03/01/22

OS BRASÕES DO BRASIL COLONIAL: VILA BELA DA SANTÍSSIMA TRINDADE

As curiosas armas de Vila Bela da Santíssima Trindade encerram o pequenino rol da heráldica municipal brasileira sob o domínio português.

Vila Bela da Santíssima Trindade é uma cidadezinha de pouco mais de 16 mil habitantes a uns 30 quilômetros da fronteira com a Bolívia, no estado de Mato Grosso. Das 187 vilas fundadas durante o período colonial, por que é que uma povoação até hoje diminuta e remota foi uma das duas que tiveram brasão?

Desde o descobrimento de ouro no rio Cuiabá em 1719 e a fundação da vila do Bom Jesus em 1727, a mineração se expandiu de tal modo que, junto com os litígios na calha do rio Amazonas e ao leste dos rios da Prata e Uruguai, se tornou pacífico tanto para a Coroa portuguesa como para a espanhola a necessidade de atualizar o Tratado de Tordesilhas (1494) conforme as extensões efetivas dos seus impérios, fazendo-se cessões mútuas.

Tendo-se as negociações iniciado em 1746, em maio de 1748 a Coroa portuguesa desmembrou de São Paulo a capitania do Cuiabá e Mato Grosso, aonde Antônio Rolim de Moura, o primeiro governador e capitão-general, chegou em janeiro de 1751. O tratado de limites entre as duas Coroas fora assinado um ano antes em Madrid: Portugal cedera a Colônia do Sacramento e a Espanha reconhecera a ocupação portuguesa do vale do Amazonas até o rio Javari e a exploração das minas do Cuiabá e Mato Grosso. Mato Grosso denominava então a região do alto Guaporé, onde Rolim de Moura resolveu criar a vila que serviria de cabeça à nova capitania:

Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesu-Cristo de mil setecentos e cinquenta e dous anos, aos dezenove dias do mês de março do dito ano, neste sítio chamado O Campo do Simão, por outro nome O Pouso Alegre, à beira do rio Guaporé e ao poente da chapada de São Francisco Xavier do Mato Grosso, no lugar da praça destinada para se levantar o pelourinho da nova vila que Sua Majestade foi servido mandar erigir e criar nestas minas, presente no dito lugar o Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Dom Antônio Rolim de Moura, Governador e Capitão-General delas, e o Juiz de Fora Teotônio da Silva Gusmão e o Secretário do Governo Bartolomeu Descalça Barros, para atestar e passar para o livro da Secretaria este auto. E presentes os bons e o povo que pôde assistir dos habitantes das ditas minas, sendo aí por ordem do dito Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor, foi mandado ler por mim, tabelião, o Alvará de Sua Majestade de cinco do mês de agosto de mil setecentos e quarenta e seis para a ereção da vila, o que por mim foi satisfeito em voz alta e inteligível e vai o dito alvará copiado adiante, depois deste auto. E logo pelo dito Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Governador e Capitão-General foi dito e declarado que sem embargo de que no dito alvará determinava Sua Majestade, que o lugar da vila fosse escolhido por cinco homens ajuramentados, havia ele escolhido e aprovado este sítio para a fundação da vila não só porque o alvará fora passado em outro tempo, em que se não mandava general a esta diligência, mas pelas ordens e instruções que tinha de Sua Majestade e porque este era o sítio mais conveniente ao serviço de el-Rei e ao bem comum e porque ultimamente os moradores destas minas, divididos em opiniões, só olhava cada um para o que lhe fazia mais conta, querendo os da chapada que nela se fundasse a vila e os de Santa Ana que fosse fundada naquele bairro, com que não estavam em termos de serem ouvidos sobre a eleição do sítio, nunca de antes visto nem examinado por eles, em cuja praça, no meio dela, mandou o dito Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Governador e Capitão-General levantar o pelourinho por insígnia de se constituir e erigir no dito lugar a referida vila, o qual, presentes todos os abaixo assinados, foi posto e alevantado com os sinais e insígnias seguintes: feito o dito pelourinho de um grosso madeiro e perdurável, chamado ipiúva, com três degraus em quadra de seis até oito palmos, lavrado primeiro em coluna torcida até certa altura e despois em pirâmida de quatro faces, em cujo remate se colocou um braço de ferro com o cutelo levantado em alto e abaixo, na formação da pirâmida, quatro varões de ferro, com suas argolas para prisões, e abaixo, na coluna, duas algemas de ferro para os braços e duas para os pés. E logo pelo dito Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Governador e Capitão-General foi declarado que a dita nova vila teria o nome de Vila Bela da Santíssima Trindade, a quem dedicaria a igreja matriz dela; que, em reverência da mesma Trindade Santíssima, simbolicamente teria por armas em meio de um escudo branco com dous círculos, um encarnado e outro azul, uma ave com corpo e cabeça do meio de águia, a do lado esquerdo de pomba e a do lado direito de pelicano, ferindo o peito, e que estas mesmas armas poria a Câmara no seu estandarte por detrás das armas reais, enquanto Sua Majestade não mandasse o contrário. E que esta vila sinalava e demarcava por logradeiro dela, na forma do dito Senhor, todo o campo desde o sangrador do mato ou ribeirão que fica ao sul da vila até a lagoa do Arrozal, que costeia o mato de Guaguaçu, ao norte da vila, que será uma légua de terreno, e na travessa desde o mato do capão da lagoa, por onde passa a estrada que entra para esta vila, até o rio Guaporé, que serão três quartos de légua de leste a oeste, cujo terreno não podia ser aforado pela Câmara, como Sua Majestade determina, ficando o dito campo para pasto dos cavalos e gados dos moradores da vila; e que na mesma isenção de foro ficarão compreendidos os capões que pelo campo se acham, que seriam pelas linhas comuas; e que caso neles fizessem algũa chacra ou casa de campo, tivessem entendido não impediria em tempo algum a que os moradores da vila mandassem neles fazer lenha, tirar cipós e cortar madeiras e para se livrarem da entrada dos cavalos e gados do pasto comum do logradouro, seriam obrigados os que tivessem chacra ou casa de campo nos ditos capões a cercar as plantas; que o mato do Guaguaçu e capão da lagoa e o mato do sangrador e o campo que daí se segue para o sul e o mato que acompanha o rio Guaporé ficavam fora do logradouro; e que a Câmara escolheria a parage ou parages em que se hajam de fazer boas as quatro léguas de terra que Sua Majestade lhe concede para aforar e lho fariam presentes com as confrontações, para se lhes passar sesmarias pela Secretaria. Feito isto pelo Doutor Juiz de Fora, presente o mesmo Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Governador e Capitão-General, no mesmo ato foi mandado vir o cofre dos pelouros que haviam feito em eleição dos oficiais, que nestes três anos aonde servir na Câmara, e com as cerimônias que a lei determina, foi tirado, aberto e publicado o pelouro que coube por sorte neste ano, de que se fez termo no livro das eleições, a folhas três. Do alvará de Sua Majestade já referido, para a criação desta vila, só falava de dous vereadores e um procurador; consultava ele, dito Doutor Juiz de Fora, com o dito Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Governador e Capitão-General na eleição dos ditos pelouros, em que houvessem de ser três vereadores e um procurador, porque quando se passara a provisão para a criação da vila, fora para o tempo em que se mandavam criar dous juízes ordinários; que nunca podiam fazer falta cinco votos, pois na falta de qualquer juiz ou vereador se podia logo proceder à eleição de outro de barrete, porém que tomando depois Sua Majestade a resolução de mandar juiz de fora para estas minas, além de serem quatro votos em câmera, sendo os vereadores só dous, podia suceder que faltasse o juiz de fora e ficavam só três votos, o que poderia ser danoso à república. E de todo o referido mandaram eles, ditos Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Governador e Capitão-General e Doutor Juiz de Fora, formar este auto em livro próprio da criação desta vila, sendo a tudo presentes os bons e as pessoas seguintes: Guarda-Mor Xavier Júlio, o Reverendo Vigário Fernando Machado de Sousa e Abreu, Francisco de Sales Xavier, João Pereira da Cruz, o Sargento-Mor Lourenço Soares de Brito, Pedro Vaz Justiniano, Manuel Dias Penteado, Antônio da Silveira Fagundes Borges, Antônio Ferreira, João Nunes de Melo, João Raposo da Fonseca Góis, Manuel Vieira Benevides, Antônio Pacheco de Morais, Bento de Sousa Machado e Abreu, Antônio de Abreu Bacelar, Sebastião Pinheiro de Almeida, Pedro Diogo da Mota, o Licenciado Francisco Rodrigues da Costa, José de Oliveira Pedroso, Inácio Leme da Silva, Calisto de Sousa Rego, Caetano Gil de Ataíde, Luís da Costa Silva, Antônio Botelho da Fonseca, Manuel Bento Pereira, Bento Dias Pais, Félix Martins Claro, Antônio Leite de Almeida, Francisco Caetano Borges, Pedro Rodrigues Lima, João Gomes Santiago, José Ferreira de Matos, André de Sousa de Almeida, Rodrigo Francisco, o Licenciado João Metelo de Matos, Manuel Antônio Machado, Silvestre de Castro, João da Borba Gato, os quais todos assinaram com o dito Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Governador e Capitão-General e o Doutor Juiz de Fora e o Secretário deste Governo e eu, Inácio Pereira Leão, tabelião do público, judicial e notas, que escrevi. Dom Antônio Rolim de Moura. Teotônio da Silva Gusmão. Bartolomeu Descalça Barros. (Transcrito por João Severiano da Fonseca no artigo Brasões das cidades de Cuiabá e Mato Grosso, publicado no suplemento ao tomo LI da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, p. 111; grifo meu)

