29/04/22

A POMPA FÚNEBRE DE CARLOS V: A CAPELA-ARDENTE

Mesmo que o corpo estivesse sepultado alhures, a capela-ardente era o centro político de uma cerimônia pretensamente religiosa.

Capela-ardente ou câmara-ardente é o espaço onde se expõe o féretro, comumente dito caixão, enquanto dura o velório de um falecido. Portanto, uma prática que segue plenamente habitual, ao menos entre os católicos, ainda que o termo tenha caído em desuso, se é que foi, alguma vez, usual na língua portuguesa. De fato, hoje em dia, quando não numa capela do cemitério, as pessoas velam os seus mortos em locais privados que simulam uma capela. Segue a descrição da capela-ardente de Carlos V segundo La magnifique et sumptueuse pompe funèbre...

Descrição da capela-ardente (La magnifique et sumptueuse pompe funèbre..., exemplar da BnF).
Descrição da capela-ardente (La magnifique et sumptueuse pompe funèbre..., exemplar da BnF).

A capela-ardente representada na figura seguinte era admirável, pois a sua área media vinte pés de comprimento e dezesseis de largura, sendo construída sobre quatro grossos pilares quadrados de vinte pés de altura e erguida de forma piramidal de tal artifício e grandeza que levava cerca de três mil círios ardentes, cada um do peso de uma libra.

A capela-ardente (La magnifique et sumptueuse pompe funèbre..., exemplar da BnF).
A capela-ardente (La magnifique et sumptueuse pompe funèbre..., exemplar da BnF).

Pela imagem compreende-se bem por que essa prática recebeu o nome de capela-ardente: quando se construía, como é o caso, uma estrutura especial para a exposição do féretro, a esta dava-se forma de capela, a qual se iluminava com círios, ou muitos círios.

Descrição da capela-ardente (La magnifique et sumptueuse pompe funèbre..., exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).
Descrição da capela-ardente (La magnifique et sumptueuse pompe funèbre..., exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

A capela-ardente de Carlos V foi erguida no cruzeiro da Igreja Colegial, hoje Catedral de Santa Gúdula (Cathédrale des Saints Michel et Gudule/Sint-Michiels- en Sint-Goedelekathedraal). A igreja toda foi preparada para o velório e as exéquias. A nave foi fechada por tapumes e toldada por panos pretos em toda a sua extensão, acima dos quais pendiam sanefas da mesma cor com as armas do finado. Essa tira de tecido era outra forma de armoriar o templo e denominava-se litre em francês (da mesma origem de listra em português). Desse modo, só se entrava pelas portas frontais do edifício. Diante da porta do coro, montou-se um estrado de quatro degraus e sobre ele, o altar para oficiar as exéquias.

A capela-ardente (La magnifique et sumptueuse pompe funèbre..., exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).
A capela-ardente (La magnifique et sumptueuse pompe funèbre..., exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

Além do descrito no livro, vê-se que o design da capela-ardente destaca o conteúdo heráldico dela. Assim, a cobertura piramidal tem quatro níveis para ostentar em cada face as armas dos reinos e senhorios de Carlos V e os enormes castiçais têm formas de cruzes recruzetadas e deitadas para não tapar a visão desses brasões nem do que remata o conjunto: três grandes coroas reais antigas e, sobranceira e maior, uma coroa imperial. A mensagem é de fácil inteligência: mais que pessoais, essas armas representavam os estados que, em união dinástica, constituíam uma só monarquia.

À medida que a leitura passa do continente para o conteúdo, reforça-se o sentido, pois são as insígnias concretas do império o que os signos decorativos da capela abrigam: a coroa, o cetro e o orbe, cada uma sobre um coxim dourado. A coroa foi deposta em cima do féretro, coberto de brocado dourado com uma cruz chã de veludo vermelho; o cetro e o orbe, em cima de pedestais cobertos de veludo preto, tudo elevado por um estrado de três degraus. Esses mesmos tecidos revestem, a propósito, o teto armoriado da capela-ardente.

A leitura é confirmada pela abundância de brasões em volta da capela-ardente: quatro pedestais sustentam círios maiores, cada um um, entre os quais havia outros menores, alinhados diante e detrás da capela-ardente, todos guarnecidos com as armas da própria dignidade imperial: a águia bicípite negra em campo de ouro. Trocando em miúdos, ao olhar para frente, a heráldica leva o observador a ver o imperador romano; ao levantar os olhos, percebe que ele era o rei da Espanha e de seus outros domínios.

Enfim, é curioso que o caixão estivesse vazio. Tendo falecido no Mosteiro de São Jerônimo de Yuste (Monasterio de San Jerónimo de Yuste), Carlos V aí foi sepultado (1). Mas, de acordo com o costume de cada terra, não era incomum que se celebrassem em várias cidades funerais régios. Apesar do caráter sacramental, a cerimônia tinha, afinal, um conteúdo político mais que evidente.

Nota:
(1) Em 1573, Filipe II resolveu transladar os restos mortais de seu pai para o Mosteiro de São Lourenço de El Escorial (Monasterio de San Lorenzo de El Escorial), que ele mesmo mandara edificar e fundara em 1567. Com efeito, na cripta da basílica desse mosteiro, ou Panteão Real (Panteón Real), repousam os restos de todos os reis espanhóis das casas de Habsburgo e Bourbon, começando pelo próprio Carlos V, exceto Filipe V e Fernando VI.

27/04/22

A POMPA FÚNEBRE DE CARLOS V: A OBRA

O livro engenhado por Cock e editado por Plantin sobre o funeral de Carlos V é uma obra-prima pela técnica, pela estética e pelo teor.

