21/12/24

OS DEZ MAIS ANTIGOS (X)

Brasão de armas de Antônio Leme.

O décimo brasão mais antigo e o derradeiro desta série foi dado a Antônio Leme em 1471. Eis a carta de Dom Afonso V:

Armas de Antônio Leme: "ũu escudo, do qual o campo é d'ouro, com cinco merletas de sable em santoir".
Armas de Antônio Leme: "Ũu escudo, do qual o campo é d'ouro, com cinco merletas de sable em santoir".

Dom Afonso etc. A quantos esta nossa carta virem, fazemos saber que, consirando nós em como o Príncipe, meu sobre todos muito preçado e amado filho, de seu própio querer e vontade, por seus serviços fez a Antônio Leme, cavaleiro de sua Casa, nós, havendo respeito aa sua boa vontade e desejo, com que nos veo de Frandes servir em a tomada da nossa vila d'Arzila e cidade de Tânger com certos espingardeiros e hómẽes em ũa urca, em a qual o seu pai, Martim Leme, enviou a nos servir na dita guerra, e querendo mais ainda honrar como teúdo somos fazer aos que nos no semelhante bem servem, como ele fez, dês i querendo-lhe fazer graça e mercee de nosso própio querer, vontade e poder absoluto, queremos e a nós praz darmos-lhe ũu escudo timbrado de novas armas, a saber, ũu escudo, do qual o campo é d'ouro, com cinco merletas de sable em santoir, segundo é conteúdo em este escudo, aqui, em esta nossa carta patente, blasonado e pintado, posto que nós bem em conhecimento somos que ele da parte de seu pai pode trazer armas com deferença, mas porque ele verdadeiramente as tenha e possa trazer como chefe delas, sem deferença algũa, como aquele que por seus serviços e mericimentos ganhou, nós lhe damos as ditas armas novamente, pera ele e pera todos aqueles que dele decenderem per legítimo matrimônio. E per esta nossa carta mandamos ao nosso Primeiro Rei d'Armas e oficiaes delas que assi o notifiquem e em seus livros registem, porque assi é nossa mercee e vontade. E por sua guarda e memória e seer notório pera sempre como todo passou, lhe mandamos dar esta nossa carta, per nós assinada e asseelada do nosso seelo do chumbo. Dada em a nossa cidade de Lisboa, a doze dias do mês de novembro. Martim López a fez. Ano do Nacimento de Nosso Senhor Jesu-Cristo de 1471. (em leitura nova, Míst., liv. 3, fl. 13v; na Chanc. de D. Afonso V, liv. 21, fl. 90)

Foi-se o tempo quando a cruzada hispânica atraía cavaleiros além-Pireneus, como o próprio Henrique de Borgonha, tronco dos reis portugueses, ávidos de fama. Essa carta de armas novas, a terceira que Dom Afonso V mandou passar na sequência das conquistas de Arzila e Tânger, em 24 e 28 de agosto de 1471, prova definitivamente que a expansão ultramarina era um empreendimento comercial. A própria Ordem de Cristo mais parecia um banco que uma ordem de cavalaria.

Com efeito, a presença do flamengo Maarten Lem está atestada na praça de Lisboa desde 1452 e dez anos depois prosperava bastante para emprestar dinheiro ao rei, que assaltaria a cidade marroquina de Tânger em novembro de 1463 e em janeiro de 1464, sem sucesso. Nesse mesmo ano, os sete filhos que esse mercador tivera com Leonor Rodrigues foram legitimados por Dom Afonso V. Só em 1467, quando retornara de vez a Bruges, foi que casou com uma dama do patriciado local. Era, pois, o típico burguês dos Países Baixos, que possuía, inclusive, brasão de armas, sobejamente conhecido na literatura heráldica portuguesa: em campo de prata três merletas de negro.

O presente texto patenteia, pois, que mesmo depois do retorno a Flandres Martim Leme manteve os laços com Portugal: contribuiu novamente em 1471 com a gesta africana, armando uma urca para levar à guerra peões, espingardeiros e um de seus filhos, o nosso armígero, que até então estivera junto de seu pai. Desde então, Antônio abriu o seu próprio caminho. Aparece em 1483 na ilha da Madeira, onde plantou cana-de-açúcar e se tornou homem-bom da vila do Funchal. Casou com Catarina de Barros, de quem teve, pelo menos, sete filhos.

Um dos filhos de Antônio Leme, chamado Antão, veio para o Brasil. Em 1544 consta que foi juiz ordinário de São Vicente. Pedro Leme, seu filho, casou três vezes e a partir dessa vila, cabeça da capitania homônima, a sua geração multiplicou-se sertões adentro, nos rastos das bandeiras. Inclusive, foi bisavô de Fernão Dias Pais, o Governador das Esmeraldas. Em 1741 um neto desse célebre bandeirante justificou a sua nobreza perante o ouvidor-geral do Rio de Janeiro e em 1750 recebeu carta de armas dos Lemes como chefe delas. O registro foi destruído pelo Terremoto de Lisboa, mas Frei Manuel de Santo Antônio e Silva, reformador do Cartório da Nobreza, copiou um extrato num seu livro particular:

Pedro Dias Pais Leme, fidalgo da Casa Real, comendador na Ordem de Cristo, guarda-mor-geral das Minas Gerais, fez petição dizendo descender por linha legítima e ser o chefe da geração dos Lemes, por ser filho legítimo de Garcia Rodrigues Pais, capitão-mor que foi da vila de São Paulo, administrador e guarda-mor-geral de todas as Minas, e de sua mulher, Dona Maria Pinheiro da Fonseca, filha do Capitão João Rodrigues da Fonseca, natural da cidade de Lamego, e de sua mulher, Dona Antônia Pinheiro Raposo; neto de Fernão Dias Pais, capitão-mor que foi também das Ordenanças da dita vila, descobridor e primeiro governador das Minas e da gente da guerra, padroeiro do Mosteiro de São Bento da dita vila de São Paulo, e de sua mulher, Dona Maria Garcia, filha do Capitão Garcia Rodrigues, o Velho, e de sua mulher, Maria Betim, filha de Geraldo Betim Alemão; bisneto de Pedro Dias Leme, capitão que foi da Milícia da dita vila, e de sua mulher, Maria Leite, filha de João Leite da Silva; terceiro neto de Fernão Dias Pais, que foi um dos conquistadores da capitania de São Vicente, nas partes da América, onde viveu, e de sua mulher, Dona Lucrécia Leme, filha legítima de Luís Leme; quarto neto de Pedro Leme, que viveu na vila de Abrantes, onde casou com Isabel Pais; quinto neto de Antão Leme; sexto neto de Antônio Leme, que viveu na ilha da Madeira, na sua quinta, que hoje chamam dos Lemes, e de sua mulher, Caterina de Barros, instituidora de um morgado na vila da Ponta do Sol, na dita ilha, filha de Pedro Gonçalves da Câmara e de Isabel de Barros; sétimo neto de Martim Leme, chamado o Moço, que passou à ilha da Madeira no ano de 1483 com ũa carta do Duque Dom Fernando para a Câmara do Funchal, a quem o recomenda, que se acha registada no Arquivo da Câmara da mesma ilha, registado no Livro 2.º, a fl. 158; oitavo neto de Antônio Leme, cavaleiro da Casa d'el-Rei Dom João II quando príncipe; nono neto de Martim Leme, cavaleiro flamengo, o qual era tão devoto das cousas de Portugal, que mandou de Flandres, donde era natural, seu filho Antônio Leme em ũa charrua à sua custa  com vários homens de lanças e espingardas para servirem com ele a el-Rei Dom Afonso V nas expedições que este senhor fez na África, o qual o tomou por fidalgo de sua Casa com o foro de escudeiro; décimo neto de outro Martim Leme, cavaleiro nobre e rico da cidade de Bruges, no condado de Flandres. O que tudo fez certo por uma sentença tirada na Correição do Cível da Corte, de que foi juiz o Desembargador ..., e o Rei de Armas Portugal, Manuel Pereira da Silva, cavaleiro professo na Ordem de Cristo, lhe passou brasão com as armas da dita família em chefe. Feito em Lisboa, a ... de dezembro de 1750. E subscrito por Hilário da Costa Barreiros, Escrivão da Nobreza proprietário, e registado no Livro 13. Frei Manuel de Santo Antônio e Silva. (Cart. da Nobr., liv. part., fl. 7v)

Pela primeira vez nesta série, achamos uma certificação de armas dadas no século XV feita no XVIII com a devida justeza. Não por mérito daqueles que então superintendiam o Juízo e Cartório da Nobreza, mas dos próprios Lemes vicentinos. Ciosos da sua fidalguia, em mais de uma ocasião produziram provas dela: Pedro Leme em 1564; o padre João Leite da Silva e Garcia Rodrigues Pais em 1681. Esses instrumentos foram juntados por Pedro Dias ao seu processo, que parece ter embasado a própria literatura, pois o texto copiado por Frei Manuel é quase igual ao do Nobiliário genealógico, crítico e histórico (1743–64, t. 2), de José Freire Monterroio Mascarenhas, inclusive no equívoco de duplicar Antônio Leme como pai e filho de Martim Leme, o Moço, quando eram irmãos (1). Não obstante, é no processo de Pedro Dias que se dá Pedro Gonçalves da Câmara por pai de Catarina de Barros, quando se chamava Pedro Gonçalves da Clara (2).

