30/06/24

TESOURO DE NOBREZA (EPÍLOGO)

A linguagem heráldica portuguesa sobressai pela sua vernaculidade e singeleza, o que era ainda mais notável até o século XIX.


Introdução

No princípio, o objetivo que me moveu a estudar as Famílias de Portugal e suas armas, origem e descendência (Códice ANTT 21-F-15), de Francisco Coelho, foi compreender a linguagem verbal usada por um oficial de armas ao descrever os brasões das linhagens nobres do Reino no século XVII. É verdade que ao longo do estudo descobri que esse trabalho não é original, mas sim tradução dos Triunfos de la nobleza lusitana y origen de sus blasones (1631), do padre Antônio Soares de Albergaria.

De onde tirou, pois, Albergaria o seu armorial? Este, sim, é um trabalho original, como ele próprio o declara no prólogo. Se havia fonte antecedente da mesma espécie, tal era o Livro Antigo dos Reis de Armas, que não conhecemos, porque acabou perdendo-se. De todo modo, o Juízo e Cartório da Nobreza era demasiado cioso da sua jurisdição para cedê-lo à curiosidade alheia. Apesar disso, é bastante razoável supor que as fontes consultadas pelo padre estavam no idioma pátrio, ao menos aquelas que davam brasões de linhagens portuguesas. De forma similar, devem ter elaborado Frei Leão de Santo Tomás e Antônio de Vilas Boas e Sampaio os seus brasonários, aquele na Beneditina lusitana (1651) e este na Nobiliarquia portuguesa (1676).

Ainda que o barbarismo afete com frequência a tradução de Coelho, é precisamente o seu caráter literal que reflete os originais de Albergaria, cuja obra, à diferença da Beneditina e da Nobiliarquia, versa especificamente sobre genealogia e heráldica. Com efeito, o padre procurou uniformizar minimamente os dados que colhia, enquanto Frei Leão e Sampaio se cingiram à mera cópia. Inclusive, o rei de armas Índia aproveitou-se dessa falha para atacar o magistrado nas Advertências feitas ao livro Nobiliarquia portuguesa no que toca às armas das famílias (editado por Antônio Caetano de Sousa nas Provas da História genealógica da Casa Real portuguesa, tomo VI, 1748).

Ademais, a feitura do Tesouro propicia o cotejo do brasonamento, nem sempre claro, com uma iluminura do próprio tradutor. Foi assim que percebi, por exemplo, o abuso do termo armado e da locução em roquete, como expliquei na postagem introdutória. Aí faltou, porém, abordar outro desdobramento: Albergaria deixou de registrar os timbres de trinta linhagens nos Triunfos, provavelmente porque a maioria era pouco conhecida e ele não tinha autoridade para dá-los, nem Frei Leão nem Sampaio. Coube, pois, a Coelho estabelecer alguns, a saber, aqueles dos Afonsos, Amorins, Ávilas, Baleatos, Bocarros, Borralhos, Cabedos, Cárcamos, Castanhos, Calaças, Cavaleiros, Couceiros, Lousadas, Meireles, Secos, Torneios e Vidais (1).

Tecidas estas considerações, quero nesta derradeira postagem sobre o Tesouro voltar ao meu propósito inicial: a linguagem heráldica praticada pelo primeiro oficial de armas que legou aos pósteros tanto o brasonamento como a pintura do conjunto das armas da nobreza portuguesa.

O ordenamento

Abreu, Marinho e Lousada.
Abreu, Marinho e Lousada.

Era habitual brasonar as armas explícita ou implicitamente como um predicado nominal ou verbal, isto é, enunciava-se a peça ou figura como predicativo ou objeto e o campo como adjunto adverbial de lugar, antes ou depois: "[As armas dos Abreus são] em campo vermelho cinco asas de águia de ouro direitas em aspa"; "[Os Marinhos trazem] cinco flores de lis d'ouro em aspa em campo verde". Subsistia, ainda, uma forma mais antiga, consistente em enunciar o escudo como predicativo ou objeto e introduzir o adjunto adverbial de lugar por anáfora: "[Os Lousadas trazem] escudo de prata e nele dous lagartos verdes, que saem de antre lousas de púrpura".

Queirós, Azevedo e Perestrelo.
Queirós, Azevedo e Perestrelo.

Não se desconhecia, porém, o brasonamento "à francesa", que dá primeiro o esmalte do campo e a peça ou figura num sintagma preposicional, no qual pelo à francês se usa com"escudo esquartelado: no primeiro e último, de ouro com seis crescentes de luas vermelhos em duas palas; e no segundo e terceiro, de prata com um leão de púrpura" (Queirós). Isso acontecia especialmente nas partições, que podiam combinar outras opções de brasonamento: "escudo esquartelado: o primeiro e último de ouro com ũa águia negra; e no segundo e terceiro, em campo azul cinco estrelas de prata e ũa orla vermelha com oito aspas d'ouro" (Azevedo); "escudo partido em pala: o primeiro de ouro com um leão de púrpura, armado de vermelho; o segundo de prata e nele ũa banda azul com três estrelas de ouro entre seis rosas vermelhas em duas palas" (Perestrelo).

As partições

Vilas Boas, Trigueiros, Calvo, Albuquerque e Sampaio.
Vilas Boas, Trigueiros, Calvo, Albuquerque e Sampaio.

Havia diferentes formas de brasonar uma esquarteladura. Assim, podia-se encabeçar a enumeração dos quartéis pela preposição em (Vilas Boas: "escudo esquartelado: no primeiro e último, um castelo de prata, lavrado de negro, em campo vermelho com um ramo de palma verde, que lhe sai da torre mais alta; e nos demais, um dragão de prata voando, armado de vermelho, com o rabo retorcido em campo azul"), mas era igualmente usual a preposição a (Trigueiros: "escudo esquartelado: ao primeiro e último, em campo verde cinco espigas de trigo de ouro; ao segundo e terceiro, em campo vermelho ũa faixa de prata"). Também já se fazia como hoje, enumerando-se os quartéis sem preposição (Calvo: "escudo esquartelado: o primeiro e último, cinco fivelas de prata em campo vermelho; e o segundo e terceiro, cinco vieiras de prata em campo azul; e sobre todo um escudo de ouro com um leão de sua cor"). Enfim, corroborando a seção antecedente, podia-se optar por mais de uma forma: "escudo esquartelado: em o primeiro, as do Reino com seu filete em contrabanda; o segundo de vermelho com cinco flores de lis d'ouro em aspa; e assi os contrários" (Albuquerque); "escudo esquartelado: ao primeiro e último, de ouro com ũa águia de púrpura estendida, armada de negro; e os demais de xaqueles de ouro e azul de miúdas peças; orla vermelha com oito SS de prata" (Sampaio).