La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... é uma obra-prima. O seu valor reside em diversos aspectos: impôs consideráveis desafios técnicos ao editor, pois o cortejo foi desenhado de forma contínua, de modo que juntando corretamente as folhas, mede cerca de doze metros; apresenta notável beleza, graças à perícia do desenhista e dos gravadores; documenta por texto e imagem uma prática social relevante ao tempo; fornece dados singulares a alguns estudos, não só de heráldica ou vexilologia. Por exemplo, Christophe Plantin publicou esse livro nas principais línguas dos domínios de Carlos V. Por ordem de edição:

  1. Em holandês: De seer schone ordonnantie van den rouwe des uutvaarts van den Aldermachtigsten ende Onverwinliksten Karolo de Viefste, Roomsche Keizer, hoogloofliker gedachtenisse, gehouden binnen de stad van Brussele den XXIX dag van Decembris MDLVIII, duer Philippum, Koning van Spanjen etc., synen soon;
  2. em francês, La magnifique et sumptueuse pompe funèbre faite aux obsèques et funérailles du très grand et très victorieux Empereur Charles Cinquième, célébrées en la ville de Bruxelles le XXIX jour du mois de décembre MDLVIII, par Philippes, Roi Catholique d'Espagne, son fils;
  3. em alemão: Wahrhaftige, gründliche Beschribung und eigentliche Abkontrefeiung der herrlichen Zeremonien und Prozession so an des Großmächtigsten, Unüberwindlichsten Herren Caroli V, Römischen Kaiserlichen Majestät, Besingnus zu Brüssel in Brabant, durch Philippum, Küniglichen Majestät aus Hispanien, hochlöblichster Kaiserlichen Majestät Sohn, am XXIX Decembris des MDVIII Jahrs gehalten worden;
  4. em italiano: La magnifica e suntuosa pompa funerale fatta in Burselle il di XXIX di decembre, l'anno MDLVIII, nell'essequie dello 'nvittissimo Carlo Quinto, Imperatore Massimo;
  5. em espanhol: La muy insigne e muy sumptuosa pompa fúnebre hecha en las honras y essequias del Victoriosíssimo Emperador Carlos Quinto Máximo, celebradas en la villa de Brusselas a los XXIX de deziembre MDLVIII, por el Católico Don Felipe, Rey de España, su hijo.

Mais precisamente, o relato do funeral saiu nessas línguas, mas as legendas do cortejo são as mesmas em todas as edições, propriamente multilíngues: a descrição da cena em latim e as identificações das personagens em francês ou espanhol. Ora, isso testemunha de modo muito singular a nova conjuntura linguística do Ocidente, na qual certas línguas, cada vez mais padronizadas, foram suplantando o latim, até então de uso geral em muitos âmbitos cultos. Além das cinco edições de 1559, todas por Christophe Plantin em Antuérpia, houve mais três: duas por Hendrik Hondius em Haia, uma sem data e a outra em 1619, e a terceira por Gillis Hendricx em Antuérpia, reimpressão dessa derradeira edição.

Prancha n.º 6 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).
Prancha n.º 6 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

Em suma, La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... desenrola-se através das seguintes partes:

Na Internet, acham-se digitalizações de dois exemplares em alemão, ambos da Bayerische Staatsbibliothek (BSB) e seis em francês, pertencentes à Biblioteca Nacional de España (BNE), à Bibliothèque municipale de Besançon, à Bibliothèque nationale de France (BnF), à Bibliothèque Universitaire Moretus Plantin (BUMP), ao Institut national de l'histoire de l'art (INHA) e ao Museum Plantin-Moretus. Devido à complexidade técnica da obra, cada um apresenta um estado distinto.

Prancha n.º 6 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar do INHA).
Prancha n.º 6 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar do INHA).

Assim, aos dois exemplares da BSB, dos quais um é colorido, faltam as gravuras do cortejo. O da BUMP é completo, mas não colorido. Os demais citados são coloridos, mas ao da BNE faltam as pranchas 11 e 12; ao da BnF, as de n.os 21, 22 e 23; ao do INHA, as de n.os 33 e 34. Não obstante, como se coloria tudo à mão, exemplar por exemplar, a qualidade varia sensivelmente: o da BNE e o do Museum Plantin-Moretus assemelham-se por apresentarem trabalhos menos primorosos, pois certos pormenores deixaram de receber alguma tinta. O da Bibliothèque municipale de Besançon mostra maior arte e o da BnF sobressai a todos pelas suas cores mais ricas, se bem que as do exemplar do INHA são, sim, comparáveis, mas além de este vir de outra tiragem, na qual se omitiu o friso floral e se empregaram provas menos limpas, o seu estado de conservação é o pior. Tudo isso se vê claramente na prancha n.º 6, na qual Stefano Doria traz "le grand estandard des couleurs", a bandeira que ostenta mais figuras: Santiago Mata-Mouros, as armas imperiais entre as Colunas de Hércules (estas, a empresa pessoal) e as insígnias da Ordem do Tosão de Ouro.

Prancha n.º 6 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da BnF).
Prancha n.º 6 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da BnF).

Além disso, a composição de folhas de diferentes tamanhos, que se dobram e desdobram de diferentes modos, impôs desafios também à encadernação e até mesmo à digitalização. De fato, somente o exemplar da BnF obedece rigorosamente à sequência que se observa nos textos e nas imagens. Contudo, nessa biblioteca a qualidade do arquivo baixado é a pior. Farei, pois, esta série de postagens trazendo, além desse exemplar, o da Bibliothèque municipale de Besançon, antiga cidade livre imperial, favorecida por Carlos V.

25/04/22

A POMPA FÚNEBRE DE CARLOS V: A PERSONAGEM

A pompa desmedida parece hoje imoral, mas sabemos, ao mesmo tempo, dar o devido valor histórico à suntuosidade de outrora.

Quem visitar a Capela de São João Nepomuceno na Igreja de Santiago (Eglise de Saint-Jacques-sur-Coudenberg/Sint-Jakob-op-Koudenbergkerk), em Bruxelas, verá os obiits de cinco reis dos belgas. Pelo que dá a antever o blog Royalement, houve Totenschilde alemães, rouwborden holandeses e hatchments britânicos muito mais suntuosos do que esses singelos painéis negros com uma fina orla dourada junto à moldura. Suspeito de que a doutrina católica, cada vez mais avessa a sepultamentos e, em particular, à suntuosidade funerária dentro dos templos, tenha influído aí, mas, além disso, é próprio da Idade Contemporânea julgar imoral a pompa desmedida, principalmente quando custeada pelo estado.

