18/01/24

METONÍMIAS

A metonímia é mais que uma figura de linguagem e a heráldica demonstra isso.

A escola ensina-nos que metonímia é a figura de linguagem pela qual se toma certo termo por outro mediante uma relação de contiguidade, por exemplo: "a escola ensina" é, em si, uma metonímia, pois o professor é quem ensina, portanto se toma o espaço pelo profissional que aí atua. Não obstante, a metonímia é mais que isso: é um fenômeno constitutivo da própria linguagem. Com efeito, muitas palavras evoluíram a partir de metonímias, como o verbo trazer, tão frequente na heráldica ("fulano traz tais armas"), que vem do latim trahere, cujo sentido primitivo é 'puxar'. Portanto, tomou-se um aspecto da ação por tudo que ela abrange.

Na heráldica, a metonímia tem sido especialmente produtiva, a começar pelo termo armas. Em latim, arma é um plurale tantum, isto é, um vocábulo que só se usa no plural. Assim como outros neutros plurais, foi entendido como feminino singular nas línguas românicas, ao qual se deu um plural novo: arma ~ armas. É notável a repetição do fenômeno em italiano: pela maior frequência, arme foi entendido como singular, daí armi, que hoje é o plural de arma. Seja como for, tanto na heráldica primitiva, quando os brasões mais antigos apareceram sobre gonfalões senhoriais (cf. a postagem de 31/01/2021), como também na heráldica clássica, quando o escudo se tornou o campo por antonomásia (cf. a postagem de 14/02/2021), há metonímia: o todo pela parte. Mas mesmo ante o cavaleiro montado, que traz o timbre em cima do elmo e o brasão sobre a sua cota e a gualdrapa do cavalo, toma-se o conteúdo pelo continente.

Armas reais da França (antigas): de azul, semeado de flores de lis de ouro. Atestadas desde 1209 (selo do príncipe Luís, futuro Luís VIII).
Armas reais da França (antigas): de azul, semeado de flores de lis de ouro. Atestadas desde 1209 (selo do príncipe Luís, futuro Luís VIII).

Em francês, a língua original da heráldica, do substantivo armes deriva o verbo armoyer, que exprimia a ação de reproduzir certas armas nalgum lugar. O sufixo -oyer vem do latim vulgar -idiare (pelo literário -izare, de origem grega), que em português deu -ear (ondear 'fazer ondas') e -ejar (alvejar 'tornar alvo'). À sua vez, de armoyer deriva o substantivo armoyerie, o que é insólito nas demais línguas românicas, pois esse sufixo (-aria em português) normalmente se liga a raízes nominais. Certas condições propiciaram essa possibilidade em francês, o que evitou confusão com armurerie, a arte de fabricar armas ou uma coleção delas. Depois, armoyerie evoluiu para armoirie e desta forma derivam o verbo armorier, que suplantou armoyer, e o adjetivo armorial, que por substantivação designa uma coleção de brasões. Enfim, armoiries, no plural, acabou tornando-se o termo mais comum para 'brasão' no francês contemporâneo, portanto outra metonímia: a arte pelo artefato.

Armas reais de Aragão, hoje da Catalunha: de ouro com quatro palas de vermelho. Atestadas desde 1150 (selo de Raimundo Berengário IV, conde de Barcelona e príncipe de Aragão).
Armas reais de Aragão, hoje da Catalunha: de ouro com quatro palas de vermelho. Atestadas desde 1150 (selo de Raimundo Berengário IV, conde de Barcelona e príncipe de Aragão).