Peixoto, Sá, Soutomaior, Aboim, Altero e Cotrim.
Peixoto, Sá, Soutomaior, Aboim, Altero e Cotrim.

Como se terá observado, pesavam muito as escolhas estilísticas: o primeiro e o último/o segundo e o terceiro; o primeiro e o último/os demais; o primeiro/o segundo/e assim os contrários. É por isso que Coelho ora copia o xaquelado do brasonamento de Albergaria em espanhol (Peixoto: "escudo xaquelado de ouro e azul de seis peças em faixa"; Sá: "escudo xaquelado de prata e azul de seis peças em faixa"; Soutomaior: "em campo de prata três faixas xaqueladas de ouro e vermelho com seus viroles negros"), ora o adapta como xaquetado (Aboim: "escudo esquartelado: o primeiro e último xaquetado de azul e ouro de quatro peças em faixa; e no segundo e terceiro, três palas azuis em campo de ouro"; Altero: "xaquetado de ouro e vermelho de quatro peças em faixa"; Cotrim: "escudo xaquetado de ouro e azul de seis peças em faixa") (2).

Arca e Fafes.
Arca e Fafes.

Em compensação, não se tinham desenvolvido ainda certas noções, como a equipolência. Destarte, brasonam-se igualmente como xadrezados de três peças os pontos equipolados dos Arcas e dos Fafes: "escudo esquartelado: o primeiro de ouro com faixa vermelha; o segundo xaquetado de ouro e vermelho de três peças em faixa; e assi os contrários" e "escudo partido em pala: no primeiro, xaquetado de ouro e vermelho de três peças em pala; e no segundo, xaquetado das mesmas peças de prata e azul".

Morais, Saraiva, Boto, Fogaça, Mendonça e Negreiros.
Morais, Saraiva, Boto, Fogaça, Mendonça e Negreiros.

De fato, a linguagem heráldica atual resulta de um refinamento paulatino, daí que em vez de partido, cortado, fendido e talhado se dissesse partido em pala, em faixa, em banda e em contrabanda"escudo partido em pala: o primeiro com ũa torre de prata, lavrada de negro e coberta d'ouro, em campo vermelho, com ũa bandeirinha de prata, assentada junto de água; o segundo de prata com ũa moreira verde" (Morais); "escudo partido em faixa: a primeira, mais alta, de veiros e a segunda de ondas de mar de azul e prata; orla vermelha com quatro flores de lis em cruz" (Saraiva). Não obstante, em vez de partido em aspa (Canela: "escudo partido em aspa: no primeiro quartel, de prata ũa flor de lis azul; e no segundo verde com um escudinho de prata com cinco palas vermelhas; e assi aos contrários"), na armaria portuguesa sempre se preferiu o termo franchado: "escudo franchado de ouro e vermelho: sobre o primeiro, ũa cabeça de mouro, toucada de prata e cortada em sangue; e no segundo, ũa torre de prata, lavrada de negro; e assi aos contrários" (Boto); "escudo franchado: em o primeiro cinco palas de ouro em campo vermelho; e o segundo de ouro com ũa fogaça azul, gretada de prata; e assi os contrários" (Fogaça); "escudo franchado de verde e ouro e sobre o verde ũa banda vermelha, perfilada d'ouro, e sobre o ouro um S negro e assi aos contrários" (Mendonça) (3). Por outro lado, como as repartições rareiam nessa mesma armaria, não ocorrem palado, faixado, bandado etc.; encontra-se apenas o termo composto no brasão dos Negreiros: "escudo esquartelado: o primeiro composto de seis palas de ouro e azul; o segundo xaquetado de ouro e azul de seis peças em faixa".

Henriques, Noronha, Casa de Tarouca e Garcês de Afonso Garcês.
Henriques, Noronha, Casa de Tarouca e Garcês de Afonso Garcês.

Onde o campo apresenta divisão irregular, a inteligência diminuía. Por exemplo, o mantelado era entendido ao revés: "escudo de prata com dois leões de púrpura rompentes e batalhantes; mantelado de vermelho e sobre o mantel, que divide os leões, um castelo de ouro de três torres" (Henriques); "escudo esquartelado: ao primeiro, as armas reais de Portugal; no segundo, dois leões batalhantes de púrpura em campo de prata e um mantel vermelho, que os divide, e no meio um castelo de ouro e por orla uns veiros de azul e ouro" (Noronha). Se a multiplicação sobe acima de quatro, a confusão aumentava na mesma medida: "escudo de ouro, partido em três palas, esquartelado e de um a outro entrecambadas as armas de Vila Lobos e Aragão e sobre tudo, no meio, um escudo dos Meneses" (Casa de Tarouca); "campo partido em três palas: a primeira e terceira quarteadas: o primeiro de ouro com seis torteaus vermelhos em duas palas e assi ao contrário; o terceiro de azul com ũa torre de prata, lavrada de negro, cercada de estrelas de ouro; a pala do meio partida em três faixas: a superior de vermelho com duas chaves de prata em aspa, assentadas sobre um minguante de prata; a segunda de prata e a terceira inferior em quartéis: o primeiro de vermelho com ũa cruz chã de prata com um chefe do mesmo e o segundo de vermelho com três besantes de prata" (Garcês de Afonso Garcês) (4). Cabe recordar que esses dois brasões antecedem o Regimento e ordenação da armaria (1512), que vedava composição superior a quatro quartéis (5).