No passado, todavia, nem mesmo a igreja se podia opor a funerais extraordinariamente dispendiosos quando se faziam em memória dos príncipes mais poderosos, como o do imperador Carlos V, havido aos 29 de dezembro de 1558 na dita cidade de Bruxelas, sob a presidência de Filipe II da Espanha, seu filho. De resto, o pensamento contemporâneo tem sabido ressignificar o luxo de outrora, conferindo-lhe valor histórico, artístico e cultural. Ora, desse funeral não só se publicaram relatos, mas também um livro com uma série de gravuras belíssimas: La magnifique et sumptueuse pompe funèbre faite aux obsèques et funérailles du très grand et très victorieux Empereur Charles V, célébrées en la ville de Bruxelles le 29.e jour du mois de décembre 1558, par Philippes, Roi Catholique d'Espagne, son fils ('A magnífica e suntuosa pompa fúnebre feita nas exéquias e funeral do máximo e vitoriosíssimo Imperador Carlos V, celebradas na cidade de Bruxelas aos 29 dias do mês de dezembro de 1558, por Filipe, Rei Católico da Espanha, seu filho').

Carlos V (I pela numeração dos reis espanhóis) nasceu em 1500 em Gand, condado de Flandres. Era filho de Filipe o Belo, duque da Borgonha, e da infanta Joana de Castela, neto por parte paterna de Maximiliano I, rei dos romanos e arquiduque da Áustria, e de Maria I, duquesa da Borgonha (falecida em 1482), e por parte materna de Fernando de Aragão e Isabel de Castela, os Reis Católicos da Espanha. Dois anos depois do seu nascimento, seus pais viajaram à península, onde as Cortes de Toledo os juraram príncipes das Astúrias, isto é, herdeiros da coroa castelhana. Assim, ao morrer Dona Isabel em 1504, Dom Fernando proclamou Dona Joana rainha de Castela e depois, em julho de 1506, as Cortes de Valladolid juraram ambos, Dom Filipe e Dona Joana (1), reis e Dom Carlos seu sucessor, mas em setembro o rei faleceu. Em Flandres, onde o príncipe permanecera, sucedeu a seu pai como soberano dos domínios borguinhões; em Castela, Fernando o Católico mandou encerrar sua própria filha no paço de Tordesilhas, sob a alegação de que padecia de uma doença mental (com efeito, passou à história como Joana a Louca), e aí foi mantida até o fim da vida, em 1555.

A maioridade do duque Carlos foi declarada pelo imperador, seu avô, em 1515 e um ano depois faleceu o outro avô: Fernando, rei de Aragão e regente de Castela. Partiu, então, para a península, onde desembarcou em setembro de 1517. Seguidamente, foi jurado rei junto com sua mãe por cada estado da monarquia: em fevereiro de 1518 pelas Cortes castelhanas, em julho pelas aragonesas, em outubro pelas sardas, em novembro pelo parlamento siciliano, em fevereiro de 1519 pelas Cortes catalãs, em maio de 1520 pelas valencianas. Entrementes, em janeiro de 1519, morreu Maximiliano I, deixando ao rei Carlos os domínios austríacos e fazendo dele forte candidato à dignidade imperial. Foi eleito imperador em junho desse ano e coroado rei dos romanos em outubro do ano seguinte em Aquisgrão. Nesse momento, deteve um acúmulo de poder poucas vezes repetido ao longo da história humana. Mas a este acabam sendo proporcionais as dificuldades (2), de modo que em abril de 1521 o imperador Carlos assentiu em ceder ao infante Fernando, seu irmão, os domínios austríacos (3).

Com efeito, Carlos V não só descendia de grandes príncipes do século XIV, mas também se relacionou diretamente com as grandes personagens do seu tempo. Adriano de Utrecht  que viria ser o romano pontífice em 1521 e 22 com o nome de Adriano VI — foi o seu preceptor e Erasmo de Roterdã, conselheiro seu. Fernão de Magalhães, Bartolomé de las Casas, Hernán Cortés e Francisco Pizarro fizeram as suas proezas ao serviço dele. Francisco I da França foi o seu maior rival e Solimão o Magnífico, sultão otomano, o seu antípoda. Ficou diante de Martinho Lutero na Dieta de Worms (1521) e presidiu a atos determinantes para a Reforma na Alemanha: a Dieta de Augsburgo (1530), a Paz de Nuremberga (1532), o Ínterim de Ratisbona (1541), a Guerra de Esmalcalda (1546-47), o Ínterim de Augsburgo (1548).

Capa de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque nationale de France).
Capa de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque nationale de France).

Carlos V manteve relações difíceis com os papas, que ora o apoiavam, ora pendiam para Francisco I, especialmente Clemente VII, que teve de se refugiar no Castelo de Santo Ângelo (Castel Sant'Angelo) durante o saque de Roma em 1527 e acabou coroando o próprio Carlos em 1530 em Bolonha, a derradeira coroação de um imperador pelo pontífice romano. Além disso, sempre propugnou a convocação de um concílio ecumênico com a esperança de reunificar a cristandade ocidental. Mas esse concílio demorou — só foi aberto em dezembro de 1545 pelo legado de Paulo III em Trento — e, enquanto isso, a distância entre católicos e protestantes aumentou de tal modo que a Paz de Augsburgo (setembro de 1555) pareceu um fracasso insuportável ao cansado e enfermo imperador, que nos meses seguintes abdicou dos seus domínios no príncipe Filipe, seu filho, e do Império no arquiduque Fernando, seu irmão, que já era rei dos romanos desde 1531, e se retirou da vida pública no Mosteiro de São Jerônimo de Yuste (Monasterio de San Jerónimo de Yuste), na Estremadura espanhola, onde faleceu em 1558, vítima da malária.

