05/07/22

AS QUINTILHAS HERÁLDICAS DE SÁ DE MENESES (X)

Armas dos Pinas, Brandões, Cotrins e epílogo.

De João Rodríguez de Sá, decrarando alguns escudos d'armas dalgũas linhagens de Portugal que sabia donde vinham.

Armas dos Pinas: De vermelho com uma banda de ouro, carregada de um leopardo de azul, posto no sentido da banda, entre dois pinheiros de verde, frutados de ouro e arrancados de prata.
Armas dos Pinas: De vermelho com uma banda de ouro, carregada de um leopardo de azul, posto no sentido da banda, entre dois pinheiros de verde, frutados de ouro e arrancados de prata.

Pina

Em campo vermelho estão
dous mui floridos pinheiros
e em banda azul lião
d'ouro rompente, que são
nobres armas d'estrangeiros.
De peno Pina declina,
esta linhagem mui dina
de grão louvor e pregão
veio cá ter d'Aragão
e daí vêm os de Pina.

É improbabilíssimo que Pina venha de peno ('cartaginês', do latim pœnus), mas a única coisa que parece certa a respeito dessa linhagem é a proveniência de Aragão, onde há uma vila chamada Pina de Ebro.

Na verdade, há duas linhagens armoriadas desse nome: uma do norte, cujo solar é a Guarda, traz as armas brasonadas por Sá de Meneses, se bem que este trocou os esmaltes da banda e do leopardo, pondo cor sobre cor, o que dá armas falsas; outra do sul, cuja solar é Évora, traz as armas que se veem à folha 107v do Livro do Armeiro-Mor: de vermelho com uma torre de prata, aberta, iluminada e lavrada de negro, assente num penhasco ao natural, firmado em ponta. Ambos os brasões contêm figuras falantes: no dos Pinas da Guarda, os pinheiros; no dos Pinas de Évora, a pena (isto é, o penhasco).

Ressalvo que os armoriais brasonam a figura que carrega a banda como um leão, mas tanto o Armorial português (1920 e 1923), de Guilherme Luís dos Santos Ferreira, como o Armorial lusitano (1961), de Afonso Eduardo Martins Zúquete, mostram um leopardo em banda, como, de fato, demanda a acomodação a uma peça longa.

Armas dos Brandões: De azul com cinco brandões de ouro, acesos ao natural.
Armas dos Brandões: De azul com cinco brandões de ouro, acesos ao natural.

Brandão

Cinco brandões nom em cruz
em campo vermelho jazem
e co resplandor que fazem
dão claridade e dão luz
de nobreza òs que os trazem.
De terras e possissões
dos cavaleiros Brandões
achei antiga memória
em mui verdadeira estória
d'antigas inquirições.

Sá de Meneses refere às Inquirições de 1258, nas quais se diz que o Mosteiro de Lordelo, no Douro Litoral, "est militum Brandonum", ou seja, "é dos cavaleiros Brandões". Não obstante, o solar da linhagem deve ser Paços de Brandão, na Beira Litoral.

Brandão deriva provavelmente de um antropônimo antigo, da mesma raiz germânica (cf. inglês brand 'tição' ou alemão Brand 'fogo') que deu o substantivo comum brandão, cuja figura faz as armas falantes desta linhagem, não em campo de vermelho, como diz o poeta, mas de azul.

Armas dos Cotrins: Xadrezado de ouro e prata de seis peças em faixa e sete em pala.
Armas dos Cotrins: Xadrezado de ouro e prata de seis peças em faixa e sete em pala.

Cotrim

De que os mais fazem tesouro
um escudo escaques são,
onde xaques nom darão,
se nom for em prata ou ouro,
dama, roques nem pião
co' este, que lugar tome
a geração e se assome
dos Cotrins, rezão seria
que maior foi na valia
ca a moeda de seu nome.

O cotrim foi uma moeda que se cunhou sob Dom Afonso V. O termo vem do italiano quattrino, pelo espanhol cuatrín, e deve-se ao valor originário da espécie: quatro dinheiros. Isso sugere fortemente que o sobrenome vem de uma alcunha, ainda que a literatura genealógica tenha preferido buscar-lhe uma origem inglesa.

Observe-se que o poeta brasona as armas primitivas dos Cotrins, tal como se veem à folha 127v do Livro do Armeiro-Mor, já que Antônio Godinho, no Livro da nobreza e perfeição das armas (f. 34v), as alterou para um xadrezado de ouro e azul, corrigindo a combinação de metal com metal.