A obra de Mascarenhas foi aproveitada por Pedro Taques de Almeida na Nobiliarquia paulistana, a qual levou consigo para Portugal em 1774 e deixou aos cuidados do desembargador João Pereira Ramos, mas só foi impressa a partir de 1869 na Revista do IHGB. À sua vez, esse trabalho foi revisto e ampliado por Luís Gonzaga da Silva Leme na Genealogia paulistana (1903–05) (3). Graças a tudo isso, sabemos que estão corretas, ao menos no que respeita às armas dos Lemes, as cartas passadas em 1799 a Antônio Pires da Silva Pontes Leme, governador do Espírito Santo (1801–04) e terceiro neto do bandeirante Fernão Dias (4), e a José Gregório de Morais Navarro Leme, bisneto de Antônio Leme do Prado, quarta geração de Pedro Leme, o progenitor do ramo brasileiro (5). Muito menos claro é o caso de Antônio de Almeida Pinto Soares de Carvalho Ribeiro Leme, morador em Santa Cruz do Douro, filho de Antônio de Almeida Pinto e Custódia Luísa Leme e que obteve carta de brasão em 1800 (6), provavelmente descendente de algum outro dos filhos de Antônio Leme ou mesmo de algum de seus irmãos.

Em particular, na carta de Antônio Pires da Silva assim se brasonam as armas dos Lemes: "Em campo de ouro cinco melros negros, sem pés nem bicos, postos em sautor". Isso vem desde a Nobiliarquia portuguesa (1676), de Antônio de Vilas Boas e Sampaio (7), e contrasta fortemente com o brasonamento original, não só pela tentativa renovada de se fazer uso de uma linguagem afrancesada (cf. a postagem de 17/12; sobre o termo santoir, a nota 8 daquela de 30/06), mas também porque o termo merleta dá a medida certa do quão necessário é o galicismo. Ora, uma merleta não é um melro, ainda que em francês merlette derive de merle e designe a fêmea desse pássaro. Deve-se entendê-la como uma figura heráldica e discernir aquela sem bico nem pés como mais moderna. Efetivamente, no Tratado Prinsault (1444), que faz parte de um grupo de textos instrutivos circulantes no século XV e conhecidos, ao que parece, pelo rei de armas Portugal em 1471, lê-se que "la merlette [...] en armes jamais n'a jambes ne pieds" ("a merleta [...] nas armas nunca tem pernas nem pés". É exatamente dessa forma que as vemos no Livro do Armeiro-Mor (1509), cujo autor, João do Cró ou Jean du Cros, provinha precisamente dessa cultura heráldica francófona.

Outro aspecto destacável é a noção de diferença, que ressai tanto da mercê nova de Antônio Leme como da certificação de Pedro Dias Pais Leme. Nesta, mostra que em pleno século XVIII — o auge da "heráldica de sobrenomes" — permanecia incólume o preceito de que ao chefe da linhagem cabiam as armas direitas e os demais deviam diferençá-las. Naquela, mostra o quanto tal noção se adiantou à reforma manuelina (1512).

Conquanto desde os primórdios a diferença fosse praticada pela Casa Real — na forma antiga durante a primeira dinastia, isto é, pela alteração do ordenamento das armas direitas, e por meio do lambel a partir da segunda — só com estudo descobrimos que a semelhança de certos brasões, como o dos Lemos e o dos Góis, oculta a separação de uma linhagem de outra mediante a heráldica. Aqui, não obstante, está bem claro que se trata da diferença pessoal: "nós bem em conhecimento somos que ele da parte de seu pai pode trazer armas com deferença, mas porque ele verdadeiramente as tenha e possa trazer como chefe delas". Na ordem das legitimações, Antônio é, de fato, o terceiro dos filhos de Martim Leme.

Mas tinha mesmo Pedro Dias direito às armas plenas dos Lemes? Em primeiro lugar, cabe ressaltar que é raríssimo encontrar essa espécie no Cartório da Nobreza, porque os chefes reputavam trazer as armas das suas casas por fato notório e não precisavam, portanto, sujeitar-se ao Juízo da Nobreza. Depois, a chefia transmitia-se por primogenitura masculina, logo teríamos de assumir que Antão Leme era o filho mais velho de Antônio Leme, o que remanece incerto, sem falar de toda a mais sucessão desde Pedro Leme. Seja como for, impõe-se a perfeição do ato: o rei de armas Portugal julgou as provas suficientes e certificou a chefia, talvez a única da armaria portuguesa que se transferiu para o Brasil.

Com efeito, na segunda geração de Pedro Dias Pais Leme um neto homônimo seu foi criado barão de São João Marcos por Dom João VI em 1818 e, tendo sido leal à causa da Independência, Dom Pedro I concedeu-lhe a grandeza do Império ainda em 1822 e elevou-o a marquês em 1826. O mesmo imperador criou outro Pedro Dias barão com grandeza (1825), visconde e marquês (1826) de Quixeramobim. Ele era filho de Garcia Rodrigues Pais Leme e sobrinho do marquês de São João Marcos. Ao cair a monarquia, o chefe do nome e das armas era Pedro Dias Gordilho Pais Leme, neto do marquês de São João Marcos, fazendeiro e engenheiro civil, falecido em 1915.

Notas:
(1) Segundo Margarida Ortigão Ramos Paes Leme em artigo de 2008.
(2) Na petição (copiada por Pedro Taques), Pedro Leme alega que seu pai, tios e tias eram primos do "capitão donatário da ilha da Madeira". Talvez aí tenha começado a confusão, que não deixava de ser conveniente, pois vincular-se aos Câmaras enobrecia um bom tanto os Lemes, a ponto de o filho e o neto primogênitos de Pedro Dias Pais Leme terem acrescentado Câmara aos seus sobrenomes.
(3) Esses genealogistas mesmos descendiam da geração dos Lemes. Pedro Taques era bisneto de Isabel Pais da Silva, irmã do governador Fernão Dias Pais; Luís Gonzaga era descendente de Leonor, filha de Pedro Leme e Luzia Fernandes, sua segunda esposa.
(4) O escudo esquartelado de Silvas, Pontes, Lemes e Botelhos e, por diferença, uma brica verde com um farpão de ouro (Cart. da Nobr., liv. 6, fl. 42v).
(5) O escudo esquartelado de Pretos, Mendes, Lemes e Oliveiras e, por diferença, uma brica vermelha com um farpão de prata (Cart. da Nobr., liv. 6, fl. 77).
(6) O escudo esquartelado de Almeidas, Pintos, Lemes e Carvalhos (Cart. da Nobr., liv. 6, fl. 129). Os seis sobrenomes desse sujeito na sua carta de armas são típicos da obsessão genealógica que preponderava então.
(7) "Em campo de ouro cinco melros de preto em aspa, sem pés nem bicos; timbre: um dos melros entre uma aspa de ouro". Antes, o padre Antônio Soares de Albergaria (Triunfos de la nobleza lusitana, 1631) fora mais certeiro ao não preterir o termo merleta: "En campo de oro cinco merletas negras en aspa, sin pies ni picos. Y por timbre una dellas entre un aspa de oro". Este é, a propósito, o testemunho mais antigo do timbre, já que foram roubadas as folhas do Livro da nobreza e perfeição das armas em que os brasões de Martim e Antônio Leme estavam pintados.

19/12/24

OS DEZ MAIS ANTIGOS (IX)

Brasão de armas de Lopo Esteves.

O nono brasão mais antigo desta série foi dado a Lopo Esteves em 1471. Eis a carta de Dom Afonso V:

Armas de Lopo Esteves: "ũu escudo de color de púrpura ou d'amatista e ũa águia estendida branca ou de prata com o bico e pernas pretas".
Armas de Lopo Esteves: "Ũu escudo de color de púrpura ou d'amatista e ũa águia estendida branca ou de prata com o bico e pernas pretas".

Dom Afonso etc. A quantos esta carta patente virem, fazemos saber que, consirando nós nos muitos, continuados e estremados serviços que recebidos temos de Lopo Estévẽez, nosso cavaleiro, morador na nossa vila d'Olivença, assi nestes nossos Reinos d'aaquém-mar como aalém do mar, nas partes d'África, a saber, nas tomadas de nossa vila d'Alcácer e da nossa vila d'Arzila e da nossa cidade de Tânger, que com a graça de Nosso Senhor filhamos aos mouros, sendo sempre connosco per pessoa e com hómẽes d'armas, beesteiros e outra gente e assi na cidade de Ceita, continuando a dita frontaria, onde mui bem e lealmente nos serviu, e consirando em sua bondade, indústria e descriçom e no bõo desejo e vontade com que sempre continoou em nosso serviço, assi nos feitos das guerras como em tôdolos outros a nosso serviço tocantes, e querendo-lhe esto agalardoar, como a nós cabe fazer a aqueles que bem e fielmente nos servem, e por lhe fazermos graça e mercee, teemos por bem e de nosso moto própio, querer, vontade, poder absoluto queremos e nos praz lhe darmos ũu escudo d'armas novas, a saber, ũu escudo de color de púrpura ou d'amatista e ũa águia estendida branca ou de prata com o bico e pernas pretas, segundo aqui, nesta nossa carta patente, são pintadas e ablasonadas, as quaes estabelecemos e queremos que dês agora e sempre o dito Lopo Estévẽez possa trazer e teer e delas per custume dos outros que as têm usar e gouvir em batalhas, torneos, cercos de vilas, combates de castelos, arroídos, bandos e escaramuças e em firmaes e em anees e sinetes e em quaesquer outros lugares, assi de guerra como de paz, como per qualquer outro modo que lhe aprouver, sem outro embargo que lhe sobre elo seja posto. E isso meesmo queremos que seus filhos e descendentes, que dele descenderem per legítimo matrimônio, hajam as ditas armas e delas possam gouvir, como sobredito é. E porém mandamos ao nosso Primeiro Rei d'Armas e oficiaes delas que assi o proviquem e em seus livros registem, porque assi é nossa mercee e vontade. E em testemunho desto lhe mandamos dar esta nossa carta patente, por lembrança e memória delo, assinada per nós e asseelada do nosso seelo do chumbo. Dada em a nossa vila de Sintra, 8 dias de novembro. Antão Gonçálvez a fez. Ano do Nosso Senhor Jesu-Cristo de 1471. (em leitura nova, Míst., liv. 3, fl. 12v; na Chanc. de D. Afonso V, liv. 21, fl. 14v)

Mesmo considerando que o hiato de doze anos entre a primeira carta de brasão (de Gil e Vicente Simões) e a segunda (de Fernão Gil de Montarroio) se deva à menoridade de Dom Afonso V, as cinco concessões que seguiram ocorreram num período de quinze anos. Em contraste, no mesmo dia — 8 de novembro de 1471 — ele concedeu não só as presentes armas, mas também as antecedentes (a Álvaro Afonso Frade) e, quatro dias depois, as sucedentes (a Antônio Leme).