Capa de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).
Capa de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

Essas abdicações aconteceram em Bruxelas e quando se soube do óbito, Filipe II e os seus cortesãos ainda estavam nos Países Baixos, por isso nessa cidade se celebrou o pomposo funeral cujas imagens Hieronymus Cock desenhou, Lucas e Johannes van Doetecum gravaram e Christophe Plantin editou e publicou na forma do dito livro La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... em 1559, por iniciativa e, em parte, às expensas de Pierre de Vernois, arauto do rei. Com efeito, essa obra tem um conteúdo heráldico e vexilológico ímpar, pois os participantes trouxeram escudos e bandeiras não só do Império, mas da empresa do imperador e de todos os seus domínios, a começar pela folha de rosto, que mostra as armas imperiais:

  • De ouro com uma águia de duas cabeças de negro, nimbadas de ouro, e um escudete brocante sobre o peito da águia, cortado:
    • o primeiro partido:
      • o primeiro esquartelado: o primeiro e quarto de vermelho com um castelo de ouro; o segundo e terceiro de prata com um leão de púrpura (que é de Castela e Leão);
      • o segundo partido: o primeiro de ouro com quatro palas de vermelho; o segundo franchado: o primeiro e quarto de ouro com quatro palas de vermelho; o segundo e terceiro de prata com uma águia de negro (que é de Aragão e Aragão-Sicília);
      • embutido em ponta de prata com uma romã de verde, sustida e folhada do mesmo, aberta de vermelho (que é de Granada);
    • o segundo esquartelado:
      • o primeiro de vermelho com uma faixa de prata (que é da Áustria);
      • o segundo de azul, semeado de flores de lis de ouro, com uma bordadura composta de prata e vermelho (que é de Borgonha moderno);
      • o terceiro bandado de ouro e azul com uma bordadura de vermelho (que é de Borgonha antigo);
      • o quarto de negro com um leão de ouro (que é de Brabante);
      • sobre o todo do esquartelado, um escudete partido: o primeiro de ouro com um leão de negro (que é de Flandres); o segundo de prata com uma águia de vermelho (que é do Tirol). (4)

O escudo é timbrado pela coroa imperial, rodeado pelo colar da Ordem do Tosão de Ouro e ladeado pela empresa de Carlos V: as Colunas de Hércules com a divisa Plus oultre (em francês; Plus ultra em latim). Condensa os quatro costados do armígero:

  • As armas dos reinos de Castela e de Leão pela Coroa de Castela, herança de sua avó materna;
  • as armas dos reinos de Aragão e da Sicília pela Coroa de Aragão, herança de seu avô materno;
  • as armas do arquiducado da Áustria e do condado do Tirol pelos domínios austríacos, herança de seu avô paterno;
  • as armas dos ducados da Borgonha e de Brabante e do condado de Flandres pelos domínios borguinhões, herança de sua avó paterna. 

A partir desta postagem, darei os textos em português e as imagens desta obra e tecerei comentários sobre ela.

Notas:
(1) Ainda que tenha reinado por brevíssimo tempo, Filipe o Belo foi, portanto, o primeiro rei espanhol desse nome. A numeração dos reis espanhóis obedece à sequência reis das Astúrias > reis de Leão > reis de Castela > sucessores dos Reis Católicos. É por isso que Carlos de Habsburgo foi o primeiro rei da Espanha desse nome e o quinto imperador e Filipe, seu filho, o segundo rei da Espanha desse nome e o primeiro de Portugal e aquele que hoje reina é o sexto. Outrossim, Fernando o Católico foi o segundo rei de Aragão desse nome, mas o quinto de Castela, daí que os dois Fernandos que depois reinaram se tenham contado como o sexto e o sétimo. A rigor, não havia Espanha como estado-nação até a primeira constituição (1812), mas sim uma união dinástica de vários estados, e ao menos até a restauração da independência portuguesa (1640), por Espanha entendia-se a península toda (a Hispania romana), se bem que rei/rainha da(s) Espanha(s) é uma convenção que se adotou já no tempo dos Reis Católicos.
(2) De fato, quando Carlos I partiu para a eleição imperial em maio de 1520, teve de enfrentar por três anos revoltas civis: na Coroa de Castela contra as comunidades (das cidades e vilas reais) e na Coroa de Aragão contra as germanies ('irmandades' em catalão, isto é, as corporações de ofícios).
(3) É curioso que o príncipe Carlos, que mal sabia falar castelhano quando pisou pela primeira vez na península para ser jurado rei, tenha gerado o ramo espanhol dos Habsburgos e o infante Fernando, que foi criado junto a seu avô homônimo, tenha gerado o ramo austríaco dessa casa. A linha masculina de Dom Carlos perdurou até 1700 e a de Dom Fernando até 1780. Graças ao casamento do primeiro com Isabel de Portugal e do segundo com Ana Jaguelão houve as uniões ibérica (1580-1640) e austro-húngara (até 1918).
(4) Devido ao tamanho da reprodução, abstraí pormenores como os esmaltes diferentes das portas e frestas do castelo e das línguas e unhas dos animais. Foi, afinal, por essa época que começaram a ser fixados.

23/04/22

A HERÁLDICA E A MORTE (III)

Hoje não cabe mais usar da armaria para engalanar a morte, mas certa homenagem heráldica ainda se mostra apropriada e bela.

Apesar de o uso do obiit ter decaído, como, de resto, aconteceu à armaria gentilícia no geral, a comunidade heráldica tem recobrado o seu uso, revigorando-o e expandindo-o além dos seus âmbitos originários. Assim, com os recursos de desenho e publicação que se têm hoje, já não é necessário que se faça uma placa de madeira ou outra matéria para se depositar numa igreja ou capela, mas pode ser um objeto digital para se expor e guardar na Internet. No mundo lusófono, a não interferência do estado na heráldica gentilícia facilita, ademais, essa espécie de homenagem. A seguir, pretendo, precisamente, homenagear minha mãe desenhando um obiit para ela.

