Brasão de armas de Martim Esteves Boto.
O sexto brasão mais antigo desta série foi dado a Martim Esteves Boto em 1462. Eis a carta de Dom Afonso V:
Dom Afonso etc. A quantos esta carta virem, fazemos saber que, porquanto os príncepes, consirando a vertude per si, cujo prêmeo é louvor, e o que devem ser liberaes, e nom ingratos, assi porque satisfaçam a sua dinidade como porque se nom privem de seu efeito e, como dívida assi aos que ou por louvor e exalçamento da nossa santa fee como por sua fama e bõo nome e serviço deles a desvairados trabalhos e perigos se aventurárom, nom receando despesas nem temendo morte, dês i porque outros, esperando tal fruito, boas e grandiosas cousas com bõo coração e maior esperança cometam, acustumaram, segundo os serviços de cada ũu, assi os galardoar. Polas quaes razões movido nós e ainda por a afeição que sempre tivemos a Martim Estévez Boto, assi por os muitos serviços e muito de prezar que el-Rei Dom João, meu avoo, que Deus haja, dele recebeu em a tomada da nossa cidade de Ceita e em outras cousas e, assi, a el-Rei, meu Senhor e padre, cuja alma Deus tem, em a ida e cerco de Tânger, onde por serviço de Deus e por conservação de seu bõo nome e fama sosteve atá o derradeiro recolhimento todo o temor e trabalhos que se no dito cerco seguiram, como por muitos outros que nós dele recebidos temos em paz e em guerra per sua pessoa e com armas, cavalos e homens, com grande despesa sua, principalmente na filhada da nossa vila d'Alcácer em África, onde per nós foi feito cavaleiro em satisfação deles, de nosso própio moto e ciência nós lhe damos e outorgamos que ele e todos seus lídimos descendentes daqui em diante possam trazer, por sua memória e sinal de tantos serviços, estas armas aqui pintadas, as quaes per Portugal, nosso Rei d'Armas, per mandado nosso, lhe foram devisadas e per nós confirmadas. E porém a ele e a todos os outros nossos reis d'armas e arautos e oficiaes delas mandamos que daqui em diante nom contradigam ao dito Martim Estévez nem lhe defendam que ele e seus lídimos descendentes nom tragam as ditas armas e usar delas em quaesquer lugares, em paz e em guerra, quando e como lhes aprouver. E per a presente encomendamos e mandamos a todos a que for mostrada que por o que dito é e dês i por o grande cárrego que com tanta rezão dele temos, lhe façam toda mercee, graça e favor, leixando-os livremente usar de tôdalas honras, graças, liberdades, privilégios e franquezas que per antigo custume ou direito comũu ou espicial per os reis são concedidos àqueles que per seus merecimentos armas percalçárom. E em testemunho delo lhe mandamos dar esta nossa carta, assinada per nós e asselada do nosso selo pendente. Dante em a nossa vila de Santarém, a primeiro dia d'abril. Diego de Figueiredo a fez. Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesu-Cristo de 1462 anos. (em leitura nova, Míst., liv. 2, fl. 151v; na Chanc. de D. Afonso V, liv. 1, fl. 14)
Esse diploma demonstra que em 1462 em Portugal a carta de brasão era um gênero discursivo em avançado desenvolvimento, mas ainda não tinha alcançado tanta fixidez. Assim, a cada concessão heráldica o escrivão sabia que, após o protocolo inicial (titulação e direção), devia elaborar uma teoria dessa espécie de mercê. À luz de tais ideias, expunha os méritos do recebedor, ao que se seguiam os dispositivos: a concessão das armas e a nobilitação do armígero (às vezes com um apelido/sobrenome novo). Concluía-se com a data e a subscrição.
No presente caso, o preâmbulo, além de não ser tão arguto quanto o da carta de João Gonçalves da Câmara, que o antecede e põe o rei como fonte da justiça, enfatiza claramente a cruzada, quase a modo de propaganda: quem arriscasse o seu corpo e os seus bens pela fé certamente seria honrado pelo príncipe, seu soberano.
Com efeito, ao menos desde o começo do século XVI difundiu-se a lenda segundo a qual Martim Esteves ao assaltar uma torre em meio à tomada de Ceuta, cortou as cabeças de dois defensores e as mostrou aos seus companheiros, perguntando-lhes onde as botava, daí a alcunha de Boto. João Rodrigues de Sá canta essa façanha nas suas quintilhas heráldicas (publicadas no Cancioneiro geral, de Garcia de Resende, 1516):
Botos
Duas cabeças cortadas,
postas em campo dourado,
de mouros e em corado
duas torres assentadas,
onde o feito foi passado.
Armas que Botos ganharam
são por mouros que mataram
naquelas torres em Ceita,
quando da danada seita
portugueses a livraram.
Antônio de Vilas Boas e Sampaio na Nobiliarquia portuguesa (1676) engana-se, atribuindo o feito e as armas a Estêvão Boto, quem, de acordo com Cristóvão Alão de Morais (1632–93) na Pedatura lusitana (t. 6, v. 2), foi o pai de Martim Esteves. É possível que ambos, pai e filho, tenham estado em Ceuta e, tendo os negócios familiares prosperado, Martim pôde levar "armas, cavalos e homens, com grande despesa sua," à conquista de Alcácer Ceguer, o que lhe valeu não só a nobilitação em idade madura, mas antes disso a sua investidura na cavalaria e o seu recebimento por vassalo do rei.
Segundo José de Sousa Machado nos Brasões inéditos (1909), em 1748 passaram-se as armas dos Botos a Domingos de Sousa Távora Boto e Telo (1), descendente de Rui Martins Boto, tabelião de São João da Pesqueira em 1514 e possivelmente bisneto de Martim Esteves. Em 1780, passaram-se a Antônio Boto Machado (2), descendente de Dinis Boto Machado. Terá este sido bisneto do Doutor Rui Boto, filho de Martim Esteves, que foi chanceler-mor do Reino sob Dom João II e Dom Manuel I? (3)
Voltando à carta, pela primeira vez se diz que as armas "foram devisadas", isto é, criadas pelo rei de armas Portugal. Desde o princípio desta série, sabemos que oficiais dessa classe assistiam à Corte e com bastante segurança cremos que eles ordenaram os brasões concedidos pelo monarca, ainda que só na carta de Álvaro Gonçalves Cáceres se tenha começado a declarar isso, se bem que aí, o rei de armas Algarve. Contudo, falta aqui o brasonamento, o que é uma pena, pois tínhamos conhecido apenas campos inteiriços, sempre descritos de baixo para cima, e chegamos agora a uma criação bem diferente: uma esquarteladura em aspa para repetição de duas figuras.
A propósito, também foi a primeira vez que numa mercê nova se lançou mão à cabeça de mouro para assinalar vitória sobre o Islã. Isso se praticaria até o esgotamento da cruzada como fonte de honorificência heráldica, de modo que a interpretação dos crescentes em certos brasões como troféus de combates contra muçulmanos é francamente anacrônica, porque foi na marinha otomana a partir do século XVI que pavilhões com essas figuras se difundiram.
Enfim, outros elementos inovadores desse texto são a notificação ("E porém a ele e a todos os outros nossos reis d'armas e arautos e oficiaes delas mandamos...") depois do dispositivo e a precação ("E per a presente encomendamos e mandamos...") no protocolo final. Até aqui, todas as cartas vieram passando diretamente do dispositivo à datação.
(1) O escudo esquartelado de Sousas, Távoras, Botos e Telos e, por diferença, uma brica de prata com uma estrela vermelha.
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