Os esmaltes

Nóbrega, Lobo, Mascarenhas, Carvalho, Câmara e Camões.
Nóbrega, Lobo, Mascarenhas, Carvalho, Câmara e Camões.

O leitor atento terá percebido que vermelho, azul, negro e verde funcionam normalmente como adjetivos, concordando com os substantivos que predicam, a não ser quando complementam um particípio, no que se recorre, então, à preposição de: "em campo d'ouro quatro palas vermelhas" (Nóbrega); "em campo de prata cinco lobos negros em aspa, armados de vermelho" (Lobo); "em campo vermelho três faixas de ouro" (Mascarenhas); "em campo azul ũa estrela de ouro de sete pontas antre ũa caderna de crescentes de prata" (Carvalho); "em campo negro ũa torre de prata, assentada sobre um monte verde, antre dois lobos de ouro, armados de negro, empinados" (Câmara); "em campo verde ũa garganta de serpe d'ouro, que sai de antre dois penhascos de prata, salpicados de vermelho" (Camões). (6)

Alvarenga, Pais, Vasconcelos, Teive, Barreto e Chacim.
Alvarenga, Pais, Vasconcelos, Teive, Barreto e Chacim.

As peles sofriam, porém, uma percepção vacilante. Assim, nas armas dos Alvarengas brasona-se o campo como segue: "o campo de veiros de prata e azul e três faixas de vermelho". A redundância é óbvia, mas onde o veirado apresenta esmaltes diferentes, costumava-se empregar de maneira meramente formular a locução veirado e contraveirado"em campo de prata nove lisonjas postas em três palas, veiradas e contraveiradas de azul e vermelho" (Pais); "escudo negro, três faixas de veiros de prata e vermelho, veiradas e contraveiradas" (Vasconcelos). Com relação ao arminho, a inconsistência parece ainda maior, porque por tal palavra se entendia a mosqueta (Teive: "escudo esquartelado: no primeiro e último, de ouro com seis torteaus vermelhos em duas palas; e no segundo e terceiro, de prata com três arminhos negros em faixa"), daí que se brasonem as armas dos Barretos "em campo de prata, semeado de arminhos". Não obstante, dos Chacins diz-se que trazem "escudo arminhado, banda vermelha, acoticada de prata" e dos Guimarães, "em campo de prata, listrado ou fretado de negro, e ũa pala vermelha e sobre ela um leão batalhante, vestido de arminhos".

Boteto, Brandão, Gavião, Perdigão e Revoredo.
Boteto, Brandão, Gavião, Perdigão e Revoredo.

Quanto à pintura ao natural, amiúde fica pressuposta pela ausência de declaração, como no timbre dos Botetos ("meio mouro vestido de ouro, forrado de arminhos e toucado de prata; barba larga, meios braços nus e na mão direita ũa pedra, como que tira com ela") ou, ainda, nas armas dos Brandões ("em campo azul cinco brandões de ouro acesos em aspa"). Mas também se empregava bastante a locução de sua cor"cinco gaviões de sua cor em campo azul, armados de ouro" (Gavião); "em campo de ouro cinco perdigões de sua cor" (Perdigão); "em campo azul um baluarte de prata, ardendo em fogo, assentado sobre ũa rocha de sua cor" (Revoredo).

Paim, Frota, Franca e Alvernaz.
Paim, Frota, Franca e Alvernaz.

Analogamente, conhecia-se o termo entrecambado (Paim: "escudo franchado de prata e negro e em cima de todo um leão rompente entrecambado do mesmo e armado de prata e vermelho com semelhante variedade"), mas nas armas dos Frotas se emprega outro: "escudo partido em faixa de ouro e vermelho e sobre tudo um leão rompente entressachado do mesmo". As dos Francas demonstram, por outro lado, que nem sempre se compreendia bem tal recurso: "em campo de prata quatro palas verdes e sobre todo ũa banda verde com quatro lisonjas de prata da distância das palas". Desconhecia-se, isso sim, a locução de um no outro"escudo esquartelado: o primeiro e último de azul e um ramo de carapeteiro de prata de sete pontas e o segundo e terceiro de prata com o mesmo carapeteiro azul" (Alvernaz).

As peças

Almeida, Barbedo, Coelho e Salema.
Almeida, Barbedo, Coelho e Salema.

As peças honrosas recebiam os mesmos nomes que têm atualmente, salvo a bordadura: ainda que se dispusesse dessa palavra (Almeida: "em campo vermelho seis besantes de ouro entre ũa cruz-doble e bordadura do mesmo"), preferia-se orla"cinco estrelas vermelhas em campo d'ouro e ũa orla azul" (Barbedo); "em campo de ouro um leão de púrpura com três faixas jaqueladas de ouro e azul e ũa orla azul com sete coelhos de prata, malhados de preto" (Coelho); "em campo verde um castelo de ouro coberto, lavrado de negro; orla azul com sete peixes salemas de prata" (Salema). Isso não causava confusão com a peça hoje denominada orla, porque ela não ocorria na armaria portuguesa.

Aranha, Sodré e Vinhal.
Aranha, Sodré e Vinhal.

No caso da asna, acontecia que para alguns a palavra soava mal, por ser o feminino de asno. Daí certa preferência por chaveirão, adaptado do francês chevron"em campo azul, asna ou chaveirão de prata antre três flores de lis d'ouro e no alto dela um escudinho vermelho com ũa banda de prata e sobre ela três aranhas negras" (Aranha); "em campo azul um chaveirão de prata com três estrelas vermelhas entre três jarras de prata de duas asas" (Sodré) e, não traduzido do espanhol, "em campo de ouro três chibrones ou asnas xaquetadas de prata e negro de dez peças" (Vinhal). Curiosamente, o vocábulo francês deriva do nome de outro animal: chèvre 'cabra'. Tanto asna no nosso idioma como chevron naqueloutro designam a armação triangular de madeira ou metal sobre a qual se assenta um telhado (capreolus em latim). Portanto, nenhuma relação com chaveiro, que se deve meramente à similitude fonética.