Como o escudeiro Álvaro Afonso Frade, o cavaleiro Lopo Esteves morava em Olivença. Mais que isso: pela primeira vez, um escrivão copiou o mesmo texto para lavrar outro diploma. Assim, ambos estiveram nas conquistas de Alcácer Ceguer, Arzila e Tânger, aonde levaram "hómẽes d'armas, beesteiros e outra gente", se bem que Lopo serviu ademais em Ceuta. Portanto, eram burgueses ricos e tornaram-se chefes de casas nobres.

A bem da verdade, desde a mercê de Martim Esteves Boto falta explicitar o estado social do recebedor. Deduz-se ser plebeu porque não se tem notícia de que a mercê de armas novas se tenha nalgum momento despojado da propriedade de nobilitar. Além disso, embora houvesse armas plebeias, nesse período é inconcebível nobreza sem brasão. Parece, pois, premeditada certa ambiguidade que acabava por mostrar deferência a alguém que arriscara o seu cabedal ao serviço da Coroa. Esta interpretação acha-se na própria literatura heráldica, como se lê nos Triunfos de la nobleza lusitana (1631), do padre Antônio Soares de Albergaria:

Lope Esteves, vecino de Olivenza, fue armado caballero por el Rey Don Alfonso V, a quien sirvió con ballesteros a su costa en la conquista de Alcácer, Arcila y Tánger y en la frontera de Ceuta muchos años, por lo cual le hizo merced de cualificarlo por fidalgo de cota de armas, dándole por blasón en campo de púrpura un águila de plata extendida, armada de negro, y la misma por timbre. (1)

A respeito de Lopo Esteves, consta que tinha filhos em carta de 1490, pela qual Dom João II lhe perdoou ter mantido em cárcere privado a mulher e o filho de um judeu e tê-lo roubado. Esses fatos ocorreram na dita vila de Olivença, onde então dois bandos se batiam: de um lado, o dos Gamas e Lobos, ao qual Lopo pertencia; do outro, o do alcaide-mor Manuel de Melo (2). Seja como for, que se identifique o nosso armígero apenas por nome e patronímico, ambos frequentes no seu tempo, causa grande dificuldade (3).

Com efeito, no Livro do Armeiro-Mor acha-se um escudo de prata com uma flor de lis aberta de vermelho, cuja legenda diz ser de Rodrigo Esteves. Segundo a cópia na certidão que Algarve, servindo de rei de armas Portugal interino, lavrou a Vicente Machado de Brito em 1599, essas armas foram passadas em 1513 a seu bisavô, João Machado (4). Este era neto de João Esteves Carregueiro, a quem tal patronímico parece viera da parte de sua mãe. Para ligar um fato e o outro, cumpriria admitir que ela entroncava na linhagem cujo chefe era o dito Rodrigo em 1509. Contudo, o fato de ser chamado pelo nome (em vez da fórmula Esteves, chefe) sugere que se tratava do primeiro a trazer tais armas.

Depois, em 1540, foi Manuel Henriques Barreto quem recebeu essas mesmas armas, "como filho legítimo que é de Vasco Hanríquez Estévenz e neto de Hanrique Estévenz e bizneto de João Estévenz, que foi fidalgo muito honrado e o verdadeiro tronco desta geração" (5). Dois anos depois, a carta passada a Henrique da Veiga, seu tio, remonta um grau, revelando que o pai de João se chamava Leonardo Esteves (6). Observe-se que não há indício de parentesco nem com o Rodrigo Esteves nominado no Livro do Armeiro-Mor nem com a descendência de João Esteves Carregueiro.

O mais impressionante é a falta de memória desses atos, já que ao traçar uma síntese genealógica para os Esteves no Tesouro da nobreza de Portugal (1783), Frei Manuel de Santo Antônio e Silva recorreu à mercê de Gaspar Rodrigues Pais Estevens em 1666 (7), que esse mesmo reformador registrara num dos seus livros particulares:

Procedem de João Lourenço de Bubalde Estevens, alferes-mor d'el-Rei Dom João o I. Seus descendentes conservaram este apelido e se estabeleceram no Alentejo, onde viveu na vila de Veiros Gaspar Lopes Estevens, pai de Antônio Rodrigues Estevens, de que foi neto Gaspar Rodrigues Pais Estevens, morador em Lisboa, que no ano de 1666 tirou brasão de armas desta família, que são em campo de prata ũa flor de lis vermelha grande com duas espigas da mesma cor; timbre: um leão de prata nascente, armado de vermelho, com ũa flor de lis da mesma cor da espádua. Desta forma as achamos no registo do referido brasão. Alguns ramos desta família trazem por timbre a mesma flor de lis das armas.

Como se tudo isso não bastasse, na Beneditina lusitana (1651), de Frei Leão de Santo Tomás, e na Nobiliarquia portuguesa (1676), de Antônio de Vilas Boas e Sampaio, dão-se por armas dos Esteves aquelas que Dom João III concedeu após 21 de fevereiro de 1550 a Bernardim Esteves de Alte, a saber, nove flores de lis vermelhas em campo de prata e uma delas por timbre (8). À sua vez, como se fossem dos Altes na Nobiliarquia topa-se com as armas que Cristóvão Esteves da Espargosa recebeu do mesmo rei em 1533 (9).

Tudo isto demonstra como desde cedo a heráldica gentilícia portuguesa funcionou com base no sobrenome, de tal modo que não sabemos quais armas dos Esteves se passaram a José Tavares Esteves em 1755 (10), mas podemos ficar certos de que João Esteves da Fonseca Martins (11) e João Rodrigues Antunes Esteves de Carvalho (12) receberam em 1773 e 1797 cartas com estas de Lopo Esteves por mera coincidência onomástica.

Notas:
(1) No manuscrito, "de púrpura" está tachado e "rojo" sobrescrito.
(2) Chancelaria de D. João II, liv. 12, fl. 28.
(3) Esteves é originariamente patronímico de Estêvão através da evolução seguinte: Stephaniz > Estévãez > Estévẽez > Estévenz > Esteves. Em 1471, Lopo Esteves era certamente filho de um Estêvão, mas na ascendência de Manuel Henriques Barreto se percebe que, pela retenção do patronímico de geração em geração, deveio sobrenome.
(4) O escudo esquartelado de Carregueiros, Machados, Esteves e Coelhos. A certidão está transcrita no Arquivo heráldico-genealógico (1872, XLV), do visconde de Sanches de Baena.
(5) O escudo esquartelado de Esteves e Barretos e, por diferença, uma estrela azul; timbre: a flor de lis (Chancelaria de D. João III, liv. 50, fl. 22v).
(6) O escudo das armas dos Esteves e, por diferença, uma merleta negra (Chancelaria de D. João III, liv. 32, fl. 74v).
(7) O escudo esquartelado de Esteves e Pais e, por diferença, uma brica verde com um crescente de prata. Convém lembrar que, devido à destruição do Cartório da Nobreza durante o Terremoto de 1755, os seus livros recomeçam a partir de 1765. Todavia, José de Sousa Machado achou três livros que Frei Manuel compilara na tarefa de reformar o dito cartório, cujo conteúdo na forma de extratos de cartas de brasão se acha publicado nos Brasões inéditos (1909).
(8) Esse Bernardim Esteves foi desembargador da Casa da Suplicação e procurador dos Feitos da Fazenda, entre outros encargos jurídicos. Insolitamente, primeiro por carta régia na data ut supra foi feito fidalgo de solar conhecido, recebendo o apelido de Alte, e só depois é que ganhou brasão de armas, cujo registro se desconhece.
(9) Em campo de azul um castelo de prata com lavores de negro e portas de verde e um leão de ouro com a pata nas portas; timbre: o castelo e um ramo de esparragueira florido de ouro, firmado na torre de menagem. Cristóvão Esteves, também jurista (do Conselho Real e desembargador do Paço e das Petições), era meio-irmão de Bernardim Esteves por parte de mãe e, tal como a este aconteceria, o rei primeiro o fez fidalgo de solar conhecido com o apelido de Espargosa e depois lhe deu armas novas, estas sim registradas na Chancelaria (liv. 46, fl. 104).
(10) O escudo esquartelado de Tavares, Esteves, Sousas e Soares (Cart. da Nobr., liv. part., fl. 90).
(11) O escudo esquartelado de Esteves, Fonsecas e Martins e, por diferença, uma brica de ouro com um trifólio verde (Cart. da Nobr., liv. 1, fl. 193).
(12) O escudo esquartelado de Rodrigues, Antunes, Esteves e Matos e, por diferença, uma brica de prata com um trifólio verde (Cart. da Nobr., liv. 5, fl. 205).