Não obstante, para elaborar um obiit, é preciso, de antemão, que o falecido tenha trazido algum brasão. Não é o caso de minha mãe, então lhe vou criar um in memoriam. O seu nome era Maria Lúcia Linhares e, se fosse viva, completaria hoje 62 anos. Os Linhares não têm armas, porque esse sobrenome foi adotado no Brasil por colonos vindos da aldeia desse nome, no município de Paredes de Coura, Portugal, como expus na postagem de 03/02/21. Mas esse sobrenome é o paterno; minha avó, sua mãe, é Madalena Câmara e os Câmaras não só trazem armas, mas estas estão muito bem documentadas, já que foram concedidas a João Gonçalves por Dom Afonso V em 1460. A respeito dessa personagem, a própria carta de brasão, passada aos 4 de julho do dito ano, diz que foi:

cavaleiro, criado do Ifante Dom Hanrique, meu muito prezado e amado tio, há feitos em tempos dos reis, nosso avoo e padre, progenitores nossos, que Deus haja, assi em a dita cidade de Cepta como em Tânger, onde se ele houve mui grandemente em os feitos de armas contra os infiees.

No entanto, omite-se um grande feito seu: a exploração e o povoamento do arquipélago da Madeira, o que lhe valeu a capitania do Funchal desde 1450. Com efeito, foi numa baía da ilha maior que descobriu uma gruta habitada por muitos lobos-marinhos, daí que o lugar tenha ficado conhecido como Câmara de Lobos, hoje uma cidade. O sobrenome, cuja concessão régia a carta de brasão também documenta, foi, pois, tomado desse topônimo e depois abreviado para da Câmara pelos descendentes. Estes mantiveram a capitania e receberam o condado da Calheta por mercê de Dom Sebastião em 1576, até que João Gonçalves da Câmara, oitavo capitão e quarto conde, veio falecer em 1656 sem geração. As armas e os títulos passaram, então, para a Casa de Castelo Melhor.

Na carta de 1460, as armas dos Câmaras são brasonadas assim: "ũu escudo preto e ao pee ũa montanha verde, sobre a qual está fundada e edificada ũa torre de prata antre dous lobos d'ouro". Esse brasonamento pode-se atualizar como segue: de negro com uma torre de prata entre dois lobos trepantes de ouro, tudo assente sobre um monte de verde, firmado em ponta. A elas, sem diferença, somente faz jus o pretendente à chefia da dita Casa de Castelo Melhor. Mas mesmo para usá-las com diferença, não disponho de nenhuma prova genealógica de que minha avó descenda dessa linhagem fidalga. Na verdade, meu bisavô, Miguel Câmara, nunca viveu "à lei da nobreza", como se exigia sob a monarquia para a concessão de brasão, mas sempre foi um humilde lavrador e artesão.

Contudo, como já manifestei várias vezes neste blog, o rigor genealógico na heráldica gentilícia luso-brasileira era mais aparente do que efetivo (no fim das contas, o tal do viver à lei da nobreza era o que se impunha) e não acho que as armas das linhagens portuguesas sejam peças de museu, mas sim parte do patrimônio simbólico do mundo lusófono. Neste sentido, não há mal nem erro em tomar essas armas por inspiração para criar novas. É o que passo a fazer.

Como se trata de uma criação in memoriam, escolho o mais clássico dos métodos heráldicos: as armas falantes. Começo, pois, mudando o esmalte do campo para azul, a cor mariana por excelência, e preservo a torre clara sobre o monte, dado que uma das invocações da ladainha lauretana é "Turris eburnea" ou, em vernáculo, "Torre de marfim". Estas figuras dizem, portanto, Maria. Lúcia (assim como Luzia) vem do latim lux,lucis 'luz', e na armaria portuguesa há uma figura denominada luzeiro. Segundo o Vocabulário heráldico de Luís Stubbs Saldanha Monteiro (1985), é uma estrela de dez raios, a qual ponho no chefe. Faltam os lobos: nas armas dos Câmaras, referem ao lugar que deu origem ao sobrenome. Neste trabalho, troco-os por ramos floridos de caraúba (Tabebuia caraiba), a árvore nativa que nomeia a terra natal de minha mãe, a qual ela muito amava: a cidade de Caraúbas, Rio Grande do Norte, onde está sepultada. Chego, portanto, ao ordenamento seguinte: de azul com uma torre de prata, aberta e iluminada do campo, assente sobre um monte de verde, firmado em ponta, e acompanhada de dois ramos floridos de caraúba de sua cor nos flancos e de um luzeiro de prata em chefe.

Obiit para Maria Lúcia Linhares (1960-2022) com brasão criado in memoriam.
Obiit para Maria Lúcia Linhares (1960-2022) com brasão criado in memoriam.

Enfim, quanto ao obiit, prefiro o modelo belga por três razões: a primeira, porque é o que ainda se pratica; a segunda, porque é praticado por católicos; a terceira, porque é o mais austero. Ao escudo dei forma oval, na esteira de certa tradição portuguesa, que o vincula às senhoras.

21/04/22

A HERÁLDICA E A MORTE (II)

Graças à capacidade de identificar por meio da arte, o brasão foi levado para dentro do próprio lugar do culto divino.

Segundo Laurent Hablot em artigo de 2011, a inversão do escudo em sinal de luto pela morte de um cavaleiro, que mostrei na postagem anterior, foi praticada noutras partes da Europa ocidental. Com efeito, foi na Grã-Bretanha, nos Países Baixos (1) e nas terras de língua alemã que, já durante a Idade Moderna, se usou de outro costume funerário de teor heráldico: a pintura ou escultura das armas do finado sobre uma placa de madeira. Em alemão, essa placa denomina-se Totenschild; em holandês, rouwbord; em francês, obiit; em inglês, hatchment. A palavra alemã quer dizer 'escudo funerário' (literalmente 'escudo de morte') e a holandesa, 'placa funerária'; a francesa é, na verdade, um latinismo: significa faleceu em latim e, por isto, parece conveniente também à nossa língua. Já o termo inglês, tem uma etimologia curiosa.