A escolha dessa posição resultou de várias considerações estratégicas: o Guaporé ligava pelo meio do continente o estado do Grão-Pará e Maranhão, cuja cabeça foi transferida de São Luís para Belém precisamente no ano de 1751, ao estado do Brasil; a sede de uma capitania na raia defendia a linha nova, traçada pelo Tratado de Madrid, que corria aí precisamente ao longo desse rio; freava, além disso, o avanço das missões espanholas nas regiões vizinhas de Mojos e Chiquitos e, ao mesmo tempo, abria a possibilidade de comércio com elas.

Como a fundação de Cuiabá 25 anos antes se revestira de especial pompa, não convinha que a cabeça da nova capitania recebesse menor honra. Creio que esta seja a razão desse singular par de brasões durante o domínio português na América: como Cuiabá tinha, muito excepcionalmente, o seu, Vila Bela não poderia deixar de ostentar um. Apesar disso, o centro administrativo nunca se tornou econômico: Cuiabá foi escolhida para servir de sé prelatícia desde 1782 e, embora se tenham erigido ambas as vilas em cidades em 1818 (Vila Bela com o nome de Mato Grosso), o governo acabou transferindo-se definitivamente para Cuiabá em 1835.

Brasão colonial de Vila Bela da Santíssima Trindade.
Brasão colonial de Vila Bela da Santíssima Trindade.

Quanto às armas, a figura principal é uma representação verdadeiramente esquisita da Santíssima Trindade, ainda que perfeitamente inteligível. A águia representa o Pai: é a rainha das aves, símbolo do deus patriarcal de romanos (Júpiter) e gregos (Zeus), também do Império. O pelicano representa o Filho, em razão do mito medieval de que essa ave é capaz de ferir o seu peito para saciar a fome das crias com sangue (Santo Tomás de Aquino na penúltima estrofe do Adoro te devote: "Pie pelicane, Jesu Domine, | me immundum munda tuo sanguine", isto é, "Piedoso pelicano, Senhor Jesus, | limpa a mim, sujo, com o teu sangue"). A pomba representa o Espírito Santo: "Depois de ser batizado, Jesus saiu logo da água, e o céu se abriu. E ele viu o Espírito de Deus descer, como uma pomba, e vir sobre ele" (Mateus, 3, 16).

Não obstante, a descrição deixa algumas lacunas: qual é o esmalte da ave? E a sua posição? E o que são esses dois círculos? À primeira pergunta respondo que à falta de esmalte especificado suponho que a figura tenha a sua cor natural, nesse caso aquela de uma águia, e o mesmo razoamento leva-me a optar pela posição ordinária desse animal: estendida, isto é, de frente, com a cabeça de perfil e as asas abertas. Quanto aos círculos, entendo que seja uma orla circular partida. Portanto, brasono tais armas assim: de prata com uma ave com o corpo e a cabeça do meio de águia, a do lado direito de pelicano, ferindo o peito, e a do esquerdo de pomba, tudo de sua cor, circulada por uma orla partida de vermelho e azul.

Brasão de Vila Bela da Santíssima Trindade (imagem disponível no site da prefeitura).
Brasão de Vila Bela da Santíssima Trindade (imagem disponível no site da prefeitura).

Por mais piedosa que seja, essa quimera parece tão assustadora que justifica a assunção de armas novas pelo município em 1976. Apesar de terem recebido uma das descrições mais anti-heráldicas que já vi na lei que, a rigor, criou a bandeira municipal, são singelas, belas e representativas. Pelo desenho que a prefeitura e a câmara usam, brasono-as assim: de azul com uma águia de prata, nascente de um triângulo de ouro, firmado num rio de prata, aguado de azul.

01/01/22

OS BRASÕES DO BRASIL COLONIAL: CUIABÁ

Os brasões municipais do Brasil colonial são tão excepcionais que a exemplaridade daquele de Cuiabá parece a exceção que confirma a regra.