17/12/24

OS DEZ MAIS ANTIGOS (VIII)

Brasão de armas de Álvaro Afonso Frade.

O oitavo brasão mais antigo desta série foi dado a Álvaro Afonso Frade em 1471. Eis a carta de Dom Afonso V:

Armas de Álvaro Afonso Frade: "escudo em quarteirões, do qual o campo do primeiro quartel é de celestre ou de çafira a ũu pesante branco ou d'arjante, e do segundo quartel o campo é do pesante em celestre e nele ũa estrela de púrpura ou amatista; sobre tudo, ũa cruz de golas ou de robi sobre ũa ponta ondada do primeiro quartel".
Armas de Álvaro Afonso Frade: "Escudo em quarteirões, do qual o campo do primeiro quartel é de celestre ou de çafira a ũu pesante branco ou d'arjante, e do segundo quartel o campo é do pesante em celestre e nele ũa estrela de púrpura ou amatista; sobre tudo, ũa cruz de golas ou de robi sobre ũa ponta ondada do primeiro quartel".

Dom Afonso etc. A quantos esta carta virem, fazemos saber que, consirando nós nos muitos, continuados e estremados serviços que recebidos temos d'Álvaro Afonso Frade, escudeiro, nosso vassalo, morador na nossa vila d'Olivença, assi nos nossos Reinos d'aquém-mar como aalém do mar, nas partes d'África, a saber, nas tomadas da nossa vila d'Alcácer e da nossa vila d'Arzila e da nossa cidade de Tânger, que com a graça de Nosso Senhor filhamos aos mouros, sendo sempre connosco per pessoa e com hómẽes d'armas, beesteiros e outra gente, onde mui bem e lealmente nos serviu, e consirando em sua bondade, indústria e descriçom e no bõo desejo e vontade com que sempre continou em nosso serviço, assi nos feitos das guerras como em tôdolos outros a nosso serviço tocantes, e querendo-lhe esto galardoar, como a nós cabe fazer a aqueles que bem e fielmente nos servem, e por lhe fazermos graça e mercee, temos por bem e de nosso moto própio, querer, vontade e poder absoluto queremos e nos praz lhe darmos ũu escudo d'armas novas, a saber, o escudo em quarteirões, do qual o campo do primeiro quartel é de celestre ou de çafira a ũu pesante branco ou d'arjante, e do segundo quartel o campo é do pesante em celestre e nele ũa estrela de púrpura ou amatista; sobre tudo, ũa cruz de golas ou de robi sobre ũa ponta ondada do primeiro quartel, segundo aqui, nesta nossa carta patente, são pintadas e blasonadas, as quaes estabelecemos e queremos que desde agora e sempre que o dito Álvaro Afonso possa trazer e teer e delas, per custume dos outros que as têm, usar e gouvir em batalhas, torneos, cercos de vilas, combates de castelos, arroídos, bandos, escaramuças e em firmaes, anees e sinetes e em quaesquer outros lugares, assi de guerra como de paz, como per qualquer outro modo que lhe aprouver, sem outro embargo que lhe sobre elo seja posto. E isso mesmo queremos que seus filhos e descendentes, que dele descenderem per legítimo matrimônio, hajam as ditas armas e delas possam gouvir, como sobredito é. E porém mandamos ao nosso Primeiro Rei d'Armas e oficiaes delas que assi o proviquem em seus livros, registem, porque assi é nossa mercê e vontade. E em testemunho desto lhe mandamos dar esta nossa carta patente, por lembrança e memória delo, assinada por nós e asseelada do nosso seelo do chumbo. Dada em a nossa vila de Sintra, 8 dias de novembro. Antão Gonçálvez a fez. Ano de Nosso Senhor Jesu-Cristo de 1471. (em leitura nova, Míst., liv. 3, fl. 12; na Chanc. de D. Afonso V, liv. 21, fl. 14)

Em 1471, o estudo do brasão já se tinha tornado a heráldica, isto é, a arte dos arautos, graças à difusão de tratados que eles escreviam, copiavam, ampliavam e refundiam, até aqui quase todos em língua francesa. Tudo isso se percebe na presente carta.

Com efeito, pela primeira vez faz-se referência a um dos oficiais de armas como o primeiro — sem dúvida o rei de armas Portugal — e dispôs-se o registro da mercê nos livros desses oficiais. Vale a pena repassar o caminho percorrido até aqui:

  • Na carta de Gil e Vicente Simões (1438) e na de Fernão Gil de Montarroio (1450), os oficiais de armas aparecem como assistentes ao ato de concessão das armas, se bem que a qualidade delas permite presumir com bastante segurança que eles as criaram;
  • na carta de Pero Rodrigues Gante (1454), menciona-se pela primeira vez o rei de armas Portugal como o certificador de que Vasco Peres Gante recebera armas novas de Dom Duarte, o que supõe consulta de um registro, possivelmente um cartório particular que remontava ao reinado de Dom João I;
  • na carta de Álvaro Gonçalves de Cáceres (1459), explicita-se pela primeira vez que um oficial dessa classe — o rei de armas Algarve — ordenara o brasão concedido;
  • na carta de Martim Esteves Boto (1462), faz-se a primeira menção do rei de armas Portugal como o criador do brasão concedido.

Finalmente, que houvesse um membro principal e o registro particular tivesse devindo matéria do interesse da Coroa indica que o conjunto dos oficiais de armas do rei português já funcionava como uma corporação.

Além disso, é neste diploma que também pela primeira vez se usa o verbo blasonar ("segundo aqui, nesta nossa carta patente, são pintadas e blasonadas"). Na citada carta de 1459 diz-se que as armas "fôrom assinadas" por Algarve, na de 1462 que "foram devisadas" por Portugal e que ele "devisou e ordenou" as antecedentes, a Gonçalo Vaz de Campos (1465). Portanto, um paulatino refinamento que não parece meramente léxico; antes, é um refinamento conceitual que as palavras pouco a pouco iam exprimindo, tudo sob visível influência ultrapirenaica.

Ora, não bastasse o termo blasonar, este rei de armas rompeu com o uso de linguagem chã (e amiúde ambígua), praticada até aqui, para descrever o brasão, tentando introduzir vários galicismos: a um pesante, arjante e golas por à un besant, argent e gueules. Curiosamente, a semelhança de azur com azul deve ter levado ao brasonamento dessa cor como celest(r)e.

Na verdade, a maior prova de que o nosso oficial de armas conhecia a literatura heráldica circulante é a vinculação dos esmaltes a pedras preciosas: o azul à safira, a púrpura à ametista e o vermelho ao rubi. Quase chega a ser possível afirmar que ele leu algum tratado do grupo que começa com o Livre des armes (cerca de 1402) e sob a forma do Blason de toutes armes (1494) foi atribuído ao arauto Sicília (cf. a postagem de 14/03/21).

Outro aspecto que indica o avanço da cultura heráldica é o quanto se especifica o uso do brasão, tanto na guerra ("em batalhas, torneos, cercos de vilas, combates de castelos, arroídos, bandos, escaramuças") como na paz ("em firmaes, anees e sinetes"). Relacionando isso ao que se diz sobre o armígero — que levou "hómẽes d'armas, beesteiros e outra gente" às conquistas de Alcácer Ceguer, Arzila e Tânger —, fica corroborado que Dom Afonso V estava mesmo criando uma nobreza nova a partir de burgueses ricos e leais. Ao mesmo tempo, demonstra-se que o estamento nobre ainda servia de braço armado à Coroa.

Ainda a respeito de Álvaro Afonso Frade, ele teve descendência, que se multiplicou já desde a segunda geração. Inclusive, algumas mulheres usaram de um curioso feminino do sobrenome: Fradeça. Apesar disso, houve tendência ao abandono do sobrenome em todos os ramos e, de fato, nas coletâneas de cartas de armas não consta que se tenham passado as dessa linhagem a pessoa alguma. O timbre aparece a partir dos Triunfos de la nobleza lusitana (1631), do padre Antônio Soares de Albergaria: uma aspa vermelha, carregada de uma estrela de prata.

15/12/24

OS DEZ MAIS ANTIGOS (VII)

Brasão de armas de Gonçalo Vaz de Campos.

O sétimo brasão mais antigo desta série foi dado a Gonçalo Vaz de Campos em 1465. Eis a carta de Dom Afonso V:

Armas de Gonçalo Vaz de Campos: "ũu escudo todo de campo azul e dentro em ele três cabeças de liões d'ouro, com as línguas vermelhas e arrancamentos vermelhos".
Armas de Gonçalo Vaz de Campos: "Ũu escudo todo de campo azul e dentro em ele três cabeças de liões d'ouro, com as línguas vermelhas e arrancamentos vermelhos".

