhermo Benedito no cap. Reinuntius, 1.ª parte, n.º 31, fol. 4, trata dos labéus). Timbre: um pelicano, ainda que outros põem a serpe, porém com mais razão parece lhe compete o pelicano, porque el-Rei, seu pai, trazia por divisa um pelicano, que sustentava seus filhos com seu próprio sangue, para mostrar o zelo que tinha ao bem de seus vassalos. E não fez menor o amor que teve a seu filho, Dom Jorge, e assi justamente lhe pertence este timbre.

Perceba-se que a palavra labéu refere aí a qualquer diferença ou quebra. A rigor, tratando-se de filiação legítima, fala-se de diferença; tratando-se de filiação ilegítima, fala-se de quebra. No francês antigo, havia as formas label e labeau, lambel e lambeau. No francês moderno, lambeau ainda quer dizer 'retalho (de tecido)', enquanto lambel se especializou como vocábulo heráldico. Tendo-se importado labeau, parece que os autores espanhóis acharam que labeo derivava do latim labes 'mancha' (em contraposição à noção de armas direitas) (9). Seja como for, como a Casa de Aveiro descende de Dom Jorge de Lancastre, filho bastardo de Dom João II, a quebra que lhe cabe é um filete negro em barra, o sentido contrário ao que se vê aqui.

Mais curiosa é a diminuição do "labéu" ao longo de certo número de gerações. De fato, não rareiam as reproduções em que o filete atravessa apenas o campo de prata ou passa por baixo do escudete central das quinas, mas o Regimento e ordenação da armaria não diz que a bastardia se "atenua", e sim que as próprias armas reais devem fenecer na quarta geração, quer pelas linhas dos infantes quer pelas linhas dos filhos ilegítimos. O problema é que isso nunca foi praticado, porque ninguém ia abrir mão de um sinal tão prestigioso: nem os Lancastres, nem os Noronhas, nem os Sousas, nem os Albuquerques. (10)

Notas:
(1) Coloco entre parênteses as notas marginais.
(2) The accedence of armoury (1562).
(3) Cornúbia e Céstria são os nomes latinos da Cornualha e de Chester, um dos ducados e um dos condados subsidiários do principado de Gales, cujo nome latino é Wallia. Vivália parece, pois, erro de leitura.
(4) Após o juramento de Dom Filipe I nas Cortes de Tomar (1581), somente em 1616 Dom Filipe II convocou as Cortes de Portugal para jurar um príncipe herdeiro: Dom Filipe, príncipe das Astúrias desde 1608 (futuro Filipe III). O derradeiro juramento antes da Restauração aconteceu nas Cortes de Castela em 1632, sob a fórmula "Serenísimo y Esclarecido Señor Príncipe Don Baltasar Carlos, hijo primogénito heredero de Su Majestad, que presente está, por Príncipe destos Reinos y Señoríos a él sujetos, unidos e incorporados y pertenecientes" ("Sereníssimo e Esclarecido Senhor Príncipe Dom Baltasar Carlos, filho primogênito herdeiro de Sua Majestade, que presente está, por Príncipe destes Reinos e Senhorios a ele sujeitos, unidos e incorporados e pertencentes").
(5) A conquista de Gales foi um passo decisivo rumo à hegemonia da Inglaterra sobre as ilhas Britânicas e o Delfinado era um feudo imperial, de modo que a sua compra consistiu num grande ganho territorial para a França além do rio Ródano. No caso de Portugal, essa expansão estava no ultramar e como a África e a Ásia já constavam da intitulação régia (Rei de Portugal e dos Algarves d'aquém e d'além-Mar em África, Senhor de Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e da Índia), restava a América, cuja referência honrava, ademais, a bravura dos insurretos contra o domínio holandês em Pernambuco. Não obstante, convém salientar que a criação do principado do Brasil não alterou o estatuto desse território, que continuou um estado colonial da monarquia portuguesa. As rendas que sustentavam a casa do príncipe provinham, como se disse, do patrimônio da casa ducal de Bragança.
(6) Em Castela, o principado das Astúrias foi instituído a partir dos condados de Noreña e Gijón, que Henrique II herdara de Rodrigo Álvares, seu aio. À sua vez, o rei doou-os a Afonso Henriques, seu filho natural, que se conjurou insistentemente contra João I e Henrique III, daí o confisco dos seus bens. O território tinha, pois, uma importância estratégica — desde a conquista romana propiciava rebeliões contra o poder além dos montes Cantábricos —, mas também simbólica — era o berço da monarquia. Esse Afonso Henriques casou com Dona Isabel de Viseu, filha natural de Dom Fernando I, e deles descende a linhagem portuguesa dos Noronhas.
(7) De tudo um pouco: aqui armas de Portugal antigo, acolá de Portugal moderno, umas vezes sem filete e outras com filete, tanto em banda como em barra. Atualmente, a Fundação da Casa de Bragança e Duarte Pio de Bragança, pretendente ao ducado, usam da variante com as armas de Portugal antigo, que são, de fato, as mais adequadas da perspectiva heráldica.
(8) "Irmão desse Rei Dom João foi o Infante Dom Duarte, que casou com Dona Isabel, filha do dito Dom Jaime. E foram pais da Senhora Dona Catarina, que casou com o Duque Dom João, pais do Senhor Dom Teodósio, até o qual sucessivamente se continuaram por linha de varão os duques de Bragança, de modo que, por se ter casado o Imperador Carlos V com Dona Isabel, filha dos reis Dom Manuel e Dona Maria, irmã do infante, e ter nascido desse matrimônio o Rei Dom Filipe II, é o Senhor Dom Teodósio, sétimo duque, tio segundo do Rei, nosso Senhor, pelo que parece que em boa razão de estado deviam os príncipes fazer as suas alianças com essa casa, tão católica e grandiosa, assim porque, como se mostrou claramente, descende de tantos reis, como também pela muita propinquidade com a Casa Real e tantas ligações recíprocas até os nossos tempos, porque parece é a fonte e centro da própria nobreza" (tradução minha).
(9) No francês antigo, os nomes masculinos tinham dois casos: nominativo e oblíquo. O -l final, como em cheval ('cavalo'), vocalizava-se antes da desinência -s: nom. sing. li chevaus, obl. sing. le cheval; nom. pl. li cheval, obl. sing. les chevaus. Esse sistema extinguiu-se no século XV, mas até hoje as palavras acabadas em -l têm normalmente plural irregular: le chaval, les chevaux. No francês médio, o singular de algumas dessas palavras foi refeito por analogia, como le chapeau, les chapeaux (antes le chapel, les chapeaux), donde chapéu, que entrou no português antes da monotongação de au/eau (esse ditongo e tritongo passaram a soar /o/ no francês moderno).
(10) É verdade que as sutilezas do regimento da armaria, como a posição do filete em banda marcando a filiação natural e em barra a bastardia, foram elaboradas à medida que os oficiais o copiavam, refundiam e ampliavam, mas que o filete em barra era a quebra apropriada da bastardia está bem atestado por cartas de brasão desde a vigência do dito regimento.

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