Totenschild de Jos Schad, falecido aos 26 de abril de 1594. As armas dos Schaden são de ouro com uma águia de negro sem pés, coleirada de uma fita de ouro, esvoaçante para os flancos, aqui bicada do mesmo metal. Conservado no Ulmer Münster, em Ulm, Alemanha (imagem disponível da Wikimedia Commons).
Totenschild de Jos Schad, falecido aos 26 de abril de 1594. As armas dos Schaden são de ouro com uma águia de negro sem pés, coleirada de uma fita de ouro, esvoaçante para os flancos, aqui bicada do mesmo metal. Conservado no Ulmer Münster, em Ulm, Alemanha (imagem disponível da Wikimedia Commons).

Hatchment vem do francês (h)achement, que designava os paquifes e deriva de um cruzamento dos verbos acesmer, pela variante dialetal ache(s)mer, que significava 'adornar', e hacher, que quer dizer 'retalhar' (2). Em inglês, confundiu-se com achievement, também do francês, de achèvement 'acabamento': tanto hatchment como achievement referiam à reprodução completa de certas armas — escudo mais ornamentos externos , mas o primeiro termo acabou especificando o objeto funerário, enquanto o segundo continuou a acepção geral.

Rouwbord de Theodora Antoinette Bodle, falecida aos 15 de dezembro de 1774. As suas armas são esquarteladas: o primeiro e quarto de vermelho com um anjo de sua cor; o segundo e terceiro de azul com três flores de lis de ouro. Conservado no Rijksmuseum (Amsterdã, Holanda), procedente da igreja de Chinsurá, na Índia Holandesa (hoje Chuchura, Índia).
Rouwbord de Theodora Antoinette Bodle, falecida aos 15 de dezembro de 1774. As suas armas são esquarteladas: o primeiro e quarto de vermelho com um anjo de sua cor; o segundo e terceiro de azul com três flores de lis de ouro. Conservado no Rijksmuseum (Amsterdã, Holanda), procedente da igreja de Chinsurá, na Índia Holandesa (hoje Chuchura, Índia).

Além disso, há diferenças notáveis entre as tradições germânicas, neerlandesas e britânicas. Na tradição germânica, a placa é, normalmente, redonda ou circular, o fundo não é necessariamente negro e, como um selo, tem uma borda em que se inscreve um epitáfio. Na neerlandesa e britânica, a placa é quadrada, posta sobre um dos seus vértices (3)(4), de fundo negro, mas aquela é mais singela que esta. Nos Países Baixos, além do brasão, acrescenta-se apenas a data do falecimento, às vezes também a do nascimento, junto aos ângulos do quadro, geralmente em latim (daí a denominação obiit). Na Grã-Bretanha, como é característico da sua heráldica, o conteúdo é mais complexo e regulado, pois além do brasão, o fundo informa o estado conjugal da pessoa ao morrer.

Obiit/rouwbord de Balduíno, rei dos belgas, falecido aos 31 de julho de 1993. As armas reais belgas são de negro com um leão de ouro, armado e lampassado de vermelho. Conservado na Eglise de Saint-Jacques-sur-Coudenberg/Sint-Jacob-op-Koudenbergkerk, Bruxelas, Bélgica (imagem disponível no blog Royalement).
Obiit/rouwbord de Balduíno, rei dos belgas, falecido aos 31 de julho de 1993. As armas reais belgas são de negro com um leão de ouro, armado e lampassado de vermelho. Conservado na Eglise de Saint-Jacques-sur-Coudenberg/Sint-Jacob-op-Koudenbergkerk, Bruxelas, Bélgica (imagem disponível no blog Royalement).

Assim, segundo a Encyclopaedia Britannica, os brasões de solteiros e viúvos são reproduzidos sobre fundo inteiramente negro, ao passo que no caso dos casados, a metade ou parte sob as armas do viúvo ou da viúva, fica branca, daquele à destra, desta à sinistra. Como na Grã-Bretanha é costume o bispo partir as suas armas com as da diocese que governa, o mesmo se aplica: estas ficam sobre fundo branco, à destra. Ademais, na Escócia não é incomum circundar o brasão do finado com as armas de seus progenitores.

Hatchments de membros da família Carey. As armas dos Careys são de ouro com três leopardos de negro, alinhados em pala. Conservados na Holy Ghost Church, Crowcombe, Inglaterra (imagem disponível no site Exploring Building History).
Hatchments de membros da família Carey. As armas dos Careys são de ouro com três leopardos de negro, alinhados em pala. Conservados na Holy Ghost Church, Crowcombe, Inglaterra (imagem disponível no site Exploring Building History).

Comum a todas as tradições é o fato de o obiit ter sido sempre um uso do estamento nobre, cujos membros eram sepultados dentro de igrejas. Esse uso rareou cada vez mais após o fim do Antigo Regime e hoje está praticamente obsoleto, a não ser entre a nobreza belga. Fabricado primeiramente para as exéquias, depois do luto é pendurado na capela familiar e é nas paredes e colunas dos templos que os remanescentes têm-se preservado, ou em museus.

Notas:
(1) Entendam-se aqui Países Baixos e neerlandês em sentido amplo, como a região compreendida pela Holanda, Bélgica e Luxemburgo e o referente a ela.
(2) Hacher também quer dizer 'tracejar', daí que o método de representar os esmaltes por traços e pontos, inventado pelo padre Silvester de Petra Sancta em 1638, se denomine hachures ou, em português, hachuras.
(3) O que afirmo sobre a forma da placa é o que parece padrão em cada tradição, mas, na realidade, não é tão normativo. Observa-se que na Grã-Bretanha e na Bélgica a generalidade dos obiits é quadrada, mas na Holanda e na Alemanha se lhes deram outras formas segundo o gosto do momento. Mais que isso: sob o luteranismo germânico, que abrange a Letônia e a Estônia, e o sueco, que abrange a Finlândia, usou-se apenas o brasão, ricamente esculpido em madeira e policromo, como se pode ver no Germanische Nationalmuseum, em Nürnberg, ou nas catedrais de Riga ou de Kalmar.
(4) Exatamente como o escut caironat catalão, mas diferente de um losango, que tem, por definição, dois ângulos retos e dois obtusos. A lisonja é um losango, mas, por liberdade poética, pode assumir forma quadrada.