Em português, armaria significa 'arsenal' e também 'heráldica'. Do francês importaram-se o verbo armoriar e o nome armorial. Curiosamente, a terminação -iar foi confundida com o sufixo -ear, daí o sinônimo menos frequente armorejar. O mesmo em espanhol quanto a armería, mas o Diccionario de la lengua española da Real Academia Española não registra importação de armoirie nem dos seus derivados, embora se constate a influência dessa língua no uso do plural armerías com o sentido de 'brasão'. Os dicionários italianos admitem armoriale, porém não consta que armeria possa referir à heráldica. Assim, a língua românica que mais se aproxima ao português nesta matéria é o catalão, que dispõe não só do particípio armoriat e do nome armorial, mas também de armoria ('heráldica'), diferente de armeria ('arsenal'), se bem que, talvez mais por hispanismo que por galicismo, se empregue o plural armeries por 'brasão'.

Armas imperiais (primitivas), hoje federais da Alemanha: de ouro com uma águia de negro, bicada e membrada de vermelho. Atestadas por volta de 1180 (moeda de Frederico Barba-Ruiva).
Armas imperiais (primitivas), hoje federais da Alemanha: de ouro com uma águia de negro, bicada e membrada de vermelho. Atestadas por volta de 1180 (moeda de Frederico Barba-Ruiva).

A metonímia comparece igualmente nas línguas germânicas: do protogermânico *wēpną vêm o holandês wapen, o dinamarquês våben e o sueco vapen (1). Todos esses vocábulos querem dizer tanto 'arma' como 'brasão'. Em alemão, Wappen foi emprestado do baixo-alemão, pois na norma-padrão (que se baseia no alto-alemão) o protogermânico deu Waffe. Graças a essa particularidade, distinguem-se 'arma' (Waffe) e 'brasão' (Wappen). A armaria é Wappenkunde e o armorial, Wappenbuch, literalmente 'ciência das armas' e 'livro das armas', o que ilustra a formação de palavras por composição, tão característica dessas línguas. Em inglês, bem se poderia dizer weapon, *weaponcraft e *weaponbook, mas essa língua é um caso à parte.

Armas reais da Inglaterra: de vermelho com três leopardos de ouro, armados e lampassados de azul, alinhados em pala. Atestadas desde 1198 (selo de Ricardo Coração de Leão).
Armas reais da Inglaterra: de vermelho com três leopardos de ouro, armados e lampassados de azul, alinhados em pala. Atestadas desde 1198 (selo de Ricardo Coração de Leão).

Com efeito, por causa do prestígio da língua francesa na Inglaterra após a conquista normanda (cf. a postagem anterior), em inglês estão presentes quase todos os vocábulos da raiz arm-, entre eles arms (plural de arm 'arma', também 'brasão'), de armes, e armoury ('arsenal' e 'heráldica'), de armurerie e armoyerie. Todavia, o verbo é emblazon, que significa 'armoriar' e 'reproduzir certo brasão' e demonstra outra particularidade inglesa: um uso independente do francês, pois tanto o prefixo en- como o substantivo blazon vêm dessa língua, mas nela não existe o verbo *emblasonner.

Armas ducais de Brabante, hoje reais da Bélgica: de negro com um leão de ouro, armado e lampassado de vermelho. Atestadas desde 1195 (selo de Henrique I).
Armas ducais de Brabante, hoje reais da Bélgica: de negro com um leão de ouro, armado e lampassado de vermelho. Atestadas desde 1195 (selo de Henrique I).

Por certo, blason sintetiza essas duas esferas do Ocidente medieval: é provável que tenha origem germânica, mas foi da França que se difundiu para todo o entorno. Daí blazon em inglês, blazoen em holandês, Blason em alemão, blasone em italiano, blasó em catalão, blasón em espanhol e brasão em português. E isto é tudo que se sabe sobre a etimologia dessa palavra, portanto as hipóteses que a retrocedem a esta ou àquela raiz conhecida carecem de fundamentação, como a bastante repetida que a vincula ao alemão blasen 'soprar (corneta)'.