Dom Afonso etc. A quantos esta carta de doação d'armas virem, fazemos saber que, consirando nós como a todo bõo rei e príncipe pertence remunerar e galardoar os serviços dos bõos e virtuosos servidores, seus súbditos e naturaes, e ainda os estrangeiros que lhes fazem, com aquela honra, mercee, acrecentamento e favor que requerem seus serviços, mericimentos e virtudes, conhecendo nós o bõo e honesto viver de Gonçalo Vaaz de Campos, escudeiro e criado de Dom Frei Vaasco d'Ataíde, nosso bem amado dívido e do nosso Conselho e prior da Ordem de São João em nossos Reinos etc., alcaide por o dito prior em a vila do Crato, e dês i porque honrosamente com ũu navio e homens seus e com armas nos serviu na filhada da nossa vila d'Alcácer, nas partes d'África, e nos fez outros muitos e espiciaes serviços, de que somos em boa nembrança, querendo-lhos galardoar com mercee e honra a ele, correspondente, nós, de nosso moto própio, certa ciência e poder absoluto, lhe damos e outorgamos d'hoje em diante pera sempre as seguintes novas armas, que per nosso espicial mandado lhe devisou e ordenou Purtugal, nosso Rei d'Armas, a saber, ũu escudo todo de campo azul e dentro em ele três cabeças de liões d'ouro, com as línguas vermelhas e arrancamentos vermelhos, segundo aqui, em o meio desta nossa carta, perfeitamente são pintadas. As quaes armas queremos que o dito Gonçalo Vaaz e seus filhos per linha dereita descendidos possam trazer assi em corregimentos e autos de guerra como em arreos de suas casas e persoas e em suas sepulturas, moimentos e jazigos. E delas possam usar assi e tão compridamente como usárom e usam de direito ou custume os escudeiros de cota d'armas em nossos Reinos e Senhorios. E daqui em diante possam gouvir de quaesquer privilégios, liberdades, franquezas e isenções que hão e se guardam e devem haver e seer guardadas, per quaesquer ordenações e custumes de nossos Reinos e Senhorios, todos aqueles que per serviços, virtudes, mericimentos foram ou são dadas armas, insígnios e demostrações de semelhantes sinaes. As quaes armas, insígnios, assi divisadas e aqui pintadas, damos e outorgamos ao dito Gonçalo Vaaz, contanto que nom faça prejuízo a algũas outras se algũas pessoas as houveram e tem primeiramente em nossos Reinos. E porém mandamos aos nossos reis d'armas e oficiaes delas que ora são e ao diante forem e a outros quaesquer oficiaes e pessoas a que esto per qualquer maneira pertença que daqui em diante ao dito Gonçalo Vaaz e a seus lídemos filhos e a todos seus lídemos descendentes leixem trazer as ditas armas e usar e gouvir delas e de tôdalas ditas franquezas e liberdades suso declaradas e lhe nom vão nem consentam ir contra ela em maneira algũa. E por memória e renembrança desto lhe mandamos dar esta nossa carta, assinada per nós e asseelada do nosso seelo do chumbo. Dante em a nossa vila de Portalegre, a 11 dias do mês de maio. Diego de Figueiredo a fez. Ano de 1465. (em leitura nova, Míst., liv. 3, fl. 45v)

Assim como a antecedente, esta carta foi lavrada pelo escrivão Diogo de Figueiredo. Daquela, destaquei a pouca argúcia do preâmbulo, a parte do texto que apresenta uma teoria da concessão heráldica. Aqui, ele não só a abrevia, mas lhe dá teor genérico.

Com efeito, mais interessante é a locução "de nosso moto própio, certa ciência e poder absoluto", porque se opõe a outro pormenor, que lemos nas cartas de Fernão Gil de Montarroio e (1450) e na de Gil e Vicente Simões (1438): "presente os nobres do nosso Conselho e fidalgos, cavaleiros e gentis-hómẽes da nossa Corte e oficiaes d'armas, segundo se per direito e tal auto requerem". Trocando em miúdos, no início do reinado efetivo de Dom Afonso V a mercê de armas novas (que enobrecia o seu recebedor) ainda ensejava uma cerimônia curial, que interpreto como consentimento da nobreza com o ato régio, perfeitamente de acordo com o conceito de monarquia feudal. Depois, não se menciona mais isso e no referido antecedente o mesmo escrivão já usara da expressão "de nosso própio moto e ciência" (1), aqui plenamente desenvolvida: a concessão heráldica era um ato da soberana e real vontade.

Nada disso é banal. A heráldica gentilícia sob Dom Afonso V se tornou uma estratégia para a centralização monárquica ou, noutras palavras, para a evolução rumo à monarquia absoluta. Observe-se que Martim Esteves Boto era de Évora e levou homens, cavalos e armas à conquista de Alcácer Ceguer e, de modo semelhante, Gonçalo Vaz de Campos, alcaide do Crato, serviu na mesma empresa "com ũu navio e homens seus e com armas". Portanto, uma nobreza nova, formada por burgueses ricos e leais à Coroa.

Manuel José da Costa Felgueiras Gaio (1750–1831) no Nobiliário de famílias de Portugal (v. 8) supõe que o tronco dos de Campos foi Martim de Campos, fidalgo que viveu no reinado de Dom Afonso III. Na quinta geração, põe Vasco Gil de Campos, pai de Gonçalo Vaz. Este morreu sem descendência (2), de modo que Gil Vaz, seu irmão, herdou as suas armas. Em 1529, passaram-se a Fernão de Campos, "da geração e linhagem dos de Campos e dos d'Abul por parte de sua mãe e avoos" (3). Será Fernão Anes de Campos, neto de Fernão Dias de Campos, primo-irmão de Vasco Gil? Se sim, ele não tinha direito a essas armas, já que não descendia de quem as ganhou.

Na verdade, as de Gonçalo Vaz de Campos são exemplo ilustrativo de armas que desde cedo se vincularam a um apelido/sobrenome frequente sem compromisso genealógico (4). Assim, segundo José de Sousa Machado nos Brasões inéditos (1909), foram passadas a Diogo de Moreira, neto de Diogo Pires de Campos, em 1584; a Rodrigo Morais de Campos em 1591; a Antônio de Albuquerque, neto de Tomás de Campos, e a Gaspar da Rocha, neto de Francisco de Campos, em 1644. No Cartório da Nobreza até o século XVIII (e no Arquivo heráldico-genealógico, do visconde de Sanches de Baena, 1872), consta terem-se passado a José Manuel do Amaral e Campos em 1754; a Inácio Xavier de Campos Magro em 1767; a Dom Francisco Franco Feijó, neto de Dona Guiomar de Campos, e a Joaquim Tibúrcio de Campos Ribeiro em 1775; a Antônio Novais de Campos em 1778 e a Jerônimo José Daniel Nogueira de Andrade, filho de Mariana Joaquina Veloso de Campos, em 1790. Nenhum tinha, até onde se sabe, parentesco com Gonçalo Vaz. E vai além: no Tesouro da nobreza de Portugal (1783), Frei Manuel de Santo Antônio e Silva diz, sem mais, que os Campelos usam dessas mesmas armas (5).

Voltando ao texto, Diogo de Figueiredo compensa a brevidade do preâmbulo inserindo uma corroboração ("As quaes armas, insígnios, assi divisadas e aqui pintadas, damos e outorgamos...") e em seguida uma longa precação ("E porém mandamos..."), esta antes da datação e aquela depois do dispositivo. A partir daqui, esses elementos incorporaram-se definitivamente à carta de brasão como gênero textual.

Notas:
(1) Essa expressão é interessante até mesmo da perspectiva linguística, pois se compõe quase toda de latinismos (moto, próp(r)io, ciência e absoluto). Resulta, pois, do ambiente humanista e, muito especialmente, da difusão do direito romano, que o próprio Afonso V favoreceu em Portugal, afinal foi sob ele que se concluiu a compilação jurídica que leva o seu nome: as Ordenações afonsinas (1446).
(2) Na carta em apreço, diz-se que Gonçalo Vaz de Campos era escudeiro e criado de Frei Vasco de Ataíde, prior da Ordem de São João. Será que ele não teve geração por ter igualmente sido um freire hospitalário?
(3) 
O escudo esquartelado de Campos e Abuis e, por diferença, uma dobre brica de prata e verde (Chanc. de D. João III, liv. 17, fl. 116). O timbre é aí o dos Abuis, de modo que o dos de Campos foi estabelecido por Antônio Godinho no Livro da nobreza e perfeição das armas, a saber, uma das cabeças de leão.
(4) Dom João Ribeiro Gaio, bispo de Malaca (m. em 1601), no Templo da honra de Portugal (publicado pelo conde António de São Paio no Elucidário nobiliárquico, v. 2, n. 1), canta que "[d]este Ramiro afamado | de Campos conde e senhor | vêm os Campos, cujo honor | lhe deu brasão sublimado | digno de todo o louvor". Portanto, dá a Terra de Campos, entre os antigos reinos de Castela e Leão, por origem do sobrenome. Isso é, por assim dizer, a hipótese fácil, característica da ficção genealógica, que alcança a perfeição ao encontrar um magnata, como o conde Ramiro Froilaz, por genearca. O mais plausível é que um topônimo tão vago quanto Campos tenha denominado diversas linhagens.
(5) Se bem que, segundo o mesmo autor, "usam também os Campelos das [armas] dos Morais, por ser ramo desta que viveu no lugar de Campelo, de que tomou o apelido". No século XVIII, a mercê de armas novas ficou tão ultrapassada e valorizava-se tanto a nobreza ancestral que se chegou ao cúmulo de se passarem as armas de certa linhagem a pessoas de sobrenome meramente semelhante.

13/12/24

OS DEZ MAIS ANTIGOS (VI)

Brasão de armas de Martim Esteves Boto.

