21/12/24

OS DEZ MAIS ANTIGOS (X)

Brasão de armas de Antônio Leme.

O décimo brasão mais antigo e o derradeiro desta série foi dado a Antônio Leme em 1471. Eis a carta de Dom Afonso V:

Armas de Antônio Leme: "ũu escudo, do qual o campo é d'ouro, com cinco merletas de sable em santoir".
Armas de Antônio Leme: "Ũu escudo, do qual o campo é d'ouro, com cinco merletas de sable em santoir".

Dom Afonso etc. A quantos esta nossa carta virem, fazemos saber que, consirando nós em como o Príncipe, meu sobre todos muito preçado e amado filho, de seu própio querer e vontade, por seus serviços fez a Antônio Leme, cavaleiro de sua Casa, nós, havendo respeito aa sua boa vontade e desejo, com que nos veo de Frandes servir em a tomada da nossa vila d'Arzila e cidade de Tânger com certos espingardeiros e hómẽes em ũa urca, em a qual o seu pai, Martim Leme, enviou a nos servir na dita guerra, e querendo mais ainda honrar como teúdo somos fazer aos que nos no semelhante bem servem, como ele fez, dês i querendo-lhe fazer graça e mercee de nosso própio querer, vontade e poder absoluto, queremos e a nós praz darmos-lhe ũu escudo timbrado de novas armas, a saber, ũu escudo, do qual o campo é d'ouro, com cinco merletas de sable em santoir, segundo é conteúdo em este escudo, aqui, em esta nossa carta patente, blasonado e pintado, posto que nós bem em conhecimento somos que ele da parte de seu pai pode trazer armas com deferença, mas porque ele verdadeiramente as tenha e possa trazer como chefe delas, sem deferença algũa, como aquele que por seus serviços e mericimentos ganhou, nós lhe damos as ditas armas novamente, pera ele e pera todos aqueles que dele decenderem per legítimo matrimônio. E per esta nossa carta mandamos ao nosso Primeiro Rei d'Armas e oficiaes delas que assi o notifiquem e em seus livros registem, porque assi é nossa mercee e vontade. E por sua guarda e memória e seer notório pera sempre como todo passou, lhe mandamos dar esta nossa carta, per nós assinada e asseelada do nosso seelo do chumbo. Dada em a nossa cidade de Lisboa, a doze dias do mês de novembro. Martim López a fez. Ano do Nacimento de Nosso Senhor Jesu-Cristo de 1471. (em leitura nova, Míst., liv. 3, fl. 13v; na Chanc. de D. Afonso V, liv. 21, fl. 90)

Foi-se o tempo quando a cruzada hispânica atraía cavaleiros além-Pireneus, como o próprio Henrique de Borgonha, tronco dos reis portugueses, ávidos de fama. Essa carta de armas novas, a terceira que Dom Afonso V mandou passar na sequência das conquistas de Arzila e Tânger, em 24 e 28 de agosto de 1471, prova definitivamente que a expansão ultramarina era um empreendimento comercial. A própria Ordem de Cristo mais parecia um banco que uma ordem de cavalaria.

Com efeito, a presença do flamengo Maarten Lem está atestada na praça de Lisboa desde 1452 e dez anos depois prosperava bastante para emprestar dinheiro ao rei, que assaltaria a cidade marroquina de Tânger em novembro de 1463 e em janeiro de 1464, sem sucesso. Nesse mesmo ano, os sete filhos que esse mercador tivera com Leonor Rodrigues foram legitimados por Dom Afonso V. Só em 1467, quando retornara de vez a Bruges, foi que casou com uma dama do patriciado local. Era, pois, o típico burguês dos Países Baixos, que possuía, inclusive, brasão de armas, sobejamente conhecido na literatura heráldica portuguesa: em campo de prata três merletas de negro.

O presente texto patenteia, pois, que mesmo depois do retorno a Flandres Martim Leme manteve os laços com Portugal: contribuiu novamente em 1471 com a gesta africana, armando uma urca para levar à guerra peões, espingardeiros e um de seus filhos, o nosso armígero, que até então estivera junto de seu pai. Desde então, Antônio abriu o seu próprio caminho. Aparece em 1483 na ilha da Madeira, onde plantou cana-de-açúcar e se tornou homem-bom da vila do Funchal. Casou com Catarina de Barros, de quem teve, pelo menos, sete filhos.