Linhagens de grande preço
outras tão boas e tais
ficam por nom saber mais,
mas quem seguir meu começo
se as souber, dirá quais.
Dalgũas que nesta idade,
em valia e em bondade
são vistas pervalecer
com rezão se deve crer
que tal foi antiguidade.

Fim

E nom por defeito seu,
que é sabido que nom têm,
cuide que ficam alguém,
mas antes que polo meu,
que as nom sabia bem,
porque nom quis porventura,
dando prova mal segura,
alguém do que seu nom é
tirar a outros a fé
do que vi per escritura.

Na postagem de 15/06, eu disse que é difícil discernir o critério de seleção empregado por Sá de Meneses nas suas quintilhas sobre 47 brasões gentilícios portugueses. Depois de reeditar o texto e interpretá-lo, afigura-me que, além da sequência dos armoriais manuelinos, o poeta procurou escolher linhagens que lhe fornecessem matéria épica. Com efeito, cabe lembrar que essa sequência combina a proximidade à casa real e a antiguidade, de modo que quanto mais perto do início da sequência, maior não só a nobreza da linhagem, mas também o conhecimento sobre a sua origem, tanto mítica como histórica. Por conseguinte, quanto mais se avança na sequência, menor o suporte documental, daí a seleção de personagens contemporâneas como Febo Moniz e Vasco da Gama, de episódios como as mortes de Pero Coelho e Diogo Gonçalves de Urrô, de lendas como as de Nuno Gonçalves de Faria, Fernão Rodrigues Pacheco e Estêvão Anes Boto.

Seja como for, o epílogo corrobora o ideário heráldico-nobiliário da Idade Moderna: "Dalgũas que nesta idade, | em valia e em bondade | são vistas pervalecer | com rezão se deve crer | que tal foi antiguidade". Trocando em miúdos, a noção de antiguidade parecia tão fundamental que se alguém ascendia socialmente era porque vinha de uma linhagem antiga. Isso explica a fixação da literatura genealógica em remontar a ascendência além da primeira atestação do sobrenome, por vezes muito além, sem atestação alguma. Isso explica, ademais, o esforço em entroncar linhagens cujo parentesco não está comprovado, mas se chamam pelo mesmo sobrenome.

Segue-se que a heráldica gentilícia portuguesa, tal como se configurou do regimento manuelino em diante, depois também a brasileira, funcionaram com base mais na onomástica do que na genealogia. Cessada a expansão ultramarina, rarearam as oportunidades de façanhas, que justificavam as mercês de armas novas, como as dos Botos ou as dos Câmaras, daí que qualquer um de sobrenome Pereira ou Silva que vivesse "à lei da nobreza" alegava ser fidalgo de linhagem e solar conhecido, condição mais prestigiosa que a nobilitação.

03/07/22

AS QUINTILHAS HERÁLDICAS DE SÁ DE MENESES (IX)

Armas dos Coelhos, Gamas de Vasco da Gama, Valentes, Botos e Câmaras.

De João Rodríguez de Sá, decrarando alguns escudos d'armas dalgũas linhagens de Portugal que sabia donde vinham.

Armas dos Coelhos: De ouro com um leão de púrpura, armado e lampassado de vermelho, carregado de três faixas veiradas de azul e ouro, e uma bordadura de azul, carregada de cinco coelhos de prata, malhados de negro.
Armas dos Coelhos: De ouro com um leão de púrpura, armado e lampassado de vermelho, carregado de três faixas veiradas de azul e ouro, e uma bordadura de azul, carregada de cinco coelhos de prata, malhados de negro.

Coelhos

Em campo d'ouro um lião
de mui brava acatadura,
coelhos por orladura:
dos Coelhos se dirão
armas, sem outra mistura.
Coelhos tal perfeição
d'esforço e d'opinião
sostêm no que começarem
que coração lhes tirarem
nom lhes tira o coração.

Coelho era originariamente uma alcunha, do substantivo comum coelho. Os Coelhos desta casa descendem do fecundo trovador João Soares, que serviu ao infante Dom Fernando de Serpa e depois a Dom Afonso III. Este lhe doou o senhorio da vila de Souto, no Minho, que ficou na posse da linhagem até a quarta geração, quando Dom Pedro I confiscou os bens de Pero Coelho por causa do seu envolvimento na morte de Dona Inês de Castro. Narra Fernão Lopes no capítulo 31 da sua Crônica de Dom Pedro I que, tendo Pero Coelho sido trazido de Castela para Portugal, o rei mandou matá-lo arrancando-se-lhe o coração do peito.