19/04/22

A HERÁLDICA E A MORTE (I)

Um brasão identifica o seu portador na vida e conserva a sua memória na morte.

Quando acabei a derradeira série de postagens em 2021, já entrando nos primeiros dias deste ano, pretendia, de fato, repousar um pouco antes de retomar a escrita do blog. Contudo, no dia 20 de janeiro minha mãe testou positivo para Covid-19 e em 25 de março não resistiu mais às complicações decorrentes dessa doença e faleceu. Apesar de ter recebido as três doses da vacina, a fibrose pulmonar que a acometia desde 2018, bem como os remédios para tratá-la, suprimiam a sua imunidade e contra a variante ômicron pessoas nessa condição tiveram poucas chances de evitar o contágio.

Um brasão é um identificador pessoal, transmissível aos descendentes. Daí que desde as origens as armas figurem no selo, mas também sobre o túmulo de quem identificam. Com efeito, a heráldica desempenha uma função relevante na conservação da memória individual e coletiva, como as próprias cartas de brasão o reconhecem: antes de enunciar a concessão, diz-se que o interessado a suplicou "para a memória de seus progenitores se não perder"; depois de concedidas, que ele pode deixá-las "gravadas sobre sua própria sepultura".

Portanto, enquanto a heráldica gentilícia foi habitual, houve aqui e ali e com maior ou menor força a presença do brasão tanto no funeral como durante o luto. Obviamente, quanto mais se remonta ao período clássico da heráldica, maior força. Assim, já Raimundo Lúlio no Romanç d'Evast e Blaquerna (c. 1283) dá um exemplum sobre o sepultamento de um cavaleiro:

Murí un cavaller en aquella ciutat. E con lo portaven soterrar a l'esgleia, anava sa muller e sos parents ab lo cors; e eren vestits de negre e ploraven molt fortment e faïen gran dol, tirants llurs cabells e esquinçants llurs cares e llurs vestiments. En un gran cavall guarnit cavalcava un escuder armat, qui cridava e plorava la mort de son senyor e les armes a envers portava. Lo canonge de persecució s'encontrà ab lo cors e viu, enfre aquells qui ploraven, deshonrada la volentat de nostre Senyor Déus, qui volia que·l cavaller fos passat d'aquest segle. A treballar covenc lo canonge per justícia e recorrec al canonge de pobretat e al canonge de plors e pregà'ls que li ajudassen a salvar l'honor qui covenia ésser feta a la volentat de Déu. Tots tres los canonges anaren al príncep e al bisbe e preposaren estes paraules devant lo príncep e·l bisbe:
— Senyors, en vosaltres dos és representada la divinal senyoria — dix lo canonge de persecució —. Deman-vos que·m sia jutjat si aquells qui ploren per lo cavaller que Déus ha volgut auciure fan deshonor a la volentat de Déu. E si és jutjat per dret que ells ofenen Déu, deman-ne aital satisfació: que d'aquí en avant no vaja ab lo cors nulla persona qui plor ni qui do semblant de tristícia de ço que vol la volentat divinal ni per llurs plors lo divinal ofici de la missa no haja null embargament.
Aprés parlà lo canonge de plors, dient que plorar és per haver contricció e devoció:
— On, con aquells qui seguesquen lo cors ploren per vanaglòria e per hipocresia, e contra la volentat de Déu sien llurs plors, per açò me clam dels qui fan deshonor a l'ufici qui m'és comenat, en quant no ploren per la raó per la qual hom deja plorar.
Lo canonge de pobretat parlà enaprés e dix que aquells diners qui eren despeses en les vestedures negres eren robats als pobres e a l'ànima del defunt e per açò volia'ls cobrar; e que d'aquí en avant ço que deurien despendre en les vestedures negres fos donat als pobres e que null home, per la mort d'altre, no fos vestit de negre. Lo príncep e·l bisbe hagren consell ab los pròmens de la ciutat sobre les paraules que llur eren dites per los tres canonges e volgren que fos feta constitució segons la volentat dels canonges en aquella ciutat per totstemps, sobre les coses demunt dites. (1)

O exemplum (eixempro ou enxempro no português antigo) era um gênero literário que visava ao ensinamento de um preceito moral por meio de um conto. No citado, o autor não pretendeu condenar de todo os ritos sociais em torno da morte, mas admoestar os costumes que beiravam o espetáculo teatral e tinham, sabidamente, origens pagãs, como o atesta o sínodo de Juan Cabeza de Vaca, bispo de Burgos, em 1412:

[...] reprovamos el malo e aborrescido uso que cuando alguno muere, los homes e las mujeres van por los barrios e por las plaças aullando e dando bozes espantables en las iglesias e otros lugares, tañiendo bozinas e faziendo aullar los perros, e rascando las caras e mesando las crines e los cabellos de las cabeças, e quebrando escudos e faziendo otras cosas que no convienen. E esto fazían los gentiles, no creyendo la dicha resurreción. (2)

Apesar da oposição eclesiástica, a quebra dos escudos (quebrantamiento de escudos em espanhol e córrer les armes em catalão) foi observada nos ritos funerários dos reis portugueses até a monarquia constitucional. Consta do chamado Livro carmesim, de regimentos dos vereadores e oficiais de Lisboa, promulgado por Dom Manuel I em 1503, e foi executada pela derradeira vez aquando da morte de Dom Pedro V em 1861:

CAPÍTOLO DO PRANTO
Item. No dia seguinte, porque nom haverá tempo pera se todo fazer em um dia, logo naquela noite tornarão a dobrar tôdolos sinos, como da primeira, até o outro dia, depois de missa. E os vereadores e fidalgos-cavaleiros juntos na Câmara, todos com seu doo. E sairão fora com seu alférez a cavalo, com ũu pendom preto, metido em ũa haste preta, levado ao pescoço, derribado por detrás, que lhe vá arrastando pelo chão ũu pedaço. E o cavalo, cubertado de preto, que rocee pelo chão. E diante do alférez irão os juízes do crime e ũu dos do cível com três escudos, todos pretos, postos na cabeça a pee, indo os do crime diante e o do cível detrás. E os vereadores e precurador com suas varas pretas nas mãos a pee e tôdolos outros fidalgos-cavaleiros, oficiaes e pessoas e póvoo atrás eles. E logo à porta da See, o juiz do cível dos degraos da See derribará seu escudo da cabeça nos degraos e ali se quebrará e farão seu pranto. E dali abalarão e no meio da Rua Nova estará ũu banco preto e ali subirá ũu dos juízes do crime com outro escudo e derribará da cabeça e o quebrará no banco e farão seu pranto sobre ele pela dita guisa. E dali abalarão com seu alférez e pendões pera o Ressio, onde estará outro banco preto e quebrarão o outro escudo com seu pranto pela dita maneira. E se tornarão à Câmara com seu alférez e pendão e dali seirão pera a See ouvir sua missa de réquiem por sua alma, com toda sua solenidade a dita missa e outras rezadas quantas por ele se aquele dia poderem dizer. E por tôdalas outras igrejas e moesteiros da dita cidade. E desta maneira farão suas vésporas, como a missa do dia, e tôdolos sinos dobrados como dito é. E do enterramento se nom fala porque se fará naquele tempo, dia, hora que for ordenado e assi no lugar ou levado à Batalha etc.

Portanto, pode-se concluir que as imagens a seguir representam uma típica demonstração de luto pelo passamento de um cavaleiro na península Ibérica:

Sepulcro de Pere de Queralt, senhor de Santa Coloma, falecido em 1348. Foi construído por encomenda de seu filho, Dalmau, em 1370 e é conservado na igreja de Santa Maria de Bell-lloc, em Santa Coloma de Queralt (Espanha) (imagem disponível no blog Anem a pams).
Sepulcro de Pere de Queralt, senhor de Santa Coloma, falecido em 1348. Foi construído por encomenda de seu filho, Dalmau, em 1370 e é conservado na igreja de Santa Maria de Bell-lloc, em Santa Coloma de Queralt, Espanha (imagem disponível no blog Anem a pams).

Detalhe do mesmo sepulcro. As armas da Casa de Queralt veem-se no escudo invertido e no pendão arrastado pelo cavaleiro: de vermelho com um leopardo aleonado de ouro, coroado do mesmo (imagem disponível no blog Anem a pams).
Detalhe do mesmo sepulcro. As armas dos Queralts veem-se no escudo invertido e no pendão arrastado pelo cavaleiro: de vermelho com um leopardo aleonado de ouro, coroado do mesmo (imagem disponível no blog Anem a pams).

Notas:
(1) "Morreu um cavaleiro naquela cidade. E quando o levavam para enterrar na igreja, sua mulher e seus parentes iam com o corpo e estavam vestidos de preto e choravam muito fortemente e faziam grande pranto, puxando os seus cabelos e rasgando as suas caras e as suas vestes. Em um grande cavalo guarnecido, cavalgava um escudeiro armado, que gritava e chorava a morte de seu senhor e as armas ao revés trazia. O cônego de perseguição encontrou-se com o corpo e viu, entre aqueles que choravam, desonrada a vontade de nosso Senhor Deus, quem queria que o cavaleiro passasse deste século. A trabalhar por justiça conveio ao cônego e recorreu ao cônego de pobreza e ao cônego de prantos e rogou-lhes que o ajudassem a salvar a honra que convinha ser feita à vontade de Deus. Todos os três cônegos foram ao príncipe e ao bispo e propuseram estas palavras ante o príncipe e o bispo: — Senhores, em vós dois está representado o divino senhorio — diz o cônego de perseguição —. Peço-vos que me seja julgado se aqueles que choram pelo cavaleiro que Deus quis matar fazem desonra à vontade de Deus. E se for julgado por direito que eles ofendem a Deus, peço tal satisfação: que daqui em diante não vá com o corpo nenhuma pessoa que chore nem que faça cara de tristeza do que quer a vontade divina nem pelos seus prantos o divino ofício da missa tenha estorvo algum. Depois falou o cônego de prantos, dizendo que chorar é para ter contrição e devoção: — Daí que, quando aqueles que seguem o corpo choram por vanglória e por hipocrisia, e contra a vontade de Deus sejam os seus prantos, por isso queixo-me de quem faz desonra ao ofício que me é encomendado, porquanto não choram pela razão pela qual se deva chorar. O cônego de pobreza falou depois e disse que aquele dinheiro que era despendido nas vestes pretas era roubado dos pobres e da alma do defunto e, por isso, queria cobrá-lo, e que daí em diante o que deveriam despender nas vestes pretas fosse doado aos pobres e que nenhum homem, pela morte de outro, se vestisse de preto. O príncipe e o bispo tomaram conselho aos homens-bons da cidade sobre as palavras que lhes eram ditas pelos três cônegos e quiseram que fosse feita uma constituição segundo a vontade dos cônegos naquela cidade para sempre, sobre as coisas acima ditas." (tradução minha)
(2) "Reprovamos o mau e detestado uso de que quando algum morre, os homens e as mulheres vão pelos bairros e pelas praças uivando e dando berros assustadores nas igrejas e noutros lugares, tocando buzinas e fazendo os cães uivarem, e arranhando as caras puxando as crinas e os cabelos das cabeças, e quebrando escudos e fazendo outras coisas que não convêm. E isto faziam os gentis, não crendo na dita ressurreição." (tradução minha)