Lira, Azeredo, Vargas, Carneiro, Feio, Guevara, Beringel e Freire de Andrade.
Lira, Azeredo, Vargas, Carneiro, Feio, Guevara, Beringel e Freire de Andrade.

Por outro lado, não havia termos para a diminuição e multiplicação de cada peça: vergueta, burela, travessa etc. Usava-se somente de cotica"cinco coticas azuis em banda em campo d'ouro" (Lira); "em campo azul oito coticas de ouro em contrabanda" (Azeredo); "cinco coticas azuis em faixa ondadas em campo de prata e orla de castelos e leões com as cores reais" (Vargas). Por acoticada não se entendia, porém, uma banda entre duas coticas que não tocam nela, mas sim uma banda perfilada de outro esmalte: "em campo vermelho ũa banda azul, acoticada de ouro, com três flores de lis do mesmo, entre dois carneiros de prata passantes, armados do mesmo" (Carneiro); "em campo vermelho três bandas azuis, acoticadas de ouro" (Feio). Isso era, na verdade, uma opção dentre várias: "escudo esquartelado: no primeiro e último, em campo de ouro três bandas de prata com perfis negros e nelas cinco arminhos negros; e nos outros dous quartéis, em campo vermelho e em cada um cinco panelas de prata, que são folhas de golfão, como corações" (Guevara); "em campo vermelho ũa banda azul, perfilada de ouro, com três flores de lis de prata" (Beringel); "em campo verde ũa banda vermelha, que sai de duas cabeças de serpes de ouro, sobre dois filetes do mesmo" (Freire de Andrade).

Do Pau e Pessanha.
Do Pau e Pessanha.

Quanto às linhas, a que tem forma de dentes pequenos de serra se denominava endentada"escudo esquartelado com ũa cruz d'ouro endentada: no primeiro, de vermelho com duas palas de prata; e no segundo de azul, um leão de prata, armado de vermelho; e assi aos contrários" (do Pau); "em campo de prata ũa banda vermelha endentada e sobre ela três flores de lis de prata" (Pessanha). Hoje é preferível chamá-la dentelada, reservando aquele termo à peça partida por linhas que tocam ambos os bordos, formando triângulos de esmaltes alternados. (7)

Correão, Albergaria, Barbança e Morais.
Correão, Albergaria, Barbança e Morais.

Enfim, as peças de segunda e terceira ordens. Não se dizia escudete: se havia apenas um, brasonava-se simplesmente um escudo (Correão: "em campo vermelho ũa águia negra estendida, armada de prata, e sobre os peitos um escudo das armas dos Correias"); se alguns ou muitos, empregava-se o diminutivo escudinho (Albergaria: "em campo de prata ũa cruz vermelha, aberta, florida; orla de prata, cheia de escudinhos das quinas reais"; Barbança: "em campo de ouro cinco escudinhos vermelhos em aspa"; Moreira: "em campo vermelho nove escudinhos de prata em três palas com cruzes de Avis neles").

Castro do Rio, Taveira, Zagalo, Outiz e Eça.
Castro do Rio, Taveira, Zagalo, Outiz e Eça.

Como eu disse na postagem introdutória, nos Triunfos Albergaria adotou o galicismo torteao, que escrevo torteau ao dar a tradução de Coelho: "nove torteaus de púrpura, cada três em faixa, com dois rios azuis, ondados do primeiro, em campo de prata" (Castro do Rio); "em campo d'ouro nove torteaus vermelhos em três palas" (Taveira); "em campo de ouro dois crescentes de lua e duas estrelas e dois torteaus vermelhos em duas palas desencontrados" (Zagalo). Nas armas dos Outizes prova-se, não obstante, que um autor e o outro conheciam o vocábulo espanhol (roel) e o português (ruela ou arruela): "em campo de ouro seis tortas ou roeles vermelhos em duas palas; timbre: ũa cabeça de drago de ouro, armada do mesmo, com ũa das ruelas na testa". Em contraposição, só os besantes dos Eças se denominam diferentemente: "em campo de prata os cinco escudos de Portugal com nove dinheiros cada um e sobre eles duas cruzes de cordões de púrpura com os nós d'ouro, ũa afirmada e outra em aspa, com orla do mesmo".

As peças ou figuras em número

Gato, Leme, Vogado, Figueiredo, Castro, Pedroso, Cabral, Sol, Gramacho, Coutinho, Pessoa e Arrais.
Gato, Leme, Vogado, Figueiredo, Castro, Pedroso, Cabral, Sol, Gramacho, Coutinho, Pessoa e Arrais.

Por vezes não se informava como se dispõem as peças ou figuras em número, cabendo deduzir que existia a noção de posição ordinária: "em campo de ouro dous gatos azuis; orla vermelha, cheia de crescentes de prata" (Gato); "três merletas negras em campo de prata" (Leme); "em campo vermelho um leão rompente, armado de prata, entre quatro vieiras de prata" (Vogado); "cinco folhas de figueira verdes, perfiladas de ouro, em campo vermelho" (Figueiredo); "seis torteaus azuis em campo de prata" (Castro). Outras vezes sim, especificava-se: "duas cabras de púrpura passantes em campo de prata, armadas de negro, postas em pala" (Cabral); "em campo azul três sóis de ouro em roquete" (Fragoso); "em campo vermelho um leão de ouro rompente, armado de prata, entre quatro merletas de ouro nos quatro cantos do escudo" (Gramacho); "em campo d'ouro cinco estrelas vermelhas de cinco pontas cada ũa em aspa" (Coutinho); "em campo azul seis luas de ouro em duas palas; orla negra, cercada de filetes de ouro, com oito estrelas de prata de cinco pontas cada ũa" (Pessoa); "em campo de ouro sete lobos de púrpura entre duas faixas vermelhas, os três em o alto do escudo e outros tantos no meio e o outro no baixo" (Pedroso); "em campo vermelho nove panelas ou folhas de golfão de ouro em três palas com as pontas para riba" (Arrais). Como se vê, esse particular diferia bastante da prática atual: basicamente, as peças honrosas serviam de referência espacial, ao passo que hoje se enumeram as peças ou figuras no campo mediante a fórmula postos ..., à exceção da locução em aspa, que segue usual (nem tanto a sua sinônima em santor (8), que se lê, por exemplo, nas armas dos Lemos"em campo vermelho cinco cadernas de crescentes d'ouro em santor").