Armas dos Gamas de Vasco da Gama: Xadrezado de ouro e vermelho de três peças em faixa e cinco em pala, as de vermelho carregadas de duas faixas de prata, com um escudete de Portugal antigo no ponto de honra.
Armas dos Gamas de Vasco da Gama: Xadrezado de ouro e vermelho de três peças em faixa e cinco em pala, as de vermelho carregadas de duas faixas de prata, com um escudete de Portugal antigo no ponto de honra.

Dom Vasco da Gama

A quem lhe achou novo mundo,
nova terra e novo clima
deu el-Rei em grande estima
sobre as da Gama em fundo
as suas armas em cima.
E enquanto dura a fama,
que a Índia de si derrama,
sempre irá o nome diante
do seu primeiro almirante:
este é Dom Vasco da Gama.

Vasco da Gama é uma personagem da história mundial, o que dispensa qualquer resenha. No plano heráldico, desconhece-se a carta pela qual Dom Manuel I lhe concedeu o acrescentamento honroso de um escudete de Portugal antigo às armas dos Gamas, mas se presume que foi passada em 1500, quando lhe foram dados o título de dom e o almirantado da Índia.

Armas dos Valentes: De vermelho com um leão de ouro, armado e lampassado de azul, carregado de duas faixas de azul, furadas de seis peças.
Armas dos Valentes: De vermelho com um leão de ouro, armado e lampassado de azul, carregado de duas faixas do mesmo, furadas de seis peças.

Valente

No bravo lião rompente,
per três lugares faixado,
se mostra bem amostrado
sangue Ovéquez e valente,
co nome mui concertado.
Ambos saíram da vide
do bom que morreu na lide
d'Ourique, diante el-Rei,
de louvor, segundo lei,
nom menos dino que o Cide.

Valente era originariamente uma alcunha, do adjetivo valente. Os Valentes desta casa descendem de Afonso Peres, que viveu no tempo de Dom Dinis. Seu filho, Vicente Afonso, instituiu o morgadio da Póvoa, na Estremadura, em 1336, que ficou na posse da linhagem até a quarta geração. Não obstante, a literatura genealógica remonta a ascendência de Afonso Peres Valente a Gonçalo Oveques, refundador do Mosteiro de Cete, no Douro Litoral, cujo filho, Diogo Gonçalves de Urrô, tombou na Batalha de Ourique.

Oveques é o patronímico do antropônimo Oveco. Na edição princeps do Cancioneiro geral, está escrito ocquez, mas talvez o editor se tenha equivocado ao ler um nome que se tornara estranho. Preferi escrever Ovéquez, pois fazendo uma sinalefa em sangue Ovéquez, o verso fica regularmente heptassílabo.

Armas dos Botos: Franchado, o primeiro e quarto de ouro com um cabeça de mouro de sua cor, fotada de prata; o segundo e terceiro de vermelho com uma torre de prata, aberta e iluminada de negro.
Armas dos Botos: Franchado, o primeiro e quarto de ouro com um cabeça de mouro de sua cor, fotada de prata; o segundo e terceiro de vermelho com uma torre de prata, aberta e iluminada de negro.

Botos

Duas cabeças cortadas,
postas em campo dourado,
de mouros e em corado
duas torres assentadas,
onde o feito foi passado.
Armas que Botos ganharam
são por mouros que mataram
naquelas torres em Ceita,
quando da danada seita
portugueses a livraram.

Estas armas foram concedidas por Dom Afonso V a Martim Esteves Boto em 1462,

por os muitos serviços e muito de prezar que el-Rei Dom João, meu avoo, que Deus haja, dele recebeu em a tomada da nossa cidade de Cepta e em outras cousas, e assi a el-Rei e meu senhor e padre, cuja alma Deus tẽe, em a ida e cerco de Tânger, onde por serviço de Deus e por conservaçom de seu bõo nome e fama sosteve atá o derradeiro recolhimento todo o temor e trabalhos que se no dito cerco seguiram, como por muitos outros que nós dele recebidos teemos em paz e em guerra per sua pessoa e com armas, cavalos e homens, com grande despesa sua, principalmente na filhada da nossa vila d'Alcácer, em África, onde per nós foi feito cavaleiro. (carta de brasão citada por Anselmo Braamcamp Freire na Armaria portuguesa, 1908)

Esse Martim Esteves foi a Ceuta com seu pai, Estêvão Anes Boto, para quem se criou a lenda de que durante o assalto da cidade subiu numa torre, cortou as cabeças de dois mouros que a defendiam e as mostrou aos seus companheiros, perguntando-lhes onde as botava, daí a alcunha de Boto. É lenda, pois a atestação do sobrenome é mais antiga que o episódio histórico.

