01/07/22

AS QUINTILHAS HERÁLDICAS DE SÁ DE MENESES (VIII)

Armas dos Falcões, Goios, Pedrosas, Farias e Pachecos.

De João Rodríguez de Sá, decrarando alguns escudos d'armas dalgũas linhagens de Portugal que sabia donde vinham.

Armas dos Falcões: De azul com três bordões de prata, ferrados de vermelho, alinhados em faixa.
Armas dos Falcões: De azul com três bordões de prata, ferrados de vermelho, alinhados em faixa.

Falcão

Os que mostrarem bordões
num escudo de romeiros
são mui nobres estrangeiros
d'apelido de Falcões,
leais e bons cavaleiros.
Co duque mui afamado,
d'Alencrasto nomeado,
reinando el-Rei Dom João,
veio Mossém Jão Falcão,
um cavaleiro estremado.

"Mossém Jão Falcão" era Sir John Falconer. Veio da Inglaterra para Portugal no séquito de João de Gand, duque de Lancaster, cuja filha casou com Dom João I em 1387. Ele mesmo casou com uma fidalga portuguesa e teve vasta prole, que deu continuidade ao seu sobrenome, talvez originariamente uma alcunha (falconer quer dizer 'falcoeiro'), adaptado como Falcão.

A propósito, Mossém era uma forma de tratamento aragonesa (Mosén em espanhol, do catalão Mossèn), portanto uma tentativa de arranjar um equivalente hispânico para Sir. 

Armas dos Goios: De prata com três mosquetas de negro e um chefe partido, o primeiro de vermelho com um castelo de ouro, lavrado de negro, aberto e iluminado de azul; o segundo de ouro com quatro palas de vermelho.
Armas dos Goios: De prata com três mosquetas de negro e um chefe partido, o primeiro de vermelho com um castelo de ouro, lavrado de negro, aberto e iluminado de azul (Castela); o segundo de ouro com quatro palas de vermelho (Aragão).

Goios

Sobre prata, d'ouro fino
com as barras d'Aragão,
arminhos tão bem estão
e mais um castelo em pino.
Armas de Dom Anião,
de Dom Anião d'Estrada,
a quem primeiro foi dada
a vila de Góis d'herdade,
que a sua postridade
deixou dela anomeada.

Goios é uma aldeia de Barcelos, no Minho, e Góis é uma vila da Beira Litoral. Ambos os topônimos vêm do gótico gauja 'habitante de uma região'. Esta é a única relação entre esses dois lugares e sobrenomes, pois a literatura genealógica diz que os Goios descendem de Nuno Martins, filho de Martim Vasques, senhor de Góis.

O senhorio de Góis foi doado em 1113 pela condessa Dona Teresa a Anaia Vestrares, que viera das Astúrias para Portugal. É o Dom Anião do poema e foi antepassado do dito Martim Vasques. A este não sucedeu Nuno Martins, mas Estêvão Vasques, cuja neta, Mécia Vasques, casou com Gomes Martins de Lemos. Apesar das quebras de varonia, os senhores e as senhoras de Góis conservaram esse sobrenome até a neta da dita Mécia Vasques, Beatriz, que casou com Diogo da Silveira.

Esses dados genealógicos supõem simplesmente que o ramo de Nuno Martins de Góis se distinguiu do tronco da linhagem alterando o sobrenome e assumindo armas novas. Mas a própria explicação do chefe partido de Castela e Aragão começa por abalar essa suposição. Com efeito, diz-se que Martim Vasques de Góis combateu por Pedro I de Castela contra Pedro o Cerimonioso, rei de Aragão, a chamada Guerra dos Dois Pedros (1356-69). Entende-se, então, que as armas reais castelhanas consistem num acrescentamento honroso, isto é, uma recompensa do rei pelo serviço que se lhe prestou. Mas, e as armas reais aragonesas? Não tem sentido receber uma mercê heráldica de um inimigo nem se apropriar das suas armas.

Ao avançar da desconfiança à análise dos dados heráldicos, tudo desmorona. Ora, as armas dos Góis — de azul com seis cadernas de crescentes de prata — apareceram sob o senhorio de Fernão Gomes, filho de Gomes Martins de Lemos e Mécia Vasques de Góis, provavelmente uma quebra das armas dos Lemos. Antes, consta que Estêvão Vasques, seu bisavô, trazia um escudo esquartelado: no primeiro, um castelo e nele uma águia pousada; no segundo, três mosquetas; no terceiro, quatro palas; no quarto, um leão.

Como interpretar o conjunto dos dados? Parece que as armas primitivas dos Góis eram as três mosquetas de negro em campo de prata, as quais se combinaram com outras de mais difícil identificação, quiçá de linhagens maternas, por vezes muito mal documentadas. Quando Dom Manuel I ordenou a pesquisa das armas gentilícias nas sepulturas antes da feitura do Livro do Armeiro-Mor, acharam-se, pois, dois brasões dos Góis. Eu conjecturo que, aproveitando-se da embaixada de Martim Vasques de Góis junto a Afonso XI de Castela em 1336 para concertar o casamento do infante Dom Pedro com Constança Manuel, inventou-se uma participação sua na Guerra dos Dois Pedros, reordenando o castelo e as palas como um chefe partido de Castela e Aragão e trocou-se o nome da linhagem por outro muito semelhante. Tomaram-se, então, as armas dos Góis de Fernão Gomes como as verdadeiras da casa desse nome. Esta interpretação é confirmada pelas cartas de brasão posteriores: houve muitas concessões das armas dos Góis, mas nenhuma daquelas dos Goios.