O sexto brasão mais antigo desta série foi dado a Martim Esteves Boto em 1462. Eis a carta de Dom Afonso V:

Armas de Martim Esteves Boto: franchado, o primeiro e quarto de ouro com um cabeça de mouro de sua cor, fotada de prata; o segundo e terceiro de vermelho com uma torre de prata, aberta e iluminada de negro.
Armas de Martim Esteves Boto: Franchado, o primeiro e quarto de ouro com uma cabeça de mouro de sua cor, fotada de prata; o segundo e terceiro de vermelho com uma torre de prata, aberta e iluminada de negro.

Dom Afonso etc. A quantos esta carta virem, fazemos saber que, porquanto os príncepes, consirando a vertude per si, cujo prêmeo é louvor, e o que devem ser liberaes, e nom ingratos, assi porque satisfaçam a sua dinidade como porque se nom privem de seu efeito e, como dívida assi aos que ou por louvor e exalçamento da nossa santa fee como por sua fama e bõo nome e serviço deles a desvairados trabalhos e perigos se aventurárom, nom receando despesas nem temendo morte, dês i porque outros, esperando tal fruito, boas e grandiosas cousas com bõo coração e maior esperança cometam, acustumaram, segundo os serviços de cada ũu, assi os galardoar. Polas quaes razões movido nós e ainda por a afeição que sempre tivemos a Martim Estévez Boto, assi por os muitos serviços e muito de prezar que el-Rei Dom João, meu avoo, que Deus haja, dele recebeu em a tomada da nossa cidade de Ceita e em outras cousas e, assi, a el-Rei, meu Senhor e padre, cuja alma Deus tem, em a ida e cerco de Tânger, onde por serviço de Deus e por conservação de seu bõo nome e fama sosteve atá o derradeiro recolhimento todo o temor e trabalhos que se no dito cerco seguiram, como por muitos outros que nós dele recebidos temos em paz e em guerra per sua pessoa e com armas, cavalos e homens, com grande despesa sua, principalmente na filhada da nossa vila d'Alcácer em África, onde per nós foi feito cavaleiro em satisfação deles, de nosso própio moto e ciência nós lhe damos e outorgamos que ele e todos seus lídimos descendentes daqui em diante possam trazer, por sua memória e sinal de tantos serviços, estas armas aqui pintadas, as quaes per Portugal, nosso Rei d'Armas, per mandado nosso, lhe foram devisadas e per nós confirmadas. E porém a ele e a todos os outros nossos reis d'armas e arautos e oficiaes delas mandamos que daqui em diante nom contradigam ao dito Martim Estévez nem lhe defendam que ele e seus lídimos descendentes nom tragam as ditas armas e usar delas em quaesquer lugares, em paz e em guerra, quando e como lhes aprouver. E per a presente encomendamos e mandamos a todos a que for mostrada que por o que dito é e dês i por o grande cárrego que com tanta rezão dele temos, lhe façam toda mercee, graça e favor, leixando-os livremente usar de tôdalas honras, graças, liberdades, privilégios e franquezas que per antigo custume ou direito comũu ou espicial per os reis são concedidos àqueles que per seus merecimentos armas percalçárom. E em testemunho delo lhe mandamos dar esta nossa carta, assinada per nós e asselada do nosso selo pendente. Dante em a nossa vila de Santarém, a primeiro dia d'abril. Diego de Figueiredo a fez. Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesu-Cristo de 1462 anos. (em leitura nova, Míst., liv. 2, fl. 151v; na Chanc. de D. Afonso V, liv. 1, fl. 14)

Esse diploma demonstra que em 1462 em Portugal a carta de brasão era um gênero discursivo em avançado desenvolvimento, mas ainda não tinha alcançado tanta fixidez. Assim, a cada concessão heráldica o escrivão sabia que, após o protocolo inicial (titulação e direção), devia elaborar uma teoria dessa espécie de mercê. À luz de tais ideias, expunha os méritos do recebedor, ao que se seguiam os dispositivos: a concessão das armas e a nobilitação do armígero (às vezes com um apelido/sobrenome novo). Concluía-se com a data e a subscrição.

No presente caso, o preâmbulo, além de não ser tão arguto quanto o da carta de João Gonçalves da Câmara, que o antecede e põe o rei como fonte da justiça, enfatiza claramente a cruzada, quase a modo de propaganda: quem arriscasse o seu corpo e os seus bens pela fé certamente seria honrado pelo príncipe, seu soberano.

Com efeito, ao menos desde o começo do século XVI difundiu-se a lenda segundo a qual Martim Esteves ao assaltar uma torre em meio à tomada de Ceuta, cortou as cabeças de dois defensores e as mostrou aos seus companheiros, perguntando-lhes onde as botava, daí a alcunha de Boto. João Rodrigues de Sá canta essa façanha nas suas quintilhas heráldicas (publicadas no Cancioneiro geral, de Garcia de Resende, 1516):

Botos
Duas cabeças cortadas,
postas em campo dourado,
de mouros e em corado
duas torres assentadas,
onde o feito foi passado.
Armas que Botos ganharam
são por mouros que mataram
naquelas torres em Ceita,
quando da danada seita
portugueses a livraram.

Antônio de Vilas Boas e Sampaio na Nobiliarquia portuguesa (1676) engana-se, atribuindo o feito e as armas a Estêvão Boto, quem, de acordo com Cristóvão Alão de Morais (1632–93) na Pedatura lusitana (t. 6, v. 2), foi o pai de Martim Esteves. É possível que ambos, pai e filho, tenham estado em Ceuta e, tendo os negócios familiares prosperado, Martim pôde levar "armas, cavalos e homens, com grande despesa sua," à conquista de Alcácer Ceguer, o que lhe valeu não só a nobilitação em idade madura, mas antes disso a sua investidura na cavalaria e o seu recebimento por vassalo do rei.

Segundo José de Sousa Machado nos Brasões inéditos (1909), em 1748 passaram-se as armas dos Botos a Domingos de Sousa Távora Boto e Telo (1), descendente de Rui Martins Boto, tabelião de São João da Pesqueira em 1514 e possivelmente bisneto de Martim Esteves. Em 1780, passaram-se a Antônio Boto Machado (2), descendente de Dinis Boto Machado. Terá este sido bisneto do Doutor Rui Boto, filho de Martim Esteves, que foi chanceler-mor do Reino sob Dom João II e Dom Manuel I? (3)

Voltando à carta, pela primeira vez se diz que as armas "foram devisadas", isto é, criadas pelo rei de armas Portugal. Desde o princípio desta série, sabemos que oficiais dessa classe assistiam à Corte e com bastante segurança cremos que eles ordenaram os brasões concedidos pelo monarca, ainda que só na carta de Álvaro Gonçalves Cáceres se tenha começado a declarar isso, se bem que aí, o rei de armas Algarve. Contudo, falta aqui o brasonamento, o que é uma pena, pois tínhamos conhecido apenas campos inteiriços, sempre descritos de baixo para cima, e chegamos agora a uma criação bem diferente: uma esquarteladura em aspa para repetição de duas figuras.

A propósito, também foi a primeira vez que numa mercê nova se lançou mão à cabeça de mouro para assinalar vitória sobre o Islã. Isso se praticaria até o esgotamento da cruzada como fonte de honorificência heráldica, de modo que a interpretação dos crescentes em certos brasões como troféus de combates contra muçulmanos é francamente anacrônica, porque foi na marinha otomana a partir do século XVI que pavilhões com essas figuras se difundiram.

Enfim, outros elementos inovadores desse texto são a notificação ("E porém a ele e a todos os outros nossos reis d'armas e arautos e oficiaes delas mandamos...") depois do dispositivo e a precação ("E per a presente encomendamos e mandamos...")  no protocolo final. Até aqui, todas as cartas vieram passando diretamente do dispositivo à datação.

Notas:
(1) O escudo esquartelado de Sousas, Távoras, Botos e Telos e, por diferença, uma brica de prata com uma estrela vermelha.
(2) O escudo partido de Botos e Machados e, por diferença, uma brica azul com um farpão de prata (Cart. da Nobr., liv. 2, fl. 219v).
(3) Acerca da geração de Martim Esteves Boto, só o próprio Doutor Rui está isento de dúvida. Este teve um filho chamado Fernão, talvez pai de Pedro Fernandes e avô de Dinis Boto Machado. Quanto aos Botos de São João da Pesqueira, presume-se que Rui Martins tenha sido neto de Estêvão Boto, um dos supostos filhos de Martim Esteves.

11/12/24

OS DEZ MAIS ANTIGOS (V)

Brasão de armas de João Gonçalves da Câmara.

O quinto brasão mais antigo desta série foi dado a João Gonçalves da Câmara em 1460. Eis a carta de Dom Afonso V:

Armas de João Gonçalves da Câmara: "ũu escudo preto e ao pee ũa montanha verde, sobre a qual está fundada e edificada ũa torre de prata, antre dous lobos d'ouro".
Armas de João Gonçalves da Câmara: "Ũu escudo preto e ao pee ũa montanha verde, sobre a qual está fundada e edificada ũa torre de prata, antre dous lobos d'ouro".