Armas dos Câmaras: De negro com uma torre de prata entre dois lobos trepantes de ouro, tudo assente sobre um monte de verde, firmado em ponta.
Armas dos Câmaras: De negro com uma torre de prata entre dois lobos trepantes de ouro, tudo assente sobre um monte de verde, firmado em ponta.

Câmara

Nũa torre de menagem
dous lobos querem trepar
em campo cor dum pumar,
que são armas da linhagem
mui dina de nomear.
Câmara é seu apelido,
em Portugal mui sabido
e na ilha da Madeira,
que sua vida primeira
destes a tem recebido.

Estas armas foram concedidas em 1460 por Dom Afonso V a João Gonçalves Zarco, criado do infante Dom Henrique, pelos "muitos leaes serviços que [...] há feitos em tempos dos reis, nosso avoo e padre, progenitores nossos, que Deus haja, assi em a dita cidade de Cepta como em Tânger, onde se ele houve mui grandemente em os feitos de armas contra os infiees" (carta de brasão citada por Anselmo Braamcamp Freire na Armaria portuguesa, 1908).

No entanto, a carta de brasão omite um grande feito seu: a exploração e o povoamento do arquipélago da Madeira, o que lhe valeu a capitania do Funchal desde 1450. Com efeito, foi numa baía da ilha maior que descobriu uma gruta habitada por muitos lobos-marinhos, daí que o lugar tenha ficado conhecido como Câmara de Lobos, hoje uma cidade. O sobrenome, cuja concessão régia a carta de brasão também documenta, foi, pois, tomado desse topônimo e depois abreviado para da Câmara pelos descendentes. Estes mantiveram a capitania até a sétima geração.

Curiosamente, Sá de Meneses brasona o campo da "cor dum pumar", o que sugere o verde que se vê à folha 41r do Livro da nobreza e perfeição das armas, em contraposição à própria carta de brasão de 1460, que diz "ũu escudo preto e ao pee ũa montanha verde, sobre a qual está fundada e edificada ũa torre de prata antre dous lobos d'ouro".

01/07/22

AS QUINTILHAS HERÁLDICAS DE SÁ DE MENESES (VIII)

Armas dos Falcões, Goios, Pedrosas, Farias e Pachecos.

De João Rodríguez de Sá, decrarando alguns escudos d'armas dalgũas linhagens de Portugal que sabia donde vinham.

Armas dos Falcões: De azul com três bordões de prata, ferrados de vermelho, alinhados em faixa.
Armas dos Falcões: De azul com três bordões de prata, ferrados de vermelho, alinhados em faixa.

Falcão

Os que mostrarem bordões
num escudo de romeiros
são mui nobres estrangeiros
d'apelido de Falcões,
leais e bons cavaleiros.
Co duque mui afamado,
d'Alencrasto nomeado,
reinando el-Rei Dom João,
veio Mossém Jão Falcão,
um cavaleiro estremado.

"Mossém Jão Falcão" era Sir John Falconer. Veio da Inglaterra para Portugal no séquito de João de Gand, duque de Lancaster, cuja filha casou com Dom João I em 1387. Ele mesmo casou com uma fidalga portuguesa e teve vasta prole, que deu continuidade ao seu sobrenome, talvez originariamente uma alcunha (falconer quer dizer 'falcoeiro'), adaptado como Falcão.

A propósito, Mossém era uma forma de tratamento aragonesa (Mosén em espanhol, do catalão Mossèn), portanto uma tentativa de arranjar um equivalente hispânico para Sir. 

Armas dos Goios: De prata com três mosquetas de negro e um chefe partido, o primeiro de vermelho com um castelo de ouro, lavrado de negro, aberto e iluminado de azul; o segundo de ouro com quatro palas de vermelho.
Armas dos Goios: De prata com três mosquetas de negro e um chefe partido, o primeiro de vermelho com um castelo de ouro, lavrado de negro, aberto e iluminado de azul (Castela); o segundo de ouro com quatro palas de vermelho (Aragão).

Goios

Sobre prata, d'ouro fino
com as barras d'Aragão,
arminhos tão bem estão
e mais um castelo em pino.
Armas de Dom Anião,
de Dom Anião d'Estrada,
a quem primeiro foi dada
a vila de Góis d'herdade,
que a sua postridade
deixou dela anomeada.