Pegado, Lagarto e Vale.
Pegado, Lagarto e Vale.

É verdade que tanto faz dizer que duas figuras estão em pala ou uma sobre a outra, que quatro estão nos cantos do escudo ou acantonadas, que seis estão em duas palas ou postas duas, duas e duas, que de sete três ficam no alto, outras tantas no meio e uma no baixo ou postas três, três e uma, que nove estão em três palas ou postas três, três e três. Porém, como já referido, abusava-se da locução em roquete, que também descrevia três figuras enfeixadas, especialmente nos timbres (Pegado: "três setas em roquete, atadas com um cordel vermelho, hástias de ouro e ferros de prata e penas vermelhas"). Além disso, confundiam-se posição e alinhamento, como nas armas dos Lagartos ("em campo de prata três lagartos verdes em faixa, matizados de ouro": efetivamente postos em faixa, mas alinhados em pala) ou nas dos Vales ("em campo vermelho três espadas em pala com as pontas para baixo, cabos de ouro e punhos de prata", efetivamente postas em pala, mas alinhadas em faixa).

Beça, Lobato, do Sem, Almeida, Cunha e Mexia.
Beça, Lobato, do Sem, Almeida, Cunha e Mexia.

Persistia, enfim, uma categoria própria da heráldica medieval — o número contável, porém indeterminado —, diferente do semeado, que é incontável (cf. a postagem de 28/03/21), especialmente nas bordaduras, que se brasonavam, então, cheias"em campo de ouro seis faixas vermelhas e orla vermelha, cheia de crescentes de prata" (Beça); "em campo vermelho com três castelos de prata em roquete, lavrados de negro; orla de ouro, cheia de lobos negros" (Lobato); "em campo vermelho um leão de ouro, armado de prata; orla azul, cheia de vieiras de prata" (do Sem). Nalguns casos, o uso do particípio parece significar que o timbre está carregado de tantas peças ou figuras das armas quantas cabem: "ũa águia vermelha, abesantada d'ouro" (Almeida); "meio grifo de ouro, acunhado de azul, asas azuis, acunhadas d'ouro" (Cunha); "meia onça de ouro, faixada de azul" (Mexia).

Os atributos

A esta altura, já é possível afirmar que a linguagem heráldica em análise se caracteriza essencialmente pela sua singeleza. Trocando em miúdos, brasonavam-se certas armas de modo bastante próximo à descrição de um objeto qualquer. Assim, em vez de predicar a figura por meio de particípios (carregado, rematado, encimadobrocante, movente etc.), empregavam-se preposições e locuções prepositivas (em, com, sobre, em cima de, no alto de etc.) ou mesmo orações relativas (que sai de etc.).

Barroso, Rocha, Barbosa, Mouzinho, Neto, Ornelas, Rabelo, Araújo, Seco e Frade.
Barroso, Rocha, Barbosa, Mouzinho, Neto, Ornelas, Rabelo, Araújo, Seco e Frade.

Dentro da variação estilística vigente, por carregado podia-se, pois, usar das preposições em (Barroso: "cinco leões de prata em campo vermelho e em cada um duas faixas de púrpura, xaquetadas de ouro"; Rocha: "em campo de prata ũa aspa vermelha e nela cinco vieiras de ouro, escurecidas de azul"), com (Barbosa: "em campo de prata banda azul com três crescentes de ouro, antre dois leões de púrpura batalhantes, armados de prata"; Mouzinho: "em campo azul ũa banda de prata com três rosas ou moletas vermelhas entre seis estrelas d'ouro em roquete"); sobre (Ornelas: "em campo azul ũa banda de ouro entre duas sereias de sua cor com espelhos na mão direita, guarnecidos de ouro, e na esquerda um pente de ouro e sobre a banda três flores de lis vermelhas"; Rabelo: "em campo azul três faixas de ouro e sobre cada ũa ũa flor de lis vermelha, postas em banda") ou mesmo duas delas (Araújo: "em campo de prata ũa aspa azul com cinco besantes de ouro sobre ela"). Esta última exprimia, ainda, o atributo brocante (Neto: "escudo partido em pala de vermelho e azul e sobre todo um leão de ouro rompente, armado de negro; orla de ouro com quatro flores de lis azuis entre quatro folhas de figueira verdes"), como também outras opções (Seco: "em campo de prata um leão vermelho rompente com ũa espada na mão direita e o escudo atravessado com ũa banda azul e sobre ela três rosas de prata"; Frade: "escudo partido com ũa cruz chã vermelha, firmada nele, sobre ondas de azul e prata, e o primeiro e último de azul com um besante de prata e o segundo e terceiro de prata com ũa estrela de púrpura de seis pontas").

Malafaia, Sepúlveda, Faria, Castilho e Lago.
Malafaia, Sepúlveda, Faria, Castilho e Lago.

O problema é que a linguagem comum não possui toda a precisão necessária à arte/técnica. Por exemplo, a locução no alto apresenta até três significados: rematado (Malafaia: "em campo vermelho ũa torre de prata, lavrada de negro, com um corvo no alto dela"), encimado (Sepúlveda: "em campo vermelho ũa oliveira verde com raízes de prata antre dois leões de ouro trepantes e no alto duas estrelas de prata de oito pontas") e em chefe (Faria: "em campo vermelho ũa torre de prata, lavrada de negro, antre duas flores de lis de prata e três mais no alto"). Isso não excluía formas mais certeiras: "em campo verde um castelo de prata com portas lavradas de negro e em cima da torre do meio ũa flor de lis d'ouro e à porta do castelo dois lebréus de prata com coleiras vermelhas, presas com ũas cadeias de ouro, que saem das bombardeiras do castelo" (Castilho); "em campo vermelho ũa torre de prata, lavrada de negro, afirmada ao pé de ũa ribeira, pela qual vão três peixes, e na torre aparece ũa donzela dos peitos para riba, em cabelo, vestida de azul, e três flores de lis d'ouro em chefe" (Lago).