Dom Afonso, pela graça de Deus Rei de Portugal e do Algarve e Senhor de Ceita e d'Alcácer em África. A quantos esta carta virem, fazemos saber que, consirando nós como a justiça é luz e centro de tôdalas virtudes, de cujo seo procede aquela parte que chamam estribuitiva, a qual antre tôdolos homens mais pertence aos reis, por cuja rezão os antigos sabedores dissérom que nom era justiça ũa soo singular virtude, pois em ela se acrecentavam todas, donde se segue que a liberaleza e benfeituria assi é necessária ao príncipe, que sem ela claro nem justo pode ser chamado, ca se de todos espera receber serviço, com rezão deve ser liberal e gracioso de seus benefícios, dando a seus súbditos benefícios honrosos e prazívees acrecentamentos aos seus fiees servidores e, portanto, é milhor o seu principado quanto de milhores sojeitos é acrecentado. E havendo nós certa sabedoria dos muitos leaes serviços que João Gonçálvez de Câmara de Lobos, cavaleiro criado do Ifante Dom Hanrique, meu muito prezado e amado tio, há feitos em tempo dos reis, nosso avoo e padre, progenitores nossos, que Deus haja, assi em a dita cidade de Ceita como em Tânger, onde se ele houve mui grandemente em os feitos das armas contra os infiees, e isso meesmo fazendo-nos outros muitos serviços per outras muitas maneiras. As quaes cousas consiradas per nós, querendo-lhe fazer mercee em remuneraçom de seus bõos serviços, lhe damos insíneas de nobreza e apelido, a saber, ũu escudo preto e ao pee ũa montanha verde, sobre a qual está fundada e edificada ũa torre de prata, antre dous lobos d'ouro. As quaes armas e apelido lhe nós damos e ensinuamos e alevantamos a vós, sobredito João Gonçálvez de Câmara de Lobos, e a vossos legítimos herdeiros, os quaes de vós decenderem. E per esta presente vos unimos e ajuntamos e agregamos ao conto e aa companhia de tôdolos outros nobres hómẽes. E per este ordenamento mandamos e estabelecemos a todos vossos herdeiros, que de vós legitimamente decenderem, que daqui em diante possaes usar de tôdalas honras, prerrogativas de que tôdolos nobres usam, possam usar, assi de custume como de direito. E por maior firmeza e corroboraçom e por vigor desta presente lêtera, vos outorgamos as ditas armas e possaes usar delas, assi em qualquer feito e jogo d'armas como em aaz de batalha, sem vos em esto ser posto nenhũu embargo. Dada em a nossa vila de Santarém, quatro dias do mês de julho. Pedr'Afonso, Veedor de nossa Fazenda, das cousas que pertencem a tôdolos feitos do mar Ouciano, a fez per nosso mandado. Ano do Nacimento de Nosso Senhor Jesu-Cristo de 1460. (em leitura nova, Míst., liv. 3, fl. 56v)

Essa carta dá uma sequência mais coerente com a de Fernão Gil de Montarroio (1450) do que com a duas antecedentes, de Álvaro Gonçalves de Cáceres (1459) e Vasco Peres/Pero Rodrigues Gante (1454), porque nela se voltou a praticar o formulário típico:

  • Protocolo inicial (titulação e direção): "Dom Afonso... A quantos esta carta virem...".
  • Texto:
    • Preâmbulo: "consirando nós como a justiça...";
    • exposição: "E havendo nós certa sabedoria...";
    • dispositivo: "As quaes cousas consiradas per nós, querendo-lhe fazer mercee em remuneraçom de seus bõos serviços, lhe damos...".
  • Protocolo final (data e subscrição): "Dada em a nossa vila... ".

Em particular, o preâmbulo é muito bem desenvolvido, tanto a sua forma como o seu conteúdo. Quanto à forma, a língua portuguesa estava mais apta à expressão do raciocínio complexo e o autor aproveitou-se disso, usando não só de orações relativas, mas também de coordenadas conclusivas ("pois em ela se acrecentavam todas, donde se segue que...", "ca se de todos espera...", "portanto, é milhor..."), embora estribuitiva por distributiva deixe ver a vacilação dos latinismos, que persistiria pelo resto do século. Quanto ao conteúdo, de uma primeira leitura é possível destacar que se idealiza um rei grato e justo ("se de todos espera receber serviço, com rezão deve ser liberal e gracioso de seus benefícios"), porém uma leitura mais atenta vai perceber que, num momento em que a nobreza ainda era o braço armado da Coroa, o rei estava, na verdade, refirmando-se como a fonte da justiça ("luz e centro de tôdalas virtudes, de cujo seo procede aquela parte que chamam estribuitiva, a qual antre tôdolos homens mais pertence aos reis"). Com efeito, Dom Afonso V, Dom João II e Dom Manuel I fizeram da heráldica gentilícia autêntica estratégia de centralização da monarquia.

Quanto ao armígero, pela primeira vez premiou-se um navegador: é possível que justamente pelas suas façanhas em Ceuta e Tânger o infante Dom Henrique, como governador da Ordem de Cristo, tenha escolhido João Gonçalves Zargo ou Zarco para explorar o arquipélago ao oeste da costa marroquina. Em 1418 juntamente com Tristão Vaz Teixeira reconheceu a ilha do Porto Santo e no ano seguinte novamente com ele mais Bartolomeu Perestrelo a da Madeira. Foi aí que descobriu uma baía e nela uma gruta habitada por uma multidão de lobos-marinhos. O lugar ficou, então, conhecido como Câmara de Lobos, nome que Dom Afonso V escolheu para criar uma linhagem nova a partir de João Gonçalves, cujos descendentes o encurtaram: da Câmara.

A propósito, das dez concessões heráldicas mais antigas somente a linhagem de João Gonçalves da Câmara ascendeu à alta nobreza. Tendo ele e os companheiros convencido o infante e senhor das ilhas a povoá-las, cada um recebeu aí uma capitania: Tristão Vaz a de Machico em 1440, Bartolomeu Perestrelo a do Porto Santo em 1446 e João Gonçalves a do Funchal em 1450. Na quinta geração, Simão Gonçalves da Câmara foi feito conde da Calheta por Dom Sebastião em 1576. A capitania permaneceu na Casa da Calheta até a sétima geração do navegador: em 1656, João Gonçalves da Câmara morreu sem descendência e os títulos e bens foram herdados por Mariana de Lancastre, sua irmã e mulher de João Rodrigues de Vasconcelos e Sousa, conde de Castelo Melhor. A capitania do Funchal foi incorporada na Coroa em 1766, quando em compensação Dom José elevou José de Vasconcelos e Sousa a marquês de Castelo Melhor e o título de conde da Calheta passou ao herdeiro desse marquesado.

Além da capitania do Funchal, o segundo filho de João Gonçalves, chamado Rui Gonçalves da Câmara, comprou em 1474 a capitania de São Miguel, nos Açores. A favor de seu trineto, do mesmo nome, Dom Filipe I criou o condado de Vila Franca em 1583, mas em 1652 Dom Rodrigo da Câmara, terceiro e derradeiro conde, foi condenado por sodomia e sentenciado ao confisco dos seus bens e à prisão perpétua. A pedido de Dona Maria Coutinho, sua esposa e filha de Dom Francisco da Gama, conde da Vidigueira, a capitania foi restituída a Dom Manuel Luís Baltasar da Câmara, seu filho, por Dom Afonso VI, que o criou conde da Ribeira Grande em 1662. As capitanias açorianas foram extintas no mesmo ano de 1766, mas a Casa da Ribeira Grande sob a varonia dos Câmaras perdurou até o fim da monarquia.

João Gonçalves gerou, ainda, cinco filhas e um filho, Garcia, que também transmitiu o sobrenome Câmara. Portanto, teve uma vasta geração, com a qual talvez entronque este subscritor, descendente tanto por parte de sua avó paterna como por parte da materna de Francisco Antônio da Câmara, morador na ribeira do Apodi, capitania do Rio Grande do Norte, no fim do século XVIII e começo do seguinte.

As armas dos Câmaras sofreram alterações inexplicáveis antes das coletâneas do século XVI. Já nas quintilhas de João Rodrigues de Sá (publicadas no Cancioneiro geral, de Garcia de Resende, 1516), o campo é verde e não há monte: "Nũa torre de menagem | dous lobos querem trepar | em campo cor dum pumar, | que são armas da linhagem | mui dina de nomear". O mesmo na carta de brasão que Pedro Álvares da Fonseca, bisneto de João Gonçalves da Câmara, segundo capitão do Funchal, recebeu em 1533: "de verde e ũa torre de menagem de prata cuberta e em cima do curifeu ũa cruz d'ouro antre dous lobos de sua cor, pegados na torre" (1). Esse brasonamento praticamente descreve a iluminura que está no final do Livro da nobreza e perfeição das armas, de Antônio Godinho (2).

Contudo, o padre Antônio Soares de Albergaria deve ter nos seus estudos achado o registro da mercê a João Gonçalves da Câmara, pois nos Triunfos de la nobleza lusitana (1631) recobra o ordenamento original: "Una torre de plata en campo negro, asentada sobre un monte verde, y dos lobos de oro, armados de negro, empinados". Dessa mesma forma desenha as armas dos condes da Calheta e de Vila Franca nos Troféus lusitanos (1632). Seguiram-no com alguma variação Francisco Coelho no Tesouro de nobreza (1675), Antônio Caetano de Sousa nas Memórias históricas e genealógicas dos grandes de Portugal (1739) e Frei Manuel de Santo Antônio e Silva no Tesouro da nobreza de Portugal (1783).

Possivelmente, as alterações foram introduzidas na Casa de Vila Franca para se diferençar daquela da Calheta e acabaram por causar grande confusão.