Armas dos Pedrosas: De ouro com cinco pedras de sua cor e uma águia de negro, agarrando a pedra do centro.
Armas dos Pedrosas: De ouro com cinco pedras de sua cor e uma águia de negro, agarrando a pedra do centro.

Pedrosa

Ũa águia temorosa,
de quatro pedras cercada,
no meo d'outra assentada,
por armas òs de Pedrosa
antigamente foi dada.
Vieram de Ingraterra
com tenção que nunca erra:
despender vida e tesouros
em ajudar contra mouros
os portugueses na guerra.

Pedrosa é um topônimo frequente em Portugal e na Galiza. Indica um lugar pedregoso. A literatura genealógica aponta a Galiza como a origem de uma linhagem desse nome que começou com Diogo de Pedrosa, mordomo-mor da Excelente Senhora. Portanto, nem veio da Inglaterra nem os seus descendentes serviram na guerra, pois que exerceram ofícios cortesãos e concelhios.

Armas dos Farias: De vermelho com uma torre de prata, aberta e iluminada de negro, acompanhada de cinco flores de lis de prata, três em chefe e uma em cada flanco.
Armas dos Farias: De vermelho com uma torre de prata, aberta e iluminada de negro, acompanhada de cinco flores de lis de prata, três em chefe e uma em cada flanco.

Faria

Ò pé dum castelo erguido,
por se nom ver abaixado,
jaz um corpo espedaçado
com muitas partes partido,
por nom ser dũa apartado.
Faria é que nom faria
per onde a cavalaria
se perdesse erro nem tacha,
que desta maneira se acha
por guardar a que devia.

Faria é uma aldeia de Barcelos, no Minho. Pessoas desse sobrenome aparecem em documentos desde o início da nacionalidade. Não obstante, a literatura atribui estas armas à linhagem de Nuno Gonçalves, alcaide do castelo de Faria durante a Segunda Guerra Fernandina (1372-73).

Narra Fernão Lopes nos capítulos 78 e 79 da sua Crônica de Dom Fernando que, tendo Pedro Ruiz Sarmiento, adiantado-mor da Galiza, invadido Portugal pelo Minho, o dito alcaide de Faria foi feito refém. Convenceu, então, o adiantado de que se o levassem perante Gonçalo Nunes, seu filho, este se comoveria a entregar o castelo, que ficara sob a sua guarda, em troca da vida do pai. No encontro, o alcaide mandou-lhe, porém, que não entregasse o castelo senão ao rei Dom Fernando, "sob pena da sua beençom". Percebendo-se traídos, os castelhanos mataram, então, Nuno Gonçalves diante de seu filho.

Gonçalo Nunes resistiu ao cerco e, apesar de se ter feito clérigo alguns anos depois, tanto ele como seus irmãos tiveram descendência que continuou o sobrenome.

Armas dos Pachecos: De ouro com duas caldeiras de negro, uma sobre a outra, cada uma carregada de três faixas veiradas de ouro e vermelho, da qual saem quatro cabeças de serpente de negro, duas voltadas para dentro e duas para fora.
Armas dos Pachecos: De ouro com duas caldeiras de negro, uma sobre a outra, cada uma carregada de três faixas veiradas de ouro e vermelho, da qual saem quatro cabeças de serpente de negro, duas voltadas para dentro e duas para fora.

Pachecos

Em campo d'ouro assentadas,
caldeiras d'ouro luzente
com cabeças de serpente
nas ás e faixas veiradas
são armas d'antiga gente:
Pachecos, de tal ventura
em soster e ter segura
sua nobreza e crescendo,
que em tempo de César sendo,
ainda lhe agora dura.

Narra Rui de Pina no capítulo 10 da sua Crônica de Dom Sancho II que, estando já esse rei desterrado em Castela, Fernão Rodrigues permaneceu-lhe leal, negando entregar o castelo de Celorico da Beira, do qual era o alcaide, ao conde de Bolonha. Este resolveu, então, impor um cerco. Quando a fome estava prestes a forçar a rendição, Fernão Rodrigues rogou a misericórdia divina. No instante, uma águia que agarrara uma truta no rio Mondego alçou voo e deixou-a cair dentro do castelo. O alcaide mandou servi-la ao conde com o melhor pão que pôde achar e dizer-lhe que por desabastecimento os defensores não entregariam a praça. Crendo que o cerco se prolongaria demais, o conde levantou-o e foi-se para Coimbra.

É provável que a alcunha pacheco contenha a mesma raiz do verbo empachar 'empanturrar' e é possível que as caldeiras das armas (que são mesmo de ouro com as faixas veiradas de vermelho e ouro no Livro do Armeiro-Mor e no Livro da nobreza e perfeição das armas) refiram a essa alcunha. Seja como for, foi assumida como sobrenome pelos descendentes de Fernão Rodrigues, alcaides-mores de Celorico da Beira e também senhores de Ferreira de Aves, na mesma região, até a quarta geração.

Com efeito, em 1398 João Fernandes Pacheco passou a Castela para apoiar a pretensão do infante Dom Dinis, filho de Dom Pedro I e de Dona Inês de Castro, à coroa portuguesa. Após a morte deste, pôs-se ao serviço de Henrique III, quem lhe doou o senhorio de Belmonte, na Mancha. De sua filha, María, descende a casa castelhana de Pacheco.

Que a linhagem dos Pachecos remonte a um tal Lúcio Júnio Pacieco, que serviu a Júlio César, é mera fantasia genealógica.

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