Um dos filhos de Antônio Leme, chamado Antão, veio para o Brasil. Em 1544 consta que foi juiz ordinário de São Vicente. Pedro Leme, seu filho, casou três vezes e a partir dessa vila, cabeça da capitania homônima, a sua geração multiplicou-se sertões adentro, nos rastos das bandeiras. Inclusive, foi bisavô de Fernão Dias Pais, o Governador das Esmeraldas. Em 1741 um neto desse célebre bandeirante justificou a sua nobreza perante o ouvidor-geral do Rio de Janeiro e em 1750 recebeu carta de armas dos Lemes como chefe delas. O registro foi destruído pelo Terremoto de Lisboa, mas Frei Manuel de Santo Antônio e Silva, reformador do Cartório da Nobreza, copiou um extrato num seu livro particular:

Pedro Dias Pais Leme, fidalgo da Casa Real, comendador na Ordem de Cristo, guarda-mor-geral das Minas Gerais, fez petição dizendo descender por linha legítima e ser o chefe da geração dos Lemes, por ser filho legítimo de Garcia Rodrigues Pais, capitão-mor que foi da vila de São Paulo, administrador e guarda-mor-geral de todas as Minas, e de sua mulher, Dona Maria Pinheiro da Fonseca, filha do Capitão João Rodrigues da Fonseca, natural da cidade de Lamego, e de sua mulher, Dona Antônia Pinheiro Raposo; neto de Fernão Dias Pais, capitão-mor que foi também das Ordenanças da dita vila, descobridor e primeiro governador das Minas e da gente da guerra, padroeiro do Mosteiro de São Bento da dita vila de São Paulo, e de sua mulher, Dona Maria Garcia, filha do Capitão Garcia Rodrigues, o Velho, e de sua mulher, Maria Betim, filha de Geraldo Betim Alemão; bisneto de Pedro Dias Leme, capitão que foi da Milícia da dita vila, e de sua mulher, Maria Leite, filha de João Leite da Silva; terceiro neto de Fernão Dias Pais, que foi um dos conquistadores da capitania de São Vicente, nas partes da América, onde viveu, e de sua mulher, Dona Lucrécia Leme, filha legítima de Luís Leme; quarto neto de Pedro Leme, que viveu na vila de Abrantes, onde casou com Isabel Pais; quinto neto de Antão Leme; sexto neto de Antônio Leme, que viveu na ilha da Madeira, na sua quinta, que hoje chamam dos Lemes, e de sua mulher, Caterina de Barros, instituidora de um morgado na vila da Ponta do Sol, na dita ilha, filha de Pedro Gonçalves da Câmara e de Isabel de Barros; sétimo neto de Martim Leme, chamado o Moço, que passou à ilha da Madeira no ano de 1483 com ũa carta do Duque Dom Fernando para a Câmara do Funchal, a quem o recomenda, que se acha registada no Arquivo da Câmara da mesma ilha, registado no Livro 2.º, a fl. 158; oitavo neto de Antônio Leme, cavaleiro da Casa d'el-Rei Dom João II quando príncipe; nono neto de Martim Leme, cavaleiro flamengo, o qual era tão devoto das cousas de Portugal, que mandou de Flandres, donde era natural, seu filho Antônio Leme em ũa charrua à sua custa  com vários homens de lanças e espingardas para servirem com ele a el-Rei Dom Afonso V nas expedições que este senhor fez na África, o qual o tomou por fidalgo de sua Casa com o foro de escudeiro; décimo neto de outro Martim Leme, cavaleiro nobre e rico da cidade de Bruges, no condado de Flandres. O que tudo fez certo por uma sentença tirada na Correição do Cível da Corte, de que foi juiz o Desembargador ..., e o Rei de Armas Portugal, Manuel Pereira da Silva, cavaleiro professo na Ordem de Cristo, lhe passou brasão com as armas da dita família em chefe. Feito em Lisboa, a ... de dezembro de 1750. E subscrito por Hilário da Costa Barreiros, Escrivão da Nobreza proprietário, e registado no Livro 13. Frei Manuel de Santo Antônio e Silva. (Cart. da Nobr., liv. part., fl. 7v)

Pela primeira vez nesta série, achamos uma certificação de armas dadas no século XV feita no XVIII com a devida justeza. Não por mérito daqueles que então superintendiam o Juízo e Cartório da Nobreza, mas dos próprios Lemes vicentinos. Ciosos da sua fidalguia, em mais de uma ocasião produziram provas dela: Pedro Leme em 1564; o padre João Leite da Silva e Garcia Rodrigues Pais em 1681. Esses instrumentos foram juntados por Pedro Dias ao seu processo, que parece ter embasado a própria literatura, pois o texto copiado por Frei Manuel é quase igual ao do Nobiliário genealógico, crítico e histórico (1743–64, t. 2), de José Freire Monterroio Mascarenhas, inclusive no equívoco de duplicar Antônio Leme como pai e filho de Martim Leme, o Moço, quando eram irmãos (1). Não obstante, é no processo de Pedro Dias que se dá Pedro Gonçalves da Câmara por pai de Catarina de Barros, quando se chamava Pedro Gonçalves da Clara (2).

A obra de Mascarenhas foi aproveitada por Pedro Taques de Almeida na Nobiliarquia paulistana, a qual levou consigo para Portugal em 1774 e deixou aos cuidados do desembargador João Pereira Ramos, mas só foi impressa a partir de 1869 na Revista do IHGB. À sua vez, esse trabalho foi revisto e ampliado por Luís Gonzaga da Silva Leme na Genealogia paulistana (1903–05) (3). Graças a tudo isso, sabemos que estão corretas, ao menos no que respeita às armas dos Lemes, as cartas passadas em 1799 a Antônio Pires da Silva Pontes Leme, governador do Espírito Santo (1801–04) e terceiro neto do bandeirante Fernão Dias (4), e a José Gregório de Morais Navarro Leme, bisneto de Antônio Leme do Prado, quarta geração de Pedro Leme, o progenitor do ramo brasileiro (5). Muito menos claro é o caso de Antônio de Almeida Pinto Soares de Carvalho Ribeiro Leme, morador em Santa Cruz do Douro, filho de Antônio de Almeida Pinto e Custódia Luísa Leme e que obteve carta de brasão em 1800 (6), provavelmente descendente de algum outro dos filhos de Antônio Leme ou mesmo de algum de seus irmãos.

Em particular, na carta de Antônio Pires da Silva assim se brasonam as armas dos Lemes: "Em campo de ouro cinco melros negros, sem pés nem bicos, postos em sautor". Isso vem desde a Nobiliarquia portuguesa (1676), de Antônio de Vilas Boas e Sampaio (7), e contrasta fortemente com o brasonamento original, não só pela tentativa renovada de se fazer uso de uma linguagem afrancesada (cf. a postagem de 17/12; sobre o termo santoir, a nota 8 daquela de 30/06), mas também porque o termo merleta dá a medida certa do quão necessário é o galicismo. Ora, uma merleta não é um melro, ainda que em francês merlette derive de merle e designe a fêmea desse pássaro. Deve-se entendê-la como uma figura heráldica e discernir aquela sem bico nem pés como mais moderna. Efetivamente, no Tratado Prinsault (1444), que faz parte de um grupo de textos instrutivos circulantes no século XV e conhecidos, ao que parece, pelo rei de armas Portugal em 1471, lê-se que "la merlette [...] en armes jamais n'a jambes ne pieds" ("a merleta [...] nas armas nunca tem pernas nem pés". É exatamente dessa forma que as vemos no Livro do Armeiro-Mor (1509), cujo autor, João do Cró ou Jean du Cros, provinha precisamente dessa cultura heráldica francófona.

Outro aspecto destacável é a noção de diferença, que ressai tanto da mercê nova de Antônio Leme como da certificação de Pedro Dias Pais Leme. Nesta, mostra que em pleno século XVIII — o auge da "heráldica de sobrenomes" — permanecia incólume o preceito de que ao chefe da linhagem cabiam as armas direitas e os demais deviam diferençá-las. Naquela, mostra o quanto tal noção se adiantou à reforma manuelina (1512).

Conquanto desde os primórdios a diferença fosse praticada pela Casa Real — na forma antiga durante a primeira dinastia, isto é, pela alteração do ordenamento das armas direitas, e por meio do lambel a partir da segunda — só com estudo descobrimos que a semelhança de certos brasões, como o dos Lemos e o dos Góis, oculta a separação de uma linhagem de outra mediante a heráldica. Aqui, não obstante, está bem claro que se trata da diferença pessoal: "nós bem em conhecimento somos que ele da parte de seu pai pode trazer armas com deferença, mas porque ele verdadeiramente as tenha e possa trazer como chefe delas". Na ordem das legitimações, Antônio é, de fato, o terceiro dos filhos de Martim Leme.

Mas tinha mesmo Pedro Dias direito às armas plenas dos Lemes? Em primeiro lugar, cabe ressaltar que é raríssimo encontrar essa espécie no Cartório da Nobreza, porque os chefes reputavam trazer as armas das suas casas por fato notório e não precisavam, portanto, sujeitar-se ao Juízo da Nobreza. Depois, a chefia transmitia-se por primogenitura masculina, logo teríamos de assumir que Antão Leme era o filho mais velho de Antônio Leme, o que remanece incerto, sem falar de toda a mais sucessão desde Pedro Leme. Seja como for, impõe-se a perfeição do ato: o rei de armas Portugal julgou as provas suficientes e certificou a chefia, talvez a única da armaria portuguesa que se transferiu para o Brasil.

Com efeito, na segunda geração de Pedro Dias Pais Leme um neto homônimo seu foi criado barão de São João Marcos por Dom João VI em 1818 e, tendo sido leal à causa da Independência, Dom Pedro I concedeu-lhe a grandeza do Império ainda em 1822 e elevou-o a marquês em 1826. O mesmo imperador criou outro Pedro Dias barão com grandeza (1825), visconde e marquês (1826) de Quixeramobim. Ele era filho de Garcia Rodrigues Pais Leme e sobrinho do marquês de São João Marcos. Ao cair a monarquia, o chefe do nome e das armas era Pedro Dias Gordilho Pais Leme, neto do marquês de São João Marcos, fazendeiro e engenheiro civil, falecido em 1915.

Notas:
(1) Segundo Margarida Ortigão Ramos Paes Leme em artigo de 2008.
(2) Na petição (copiada por Pedro Taques), Pedro Leme alega que seu pai, tios e tias eram primos do "capitão donatário da ilha da Madeira". Talvez aí tenha começado a confusão, que não deixava de ser conveniente, pois vincular-se aos Câmaras enobrecia um bom tanto os Lemes, a ponto de o filho e o neto primogênitos de Pedro Dias Pais Leme terem acrescentado Câmara aos seus sobrenomes.
(3) Esses genealogistas mesmos descendiam da geração dos Lemes. Pedro Taques era bisneto de Isabel Pais da Silva, irmã do governador Fernão Dias Pais; Luís Gonzaga era descendente de Leonor, filha de Pedro Leme e Luzia Fernandes, sua segunda esposa.
(4) O escudo esquartelado de Silvas, Pontes, Lemes e Botelhos e, por diferença, uma brica verde com um farpão de ouro (Cart. da Nobr., liv. 6, fl. 42v).
(5) O escudo esquartelado de Pretos, Mendes, Lemes e Oliveiras e, por diferença, uma brica vermelha com um farpão de prata (Cart. da Nobr., liv. 6, fl. 77).
(6) O escudo esquartelado de Almeidas, Pintos, Lemes e Carvalhos (Cart. da Nobr., liv. 6, fl. 129). Os seis sobrenomes desse sujeito na sua carta de armas são típicos da obsessão genealógica que preponderava então.
(7) "Em campo de ouro cinco melros de preto em aspa, sem pés nem bicos; timbre: um dos melros entre uma aspa de ouro". Antes, o padre Antônio Soares de Albergaria (Triunfos de la nobleza lusitana, 1631) fora mais certeiro ao não preterir o termo merleta: "En campo de oro cinco merletas negras en aspa, sin pies ni picos. Y por timbre una dellas entre un aspa de oro". Este é, a propósito, o testemunho mais antigo do timbre, já que foram roubadas as folhas do Livro da nobreza e perfeição das armas em que os brasões de Martim e Antônio Leme estavam pintados.

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