No império português, duas potências criavam municípios: o rei ou o donatário (este era, para todos os efeitos, um senhor feudal). O oficial régio — governador ou capitão — fundava cidades ou vilas; o donatário ou o seu lugar-tenente fundava vilas. Segundo Adilar Antônio Cigolini na sua tese de doutorado (2009), criaram-se 187 municípios durante o período colonial. As cidades eram as povoações que serviam de sés episcopais: Salvador, Rio de Janeiro, São Luís, Belém, Olinda (desde 1676), Mariana e São Paulo (ambas desde 1745), mais, pela função estratégica que tiveram no fim do século XVI, Filipeia (depois Paraíba, hoje João Pessoa) e Natal (leia-se a postagem de 28/02/2021). O resto eram vilas, das quais duas possuíram brasões. Recapitulemos esta série até aqui:

  • Salvador: Fundada em 1549, as suas armas estão bem atestadas no Tratado descritivo do Brasil em 1587, de Gabriel Soares de Sousa, e na História da América portuguesa (1730), de Sebastião da Rocha Pita;
  • Rio de Janeiro: Fundada em 1565, as suas armas não estão atestadas em nenhuma fonte do período colonial, mas têm sido referenciadas na literatura historiográfica e heráldica desde o século XIX, a começar pela História geral do Brasil antes da sua separação e independência de Portugal (1854), de Adolfo de Varnhagen, visconde de Porto Seguro;
  • São Luís: Fundada em 1612, as suas armas estão atestadas na História da Companhia de Jesus na extinta província do Maranhão e Pará (1759), do padre José de Morais, mas além de o texto não ser de todo claro, o autor dá a entender que foram pouco usadas ou mesmo nunca se usaram;
  • Belém: Fundada em 1616, as suas armas estão atestadas na mesma obra e talvez se tenham usado mais que as de São Luís, mas, de todo modo, o texto é quase enigmático.

Em Cuiabá, tudo se passou de modo diferente, muito exemplar: o governador da capitania viajou ao arraial e elevou-o a vila, o ouvidor-geral da comarca instalou a câmara dela, o capitão-mor das minas levantou o pelourinho e o secretário do governo fez o termo da fundação (transcrito por José Martins Pereira de Alencastre nos Anais da província de Goiás, 1864, p. 43), no qual as armas concelhias ficaram descritas:

Ao primeiro dia do mês de janeiro de 1727, nesta Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, sendo mandado por Sua Majestade, que Deus guarde, a criá-la de novo, o Excelentíssimo Senhor Rodrigo César de Meneses, Governador e Capitão-General desta Capitania, e que o acompanhassem para o necessário o Doutor Antônio Alves Lanhas Peixoto, Ouvidor-Geral da Comarca de Parnaguá, sendo por ele eleitas as justiças, juízes ordinários Rodrigo Bicado Chacim, o tesoureiro Coronel João de Queirós Magalhães, e vereadores Marcos Soares de Faria, Francisco Xavier de Matos, João de Oliveira Garcia, e procurador do concelho Paulo de Anhaia Leme, servindo de escrivão da Câmara Luís Teixeira de Almeida, almotacé o Brigadeiro Antônio de Almeida Lara e o capitão-mor Antônio José de Melo, levando o estandarte da vila Matias Soares de Faria. Foi mandado pelo dito Senhor Governador Capitão-General que com o dito Doutor Ouvidor, todos juntos com a nobreza e povo, fossem à praça levantar o pelourinho desta vila, a que em nome de el-Rei deu o nome de Vila Real do Bom Jesus e declarou que sejam as armas de que usasse um escudo dentro com o campo verde e um morro ou monte no meio, todo salpicado com folhetas e granitos de ouro, e, por timbre, em cima do escudo, uma fênix. E nomeou para levantar o pelourinho ao Capitão-Mor Regente Fernando Dias Falcão e todos os sobreditos, com o dito Doutor Ouvidor, nobreza e povo, foram à praça desta vila, aonde o dito Fernando Dias Falcão levantou o pelourinho, do que para constar a todo o tempo fiz este termo, que assinou o dito Senhor General com os sobreditos. E eu, Gervásio Leite Rabelo, Secretário deste Governo, que o escrevi. Dia era ut supra etc. Rodrigo César de Meneses. Antônio Alves Lanhas Peixoto. Rodrigo Bicudo Chacim. Marcos Soares de Faria. Francisco Xavier de Matos. João de Queirós Magalhães. João de Oliveira Garcia. Luís Ferreira de Almeida. Antônio José de Melo. Paulo de Anhaia Lemos. Antônio de Almeida Lara. Matias Soares de Faria. Fernando Dias Falcão. Manuel Dias de Barros. Manuel Vicente Neves. Salvador Martins Bonela. (1)