Por fim, cabe ressaltar que, embora João Gonçalves da Câmara tenha ganhado brasão dez anos depois de ter sido nomeado capitão do Funchal e o povoamento da Madeira tenha sido o maior feito da sua vida, nada disso aparece na sua carta de armas (3), mas tão somente uma vaga menção a serviços nas praças africanas. Não parece algo fortuito, mas mostra, a meu ver, que em 1460 a gesta ultramarina por si só, sem embate contra o Islã, não bastava para alcançar uma mercê de armas novas e, por conseguinte, o enobrecimento.

Notas:
(1) O escudo partido de Câmaras e Ornelas e, por diferença, uma brica de prata com um M negro (Chanc. de D. João III, liv. 45, fl. 52v).
(2) Como o Livro da nobreza e perfeição das armas não tem data, não se sabe o que antecede: se a iluminura que contém ou a carta de brasão de 1533. De todo modo, a Antônio Godinho cabe creditar o estabelecimento do timbre, que é um dos lobos, passante, já que a Pedro Álvares da Fonseca se deu o timbre dos Ornelas.
(3) O único vestígio está na jurisdição do escrivão, vedor "das cousas que pertencem a tôdolos feitos do mar Ouciano".

09/12/24

OS DEZ MAIS ANTIGOS (IV)

Brasão de armas de Álvaro Gonçalves de Cáceres.

O quarto brasão mais antigo desta série foi dado a Álvaro Gonçalves de Cáceres em 1459. Eis a carta de Dom Afonso V:

Armas de Álvaro Gonçalves de Cáceres: "ũu escudo de campo d'ouro com ũa palma verde com seu fruito e, em cima dela, ũa estrela vermelha".
Armas de Álvaro Gonçalves de Cáceres: "Ũu escudo de campo d'ouro com ũa palma verde com seu fruito e, em cima dela, ũa estrela vermelha".

Ao mui Virtuoso e mui Excelente Príncipe Frederico, per graça de Deus Emperador dos Romãos e sempre acrescentador amigo seu, como irmão mui amado, em via dos infiees gloriosamente triunfar, e aos outros mui Esclarecidos per essa meesma graça Reis, seus amigos, como irmãos mui caros, Dom Afonso, per semelhante graça Rei de Portugal e do Algarve e Senhor de Ceita e d'Alcácer em África, saúde e sincera dileiçom. Aos Ilustres Príncipes, dos Reis primos-gênitos, e aos Duques, seus amigos, como parentes amados, e aos Magníficos Marqueses, Notaves Meestres das Órdẽes, Condes, Nobres, Barões e Estremados Cavaleiros e a quaesquer outros fiees cristãos, muitas saúdes. Como a honra de cada ũu desejada galardom de toda vertude seja, justa cousa é a aqueles ser dada, que som d'esmeradas bondades e resplandor de fremosa lealdade guarnecidos, por o qual nós, consiirando que o discreto Álvoro Gonçálvez de Cáceres, nosso servidor e leitor das carônicas e livros de Castela, barom virtuoso e fiel por serviço de Deus e nosso, em África connosco e em nossa frota e hoste passou, contra aquela gente bárbara e cruel em a tomada d'Alcácer Ceguel foi, onde animosa e prudentemente se houve, como merecedor da ordem melitar, servando a maneira acustumada, ali per nossa mão cavaleiro o armamos e fezemos. E como rezoável e conveniente cousa é que os filhos e todos os outros seus, dele descendentes, das honras dos padres e seus maiores gozem por resplandor de sua pessoa e honra de seus socessores, as armas, de fundo em esta nossa carta pintadas fulicidas (1), lhe damos e outorgamos pera sempre, a saber, ũu escudo de campo d'ouro com ũa palma verde, com seu fruito e, em cima dela, ũa estrela vermelha, segundo per Algarve, nosso Rei d'Armas, lhe fôrom assinadas, as quaes o dito Álvoro Gonçálvez e tôdolos outros seus descendentes possam trazer em suas cotas d'armas e escudos e guarnimentos que eles quiserem, sem algũu costrangimento sobre elo lhe ser posto por pessoa algũa. E, portanto, ao dito Emperador e a tôdolos reis e príncipes e a quaesquer deles a que esto perteencer afeituosamente rogamos que em seus reinos e senhorios lhes praza leixar trazer as ditas armas ao dito Álvoro Gonçálvez e a todos seus descendentes, como dito é, e se algũu em tal quiser contradizer, por nossa contemplação o defendam e emparem em todo elo. E em testemunho das quaes cousas lhe mandamos dar esta carta, dada em a nossa mui Nobre e sempre Leal Cidade de Lisboa, assinada per nossa mão e asseelada com o nosso seelo do chumbo pendente, a 23 dias de junho. Álvoro López a fez. Ano do Nacimento de Nosso Senhor Jesu-Cristo de 1459 anos. (em leitura nova, Míst., liv. 4, fl. 1)

Passaram-se quase quatro anos desde a concessão de brasão a Vasco Peres/Pero Rodrigues Gante e mais de nove desde aqueloutra a Fernão Gil de Montarroio. Levanto duas hipóteses para explicar por que a de Álvaro Gonçalves de Cáceres — que não se acha na Chancelaria, mas apenas na Leitura Nova — difere tanto das três antecedentes, especialmente pela longa e dupla saudação, antes ("Ao mui Virtuoso e mui Excelente Príncipe...") e depois da titulação ("Aos Ilustres Príncipes..."), e pela precação ("E, portanto, ao dito Emperador e a tôdolos reis e príncipes e a quaesquer deles...").

Primeiro, Álvaro Gonçalves tinha claramente origem castelhana. O sobrenome aponta que veio de Cáceres, na Estremadura, e a carta (a única fonte que temos sobre a sua vida) informa que entrou para o serviço do paço como "leitor das carônicas e livros de Castela". Interpreto que ele lia para o rei obras históricas e literárias em castelhano em momentos de lazer. Talvez tenha saído da sua terra natal em meio à guerra entre facções nobiliárias, uma encabeçada pelo rei João de Navarra e a outra pelo condestável Álvaro de Luna com o apoio do rei João II, que durou de 1437 a 1445. Talvez desejasse algum dia retornar, daí ter recebido uma carta tão precatória de Dom Afonso V, que tinha então boa relação com Henrique IV de Castela, seu cunhado.

Segundo, a carta a Pero Rodrigues Gante fora uma renovação de uma mercê nova, com o perdão da redundância, de modo que a última concessão efetiva (a Fernão Gil de Montarroio) ficara tão longe que se perdera o seu formulário. De fato, outro aspecto formal desse texto chama a atenção: a sua sintaxe é muito alatinada, mais que o normal sob o Humanismo. Será tradução literal de um original latino? Todavia, o próprio ordenamento das armas enfraquece esta hipótese.

Ora, tendo-se afirmado no próprio texto que Álvaro Gonçalves esteve na tomada de Alcácer Ceguer (1458), onde o rei o armou cavaleiro, fica evidente que a palmeira refere ao seu desempenho animoso e prudente nessa conquista, pois apesar de haver palmeiras nativas em Portugal, elas abundam muito mais além-mar, em África. Isso demonstra continuidade com o arco turco de Vasco Peres Gante, isto é, a incorporação de elementos exóticos no repertório heráldico, o que faria escola na armaria portuguesa.

Atente-se, a propósito, à referência ao rei de armas Algarve: não só é a primeira menção desse ofício, mas também pela primeira vez se declara que as armas foram criadas (aqui se diz "fôrom assinadas") por um oficial dessa classe. Convém recapitular que na carta de Gil e Vicente Simões e na de Fernão Gil de Montarroio os oficiais de armas aparecem apenas como participantes do ato de concessão heráldica e na de Pero Rodrigues Gante menciona-se o rei de armas Portugal como o certificador de que Vasco Peres Gante ganhou brasão e qual. O presente diploma é, ademais, o primeiro que, além do brasonamento, continha sem dúvida uma iluminura das armas ("de fundo em esta nossa carta pintadas").

As armas de Álvaro Gonçalves de Cáceres foram passadas em 1535 a Manuel da Fonseca, filho de Álvaro de Cáceres e neto de Manuel de Cáceres, mas não sei com que justeza, pois à obscuridade acerca daquele cavaleiro se somam a importância e proximidade da vila de Cáceres, o que aumenta sobremaneira a probabilidade de homonímia. Seja como for, essa carta ajuda-nos a discernir que "palma" deve ser um lapsus calami: "d'ouro com ũa palmeira verde com seu fruito de vermelho" (2). Entretanto, omite a estrela.

A respeito da estrela, desde Beneditina lusitana (1651), de Frei Leão de Santo Tomás, sabemos que nem carrega nem remata a palmeira, mas a encima: "ũa estrela vermelha em chefre [sic]". Isso tem, na verdade, sido recorrente nestas cartas mais antigas até aqui: brasona-se em linguagem tão chã que é necessário consultar a literatura heráldica para sanar ambiguidades.

Notas:
(1) A palavra fullicidas é claramente erro de cópia, porém difícil de corrigir.
(2) O escudo esquartelado de Cáceres e Fonsecas (Chanc. de D. João III, liv. 10, fl. 116). Esta carta também supre a falta de timbre na concessão: a palmeira das armas, cujos frutos estão aí brasonados de vermelho, mas diversamente na literatura heráldica. Anselmo Braamcamp Freire, na Armaria portuguesa (1909), entende que têm a sua cor natural. Isso é coerente com a indeterminação de esmalte na linguagem heráldica portuguesa.