Beja e Miranda.
Beja e Miranda.

Contudo, uma das preposições locativas permanece habitual no brasonamento lusófono: entre, se bem que esta se empregasse até mesmo onde hoje se diz cantonado (Beja: "ũa cruz chã de ouro em campo vermelho, firmada entre quatro flores de lis de ouro"; Miranda: "em campo de ouro ũa aspa vermelha entre quatro flores de lis verdes").

Gançoso, Barba, Meira e Pereira.
Gançoso, Barba, Meira e Pereira.

A propósito, perceba-se que por chã se entendia a cruz retilínea, não necessariamente firmada (Gançoso: "em campo vermelho ũa cruz de prata chã entre quatro caldeiras de ouro, faixadas cada ũa com duas faixas negras, e outra caldeira do mesmo ao pé"). Como é uma peça, hoje em dia não se indica essa posição; do contrário é que se brasona solta. Como figura, a mais frequente na armaria portuguesa é a florenciada e vazia, que se dizia florida"em campo de prata ũa cruz negra, vazia e florida, com ũa orla de ramos de hera florida" (Barba); "em campo vermelho ũa cruz de ouro florida e vazia com quatro conchas nelas" (Meira). Ou, ainda, aberto por vazio"em campo vermelho ũa cruz de prata, aberta, florida" (Pereira).

Bulhão e Leite.
Bulhão e Leite.

Curiosíssimo é o vocábulo pulmelea, seguramente do francês pommetée (provavelmente pela forma antiga e mal escrita poulmetée), que designa a cruz dos Bulhões ("em campo de prata ũa cruz vermelha chã pulmelea e em cada ponta três bolotas verdes com os cascabulhos de ouro") e a dos Leites ("três flores de lis de ouro em campo verde, às quais acrescentaram seus descendentes, por se aparentarem com os Pereiras, ũa cruz de prata vazia pulmelea em campo vermelho, formando o escudo em quartéis"). Aquela é uma cruz solta, landada de doze bolotas e esta, no Tesouro, uma cruz trilobada, ao passo que pommeté quer dizer 'maçanetado'. (9)

Alvo, Bethencourt, Borges, Corelha, Matos, Tibau, Castelo Branco, Silva e Valadares.
Alvo, Bethencourt, Borges, Corelha, Matos, Tibau, Castelo Branco, Silva e Valadares.

Com efeito, é nas posturas dos animais que a linguagem heráldica se afastava mais do colóquio corrente, a começar pelo galicismo rampante, aplicável até ao leão: "um leão de ouro rampante em campo azul e ũa barra vermelha com três flores de lis de prata, atravessada por meio do leão" (Alvo); "em campo de prata um leão rampante negro, armado de vermelho" (Bethencourt); "em campo vermelho um leão rampante de ouro, armado de azul; orla azul, semeada de flores de lis de ouro sem outra conta certa" (Borges). No francês antigo, ramper significava 'trepar' (no moderno, 'rastejar'). A tradução literal existe e exprime uma singularidade da armaria portuguesa: o animal cujas patas tocam certa figura, exatamente como se se trepasse nela (Corelha: "em campo vermelho ũa torre de prata, lavrada de negro, entre dois lebréus do mesmo trepantes, com coleiras azuis, guarnecidas d'ouro, e em cima da torre ũa donzela que aparece dos peitos para riba, toucada de ouro e vestida de azul"; Matos: "em campo vermelho um pinheiro verde com raízes de prata antre dois leões de ouro batalhantes, trepando, armados de azul"; Tibau: "em campo vermelho ũa árvore verde com raízes de prata e dous leões de ouro trepantes"). Mas também se confundiu ramper com romper, daí rompente"em campo azul um leão de ouro rompente, armado de vermelho" (Castelo Branco)"em campo de prata um leão de púrpura rompente, armado de vermelho" (Silva)"escudo esquartelado: ao primeiro e último de azul com um leão rompente de prata, armado de vermelho; e nos outros, xaquelados de vermelho e de prata de seis peças em faixa" (Valadares).

Gago, Moniz, Pestana, Rabelo, Riba Fria, Teive, Galhardo, Garcia de Gondim e Pinto.
Gago, Moniz, Pestana, Rabelo, Riba Fria, Teive, Galhardo, Garcia de Gondim e Pinto.

Se de uns leões se dizia rampantes ou rompentes, logo outros havia passantes: "um leão passante com a estrela vermelha na testa" (timbre dos Gagos); "um leão azul passante com ũa estrela nos peitos" (timbre dos Monizes); "um leão passante de prata, armado de vermelho, com faixa do mesmo" (timbre dos Pestanas). Nem por isso se desconhecia a palavra leopardo (ou leão-pardo): "um leopardo de ouro com ũa flor de lis na testa" (timbre dos Rabelos); "um leopardo azul com ũa das estrelas na espádua" (timbre dos Riba-Frias); "um leão-pardo, a metade de ouro e outra ametade arminhado com um torteau na espádua" (timbre dos Teives). E como o pleonasmo não aborrecia, às vezes leopardo passante"em campo vermelho um leão-pardo de ouro passante com ũa flor de lis do mesmo na cabeça, posta no alto" (Galhardo); "três leopardos vermelhos passantes, armados de negro, em campo de prata" (Garcia de Gondim); "um leopardo de prata passante, armado de vermelho, com um dos crescentes na espádua" (timbre dos Pintos).

Cerveira, Drago, Resende, Bezerra, Tourinho e Meira.
Cerveira, Drago, Resende, Bezerra, Tourinho e Meira.