Goios é uma aldeia de Barcelos, no Minho, e Góis é uma vila da Beira Litoral. Ambos os topônimos vêm do gótico gauja 'habitante de uma região'. Esta é a única relação entre esses dois lugares e sobrenomes, pois a literatura genealógica diz que os Goios descendem de Nuno Martins, filho de Martim Vasques, senhor de Góis.

O senhorio de Góis foi doado em 1113 pela condessa Dona Teresa a Anaia Vestrares, que viera das Astúrias para Portugal. É o Dom Anião do poema e foi antepassado do dito Martim Vasques. A este não sucedeu Nuno Martins, mas Estêvão Vasques, cuja neta, Mécia Vasques, casou com Gomes Martins de Lemos. Apesar das quebras de varonia, os senhores e as senhoras de Góis conservaram esse sobrenome até a neta da dita Mécia Vasques, Beatriz, que casou com Diogo da Silveira.

Esses dados genealógicos supõem simplesmente que o ramo de Nuno Martins de Góis se distinguiu do tronco da linhagem alterando o sobrenome e assumindo armas novas. Mas a própria explicação do chefe partido de Castela e Aragão começa por abalar essa suposição. Com efeito, diz-se que Martim Vasques de Góis combateu por Pedro I de Castela contra Pedro o Cerimonioso, rei de Aragão, a chamada Guerra dos Dois Pedros (1356-69). Entende-se, então, que as armas reais castelhanas consistem num acrescentamento honroso, isto é, uma recompensa do rei pelo serviço que se lhe prestou. Mas, e as armas reais aragonesas? Não tem sentido receber uma mercê heráldica de um inimigo nem se apropriar das suas armas.

Ao avançar da desconfiança à análise dos dados heráldicos, tudo desmorona. Ora, as armas dos Góis — de azul com seis cadernas de crescentes de prata — apareceram sob o senhorio de Fernão Gomes, filho de Gomes Martins de Lemos e Mécia Vasques de Góis, provavelmente uma quebra das armas dos Lemos. Antes, consta que Estêvão Vasques, seu bisavô, trazia um escudo esquartelado: no primeiro, um castelo e nele uma águia pousada; no segundo, três mosquetas; no terceiro, quatro palas; no quarto, um leão.

Como interpretar o conjunto dos dados? Parece que as armas primitivas dos Góis eram as três mosquetas de negro em campo de prata, as quais se combinaram com outras de mais difícil identificação, quiçá de linhagens maternas, por vezes muito mal documentadas. Quando Dom Manuel I ordenou a pesquisa das armas gentilícias nas sepulturas antes da feitura do Livro do Armeiro-Mor, acharam-se, pois, dois brasões dos Góis. Eu conjecturo que, aproveitando-se da embaixada de Martim Vasques de Góis junto a Afonso XI de Castela em 1336 para concertar o casamento do infante Dom Pedro com Constança Manuel, inventou-se uma participação sua na Guerra dos Dois Pedros, reordenando o castelo e as palas como um chefe partido de Castela e Aragão e trocou-se o nome da linhagem por outro muito semelhante. Tomaram-se, então, as armas dos Góis de Fernão Gomes como as verdadeiras da casa desse nome. Esta interpretação é confirmada pelas cartas de brasão posteriores: houve muitas concessões das armas dos Góis, mas nenhuma daquelas dos Goios.

Armas dos Pedrosas: De ouro com cinco pedras de sua cor e uma águia de negro, agarrando a pedra do centro.
Armas dos Pedrosas: De ouro com cinco pedras de sua cor e uma águia de negro, agarrando a pedra do centro.

Pedrosa

Ũa águia temorosa,
de quatro pedras cercada,
no meo d'outra assentada,
por armas òs de Pedrosa
antigamente foi dada.
Vieram de Ingraterra
com tenção que nunca erra:
despender vida e tesouros
em ajudar contra mouros
os portugueses na guerra.

Pedrosa é um topônimo frequente em Portugal e na Galiza. Indica um lugar pedregoso. A literatura genealógica aponta a Galiza como a origem de uma linhagem desse nome que começou com Diogo de Pedrosa, mordomo-mor da Excelente Senhora. Portanto, nem veio da Inglaterra nem os seus descendentes serviram na guerra, pois que exerceram ofícios cortesãos e concelhios.