Desde as ocorrências mais antigas, blason denomina o signo heráldico, logo sinônimo de armas. Esse sentido permanece nas línguas mencionadas, mas hoje só em alemão, holandês, italiano e português continua o mais usual, se bem que a frequência do uso varia grandemente entre uma língua e outra. É que no próprio francês novamente agiu a metonímia: blason passou a referir também à própria heráldica, ou seja, o artefato pela arte. O catalão blasó e o espanhol blasón seguem essa mudança. Mais uma vez, o inglês acaba por ser um caso à parte: blazon veio designar a descrição das armas em linguagem heráldica.

Efetivamente, de blason deriva o verbo blasonner, que se transmitiu às línguas mencionadas — blasonieren em alemão, blasonar em catalão e em espanhol, blazoeneren em holandês, blasonare em italiano, brasonar em português — e em todas conserva o sentido de descrever as armas em linguagem heráldica. Do agir, a ação: blasonnement em francês, Blasonierung em alemão, blasonament em catalão, blasonamiento em espanhol, blazoenering em holandês, blasonatura em italiano e brasonamento em português. Quanto ao inglês, acontece que essa língua perdeu muito da flexão, daí que o vocábulo transite mais livremente de uma classe a outra, restando à sintaxe determiná-las: the blazon (substantivo), I blazon (verbo).

Armas reais de Portugal (primitivas): de prata com cinco escudetes de azul, besantados do campo e postos em cruz, os dos flancos apontados ao centro. Atestadas desde 1187 (selo de Dom Sancho I).
Armas reais de Portugal (primitivas): de prata com cinco escudetes de azul, besantados do campo e postos em cruz, os dos flancos apontados ao centro. Atestadas desde 1187 (selo de Dom Sancho I).

Essa série de metonímias desencadeou várias outras para nomear o próprio artefato. Atualmente, apenas no nosso idioma esse termo é frequente. Dizemos, pois, brasão, armas ou, juntando ambos os termos, brasão de armas. A menor frequência nas línguas germânicas deu lugar aos compostos Wappenschild em alemão e wapenschild em holandês (2), precisamente a mesma solução que se acha em catalão e espanhol pela causa referida mais acima: escut d'armes e escudo de armas ou, simplesmente, escut e escudo. Em inglês, poderia ser *weaponshield, mas se diz coat of arms, mais um galicismo: vem de cotte d'armes (cf. a postagem de 21/11/2022). Seja o escudo seja a cota, há metonímia: a parte pelo todo e o continente pelo conteúdo. Aqui, o italiano afasta-se do campo semântico do armamento.

Armas da Casa de Saboia: de vermelho com uma cruz de prata. Atestadas desde 1143 (selo do conde Amadeu III).
Armas da Casa de Saboia: de vermelho com uma cruz de prata. Atestadas desde 1143 (selo do conde Amadeu III).

Com efeito, em italiano o termo habitual para 'brasão' é stemma, que tem origem grega. Nessa língua, significa 'coroa'. Os romanos importaram-no para denominar a coroa ou grinalda que cingia a imagem de um antepassado. Foi, pois, em latim que, por metáfora, passou a referir à linhagem. Esta foi, então, tomada pelo sinal que a representa. Metonímia.

Armas reais da Polônia, hoje estatais: de vermelho com uma águia de prata, bicada, armada e coroada de ouro. Atestadas desde 1226 (selo do duque Casimiro de Opole).
Armas reais da Polônia, hoje estatais: de vermelho com uma águia de prata, bicada, armada e coroada de ouro. Atestadas desde 1226 (selo do duque Casimiro de Opole).

Perspectiva similar acha-se no vocábulo habitual das línguas eslavas. O surgimento da heráldica no norte da França propiciou a sua difusão imediata por todo o Ocidente, mas na Europa oriental se difundiu mais tarde, a partir do Sacro Império. Assim, foi do alemão Erbe 'herança' que os tchecos emprestaram a palavra erb. Tomou-se, pois, um aspecto do brasão, a transmissão, por ele mesmo. A palavra