É claro que o termo passante se aplicava a outros animais (Cerveira: "duas cervas de púrpura passantes em campo de prata; orla vermelha, cheia de escudinhos das armas do Reino"; Drago: "em campo vermelho dois dragos de prata passantes com as cabeças viradas para trás"; Resende: "em campo de ouro duas cabras negras passantes, rajadas de ouro"), mas nem sempre se declarava (Bezerra: "em campo verde duas bezerras de ouro com cornos"; Tourinho: "em campo verde um touro vermelho, cornos de prata e unhas d'ouro"; timbre dos Meiras: "um lebréu negro com a boca aberta, com coleira e língua vermelha"), assim como a postura rampante (Valente: "um leão de ouro, faixado com três faixas azuis manilhadas, em campo vermelho"). Essa falha é desastrosa, porque requer conferir alguma reprodução das armas, tanto que Coelho, tendo lido em Albergaria que os Revaldos trazem, sem mais especificação, um grifo, não o fez rampante, mas passante.

Aguiar, Maia, Temudo, Abul, Jácome e Maciel.
Aguiar, Maia, Temudo, Abul, Jácome e Maciel.

Assim como não se sentia redundância em brasonar o leão rampante, não parecia ruim dizer águia estendida"em campo de ouro ũa águia de vermelho estendida, armada de negro" (Aguiar); "em campo vermelho ũa águia negra estendida, armada e matizada d'ouro" (Maia); "em campo azul ũa águia de ouro estendida de duas cabeças com os pés sobre ũa cabeça de mouro, toucada de prata e em sangue, toda orla de um cordão d'ouro" (Temudo). Por outro lado, o sintagma meia águia não deixa claro se havia entendimento pleno da dimidiação: "escudo partido em pala: o primeiro de ouro com ũa meia águia negra estendida, armada de azul; e o segundo de azul com ũa faixa vermelha, perfilada d'ouro, e três crescentes de luas de prata em roquete, a alta sobre a faixa" (Abul); "escudo partido em pala: o primeiro de azul com um castelo de prata coberto, com portas e frestas, lavrado de negro; o segundo de ouro com meia águia negra estendida, armada de vermelho e picada de ouro" (Jácome); "escudo partido em pala: o primeiro de prata com duas flores de lis azuis em pala; o segundo de negro com meia águia vermelha estendida, armada d'ouro" (Maciel) (10).

Barbuda, Mesquita, Silveira, Alardo, Oliva e Tavares.
Barbuda, Mesquita, Silveira, Alardo, Oliva e Tavares.

O adjetivo meio significa, ainda, que certa figura humana ou animal, especialmente nos timbres, aparece da cintura para cima: "meio galgo negro antre dois penachos de pavão verdes, guarnecidos d'ouro" (Barbuda); "meio mouro vestido de azul, toucado de prata, com ũa azagaia em a mão direita, como que tira com ela, cabo de ouro e ferro de sua cor e nela ũa bandeirinha de prata" (Mesquita); "meio usso de prata, armado de vermelho, cortado em sangue, que sai de ũa grinalda de silvas verdes" (Silveira). Conhecia-se, ademais, o termo nascente"um leão nascente de prata com ũa coleira vermelha, guarnecida de ouro e ũa flor de lis em ela" (Alardo); "um homem nascente, vestido de vermelho, com o pedaço da lança na mão" (Oliva); "um cavalo vermelho nascente, bridado e com peitoral de cascavéis de ouro" (Tavares).

Nogueira e Sardinha.
Nogueira e Sardinha.

No mais, o brasonamento aproximava-se tanto quanto possível à linguagem coloquial. Assim, por sainte apontava-se simplesmente a cabeça do ser humano ou animal: "a cabeça do leão entre duas asas de águia d'ouro" (timbre dos Landins); "ũa cabeça de serpe de ouro xaquelada de verde e prata com um ramo de nogueira em a boca com o fruto de sua cor" (timbre dos Nogueiras); "ũa cabeça de baleia com a boca aberta e nela algũas sardinhas" (timbre dos Sardinhas).

Barbedo, Bastos, Camelo, Delgado, Cerqueira, Monteiro, Homem e Oliveira.
Barbedo, Bastos, Camelo, Delgado, Cerqueira, Monteiro, Homem e Oliveira.

Por conseguinte, em vez de particípios derivados de substantivos, eram estes que, normalmente com preposições, exprimiam uma série de atributos: "duas espadas nuas em aspa, firmadas no elmo, punhos azuis e guarnição de ouro" (em vez de empunhadas e guarnecidas no timbre dos Barbedos); "em campo de ouro três troncos negros com nós, postos em banda" (em vez de nodados nas armas dos Bastos); "meio camelo de sua cor com manilhas azuis nas ventas dos narizes" (em vez de argolado no timbre dos Camelos); "em campo vermelho um leão de ouro rompente, armado de azul, com ũa coleira vermelha, guarnecida de ouro" (em vez de coleirado nas armas dos Cerqueiras); "em campo de prata três buzinas negras, guarnecidas de ouro, com os cordões vermelhos" (em vez de atadas nas armas dos Monteiros); "um leão azul com ũa maça de armas na mão, cabo de ouro e ferro de sua cor" (em vez de encabada no timbre dos Homens). O mesmo quanto às plantas: "em campo vermelho um limoeiro verde com limões e raízes de ouro e ao pé um galgo de prata com ũa coleira azul, preso por ũa cadeia de ouro" (em vez de frutado e arrancado nas armas dos Delgados); "em campo vermelho ũa oliveira verde com raízes de prata e fruto de ouro" (em vez de arrancada e frutada nas armas dos Oliveiras).

Imperial, Moutinho, Alpoim e Proença.
Imperial, Moutinho, Alpoim e Proença.

Convém lembrar que Albergaria abusa do termo armado, o qual estende à língua do animal e, no caso de uma ave, até mesmo ao bico, ainda que aqui e ali venham indicados: "em campo de prata ũa pala d'ouro com perfis negros e nela ũa águia imperial com coroa negra e língua vermelha" (Imperial)"em campo azul ũa flor de lis de ouro entre quatro cabeças de serpes do mesmo com as línguas vermelhas e as cabeças cortadas em sangue" (Moutinho); "ũa adem de sua cor, com os pés vermelhos e bico d'ouro" (timbre dos Alpoins). O termo bicado ocorre por uma só vez: "meia águia das armas com ũa só cabeça e bicada de ouro" (timbre dos Proenças).