Armas dos Farias: De vermelho com uma torre de prata, aberta e iluminada de negro, acompanhada de cinco flores de lis de prata, três em chefe e uma em cada flanco.
Armas dos Farias: De vermelho com uma torre de prata, aberta e iluminada de negro, acompanhada de cinco flores de lis de prata, três em chefe e uma em cada flanco.

Faria

Ò pé dum castelo erguido,
por se nom ver abaixado,
jaz um corpo espedaçado
com muitas partes partido,
por nom ser dũa apartado.
Faria é que nom faria
per onde a cavalaria
se perdesse erro nem tacha,
que desta maneira se acha
por guardar a que devia.

Faria é uma aldeia de Barcelos, no Minho. Pessoas desse sobrenome aparecem em documentos desde o início da nacionalidade. Não obstante, a literatura atribui estas armas à linhagem de Nuno Gonçalves, alcaide do castelo de Faria durante a Segunda Guerra Fernandina (1372-73).

Narra Fernão Lopes nos capítulos 78 e 79 da sua Crônica de Dom Fernando que, tendo Pedro Ruiz Sarmiento, adiantado-mor da Galiza, invadido Portugal pelo Minho, o dito alcaide de Faria foi feito refém. Convenceu, então, o adiantado de que se o levassem perante Gonçalo Nunes, seu filho, este se comoveria a entregar o castelo, que ficara sob a sua guarda, em troca da vida do pai. No encontro, o alcaide mandou-lhe, porém, que não entregasse o castelo senão ao rei Dom Fernando, "sob pena da sua beençom". Percebendo-se traídos, os castelhanos mataram, então, Nuno Gonçalves diante de seu filho.

Gonçalo Nunes resistiu ao cerco e, apesar de se ter feito clérigo alguns anos depois, tanto ele como seus irmãos tiveram descendência que continuou o sobrenome.

Armas dos Pachecos: De ouro com duas caldeiras de negro, uma sobre a outra, cada uma carregada de três faixas veiradas de ouro e vermelho, da qual saem quatro cabeças de serpente de negro, duas voltadas para dentro e duas para fora.
Armas dos Pachecos: De ouro com duas caldeiras de negro, uma sobre a outra, cada uma carregada de três faixas veiradas de ouro e vermelho, da qual saem quatro cabeças de serpente de negro, duas voltadas para dentro e duas para fora.

Pachecos

Em campo d'ouro assentadas,
caldeiras d'ouro luzente
com cabeças de serpente
nas ás e faixas veiradas
são armas d'antiga gente:
Pachecos, de tal ventura
em soster e ter segura
sua nobreza e crescendo,
que em tempo de César sendo,
ainda lhe agora dura.

Narra Rui de Pina no capítulo 10 da sua Crônica de Dom Sancho II que, estando já esse rei desterrado em Castela, Fernão Rodrigues permaneceu-lhe leal, negando entregar o castelo de Celorico da Beira, do qual era o alcaide, ao conde de Bolonha. Este resolveu, então, impor um cerco. Quando a fome estava prestes a forçar a rendição, Fernão Rodrigues rogou a misericórdia divina. No instante, uma águia que agarrara uma truta no rio Mondego alçou voo e deixou-a cair dentro do castelo. O alcaide mandou servi-la ao conde com o melhor pão que pôde achar e dizer-lhe que por desabastecimento os defensores não entregariam a praça. Crendo que o cerco se prolongaria demais, o conde levantou-o e foi-se para Coimbra.

É provável que a alcunha pacheco contenha a mesma raiz do verbo empachar 'empanturrar' e é possível que as caldeiras das armas (que são mesmo de ouro com as faixas veiradas de vermelho e ouro no Livro do Armeiro-Mor e no Livro da nobreza e perfeição das armas) refiram a essa alcunha. Seja como for, foi assumida como sobrenome pelos descendentes de Fernão Rodrigues, alcaides-mores de Celorico da Beira e também senhores de Ferreira de Aves, na mesma região, até a quarta geração.

Com efeito, em 1398 João Fernandes Pacheco passou a Castela para apoiar a pretensão do infante Dom Dinis, filho de Dom Pedro I e de Dona Inês de Castro, à coroa portuguesa. Após a morte deste, pôs-se ao serviço de Henrique III, quem lhe doou o senhorio de Belmonte, na Mancha. De sua filha, María, descende a casa castelhana de Pacheco.

Que a linhagem dos Pachecos remonte a um tal Lúcio Júnio Pacieco, que serviu a Júlio César, é mera fantasia genealógica.