Com efeito, é a exceção que confirma a regra e a razão para uma povoação tão remota ter merecido tanto zelo está no próprio escudo: ouro. Foi descoberto pela bandeira de Pascoal Moreira Cabral, que lavrou a certidão do descobrimento aos 8 de abril de 1719, data em que se tem comemorado o aniversário de Cuiabá. Além do valor por si, as minas achavam-se em território ao oeste da linha de Tordesilhas, portanto poderiam ser reivindicadas pela Coroa espanhola.

Brasão colonial de Cuiabá.
Brasão colonial de Cuiabá.

Com relação ao brasão, é bastante singelo, mas como o brasonamento não foi ordenado em linguagem heráldica, demanda certo exercício interpretativo: o que quer dizer "campo verde" em "um escudo dentro com o campo verde"? Na armaria, chama-se campo à superfície do escudo ou daquilo que valha por um. Mas a preposição com tolhe o sentido ao entendimento de que o escudo seja verde. Levando em conta o gosto naturalista da época, parece mais razoável que esse campo verde seja uma peça ou figura dentro do escudo e este não tivesse esmalte, mas simplesmente figurasse o céu. Efetivamente, o contrachefe ou pé mede um terço da largura do escudo, fica firmado em ponta e também se denomina campanha. A figura equivalente, que tem a forma e a cor natural de uma campina, é o terrado, opção escolhida por José Wasth Rodrigues ao ilustrar Brasões e bandeiras do Brasil (1933), de Clóvis Ribeiro.

Depois, a figura principal: "um morro ou monte no meio, todo salpicado com folhetas e granitos de ouro". Na heráldica portuguesa, diz-se salpicado ou picado da figura que está carregada de bolinhas de esmalte diferente (tacheté em francês). Nesse sentido, o monte das armas cuiabanas não consiste de uma pilha, tampouco de um monte todo coberto de folhetas e granitos de ouro. Entendo, isto sim, que o monte está coberto de modo que se entrevê a sua cor. Como não se declara tal cor, deve ser a natural. Mas o que são folhetas e granitos de ouro? Folheta é fácil: uma lâmina pequena desse metal. Granito, além de designar hoje em dia certa espécie de rocha, também significa 'grão pequeno', então suponho que refira a uma pepita.

Enfim, o timbre: a figuração da fênix segue um padrão bem definido na armaria: como a águia, fica de frente, com as asas abertas e a cabeça de perfil, mas sai do fogo, dito imortalidade. Mais uma vez, o nosso texto peca pelo excesso de concisão: "por timbre, em cima do escudo, uma fênix". Sempre que essa espécie de testemunho omite o esmalte, tendo a interpretar que se trata da cor natural, mas como a fênix é um animal fantástico, fica-se na dúvida de qual cor seja. Creio que o vermelho tem prevalecido.

Com base em todo esse razoamento, brasono as armas coloniais de Cuiabá assim: de azul com um monte de sua cor, salpicado de folhetas e pepitas de ouro e firmado numa campanha de verde; timbre: uma fênix na sua imortalidade, tudo de sua cor.

Brasão de Cuiabá segundo José Wasth Rodrigues.
Brasão de Cuiabá segundo José Wasth Rodrigues.

Atualmente, tanto a prefeitura como a câmara municipal de Cuiabá usam desenhos que se baseiam numa má interpretação daquele de Wasth Rodrigues, quem, à sua vez, copiou os publicados no artigo Brasões das cidades de Cuiabá e Mato Grosso, de João Severiano da Fonseca (suplemento ao tomo LI da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, p. 111): o monte semelha uma pilha e o céu e o terrado em perspectiva foram transformados num partido de azul e verde. Isso me faz duvidar muito de que essas armas se venham usando continuamente desde o período colonial, porque parece mais real que a adoção recente delas se deva ao esforço intelectual em história e heráldica durante a segunda metade do século XIX e o começo do seguinte, tanto que a própria câmara, ao informar que "foram oficializadas" pela Lei n.º 592, de 13 de setembro de 1961, acrescenta que tal lei reproduz o trecho pertinente do termo de fundação "sem preencher as lacunas de sua descrição". Ora, sendo o dito termo um ato oficial, era necessário, no mínimo, que se aperfeiçoasse o brasonamento para se justificar a promulgação de uma lei específica.