Alcáçova, Badajoz e Lazerdo.
Alcáçova, Badajoz e Lazerdo.

Outra exceção é o termo lavrado, que confirma a tendência, pois nem se dizia aberto nem iluminado"ũa fortaleza de prata de cinco torres e a do meio mais alta, com frestas e portas, lavrada de negro e a muralha dobrada em campo azul" (Alcáçova); "em campo de ouro um São João Batista descalço com capa vermelha e um castelo de prata na mão direita, com frestas e portas, lavrado de negro" (Badajoz); "em campo verde ũa torre de ouro, lavrada de negro, com portas e frestas azuis, entre dois leões de prata batalhantes e trepantes, armados de vermelho" (Larzedo).

Conclusão

O brasonário do Arquivo heráldico-genealógico (1872), do visconde Augusto Romano Sanches de Baena, apresenta, em geral, as mesmas características que analiso aqui. Até ulterior aprofundamento, pode-se concluir que a linguagem heráldica portuguesa ganhou o tecnicismo da francesa já no século XX, começando pela Armaria portuguesa (1908), de Anselmo Braamcamp Freire, passando pelo Armorial português (1920), de Guilherme Luís dos Santos Ferreira, e culminando no Armorial lusitano (1961), de Afonso Eduardo Martins Zúquete.

Notas:
(1) Segundo o critério de Anselmo Braamcamp Freire na Armaria portuguesa (1908), quem, diante da diversidade, dá preferência ao que é mais antigo ou parece mais coerente.
(2) No começo do século XVII, o espanhol estava acabando de perder a sibilante palatal surda, escrita x em palavras como caxa, dexar e xaquel (hoje caja, dejar e jaquel), tanto que Albergaria, mesmo sendo português, escreve duas vezes jaqueles e uma vez jaqueladas com j. Coelho copia tal qual, mas por 22 vezes recorreu à forma xaquetado e suas flexões, o que parece a meio caminho entre o hispanismo xaquelado e o vernáculo enxequetado. Note-se que jaquel no nosso idioma é escaque, mas o rei de armas o emprega apenas nos mesmos quatro lugares que o padre (essa palavra também existe em espanhol). O português xeque, o espanhol jaque e o provençal escac (donde escaque) vêm do árabe šāh, que é 'rei' em persa.
(3) Em espanhol, existe a locução en frange, que Albergaria emprega e Coelho copia ao brasonar as armas dos Raposos: "escudo em frange: o primeiro xaquelado de prata e azul de miúdas peças; o segundo de prata, um crescente de vermelho; e desta sorte os contrários". É provável que o vocábulo frange venha do francês, mas não consta que nessa língua tenha alguma acepção vinculável à forma de um X; na verdade, dela vem a palavra franja. É possível que se tenha, então, tomado frange por derivação do latim frangere 'quebrar' (donde frañer e frangir em espanhol, franzir e franger em português). Suponho, enfim, que quando as sibilantes palatais se confundiam em espanhol (cf. a nota antecedente), de franxe os armistas portugueses fizeram franxado, cuja ortografia se estabeleceu depois com ch.
(4) Afonso Garcês, secretário do rei Dom João II, tinha origem aragonesa e as suas armas foram certificadas pelo rei de armas Portugal em 1492. A partição acima de quatro quartéis era tão pouco familiar que na carta de certificação se recorreu a um francês macarrônico para brasonar essas armas: "port palé de trois pièces : au primier, d'or à six tourtuaux de gueules en doux pales ; au segund, d'argent à un chef de gueules à un croissant d'argent ante sus doux clés d'azur en sautoir, liées d'argent ; au tercier, d'azur à une tour de or, portéa de sinoble, entre sept estoiles de la tour ; y aussi porte un quarteron en pointa, mé parti en quatre : de gueules à une croix d'argent en cor, à un chief d'argent, à l'encontre du primer, à trois rouelles d'argent en pale, sangré d'un en altre". Ainda que não completamente inteligível, constata-se que no Livro do Armeiro-Mor se reproduziram tais armas de forma bastante fiel.
(5) "Os outros irmãos, e assi todos os outros da linhagem, as hão de trazer com a deferença ordenada no nobre ofício da armaria e assi poderão trazer até quatro armas, se quiserem, daqueles de quem descenderem, esquarteladas, e mais, não. E se quiserem tomar somente estremas as armas da parte de suas mães, podê-lo-ão fazer" (Ordenações manuelinas, liv. II, tít. XXXVII, 2.º item).
(6) O termo sanguinho, sinônimo de vermelho, ocorre apenas uma vez: "em campo sanguinho ũa cruz de ouro firme na guarnição do escudo antre quatro flores de lis de ouro" (Atouguia).
(7) Nas armas dos Matelas, há três pilas, que Albergaria e Coelho confundiram com um chefe dentelado: "em campo de prata ũa faixa vermelha e um chefe endentado de três peças do mesmo e sobre cada dente ũa moleta de ouro".
(8) Santor é o mesmo que sautor. Nas escritas góticas, é fácil confundir n e u, o que foi nesse caso possivelmente induzido por analogia à palavra santo. Sautor vem do francês sautoir, que designa primitivamente a estacada em forma de X que impede a passagem do gado, mas que uma pessoa pode saltar (sauter).
(9) Como exemplificado na nota antecedente, do latim para o francês o l antes de consoante vocalizou-se: saltus > saut. No francês médio, era habitual escrever esse l por mero latinismo: sault. Como tal letra não se pronunciava, às vezes se punha onde nunca existira, como poulme por poume, variante de pomme 'maçã'.
(10) O termo meio aparece, ainda, na descrição das armas dos Loronhas: "escudo partido em pala: o primeiro de prata com meia flor de lis de ouro, pegada a meia rosa vermelha em o alto; e no segundo de verde com meia flor de lis de ouro e meia rosa vermelha ao pé; e no alto ũa pomba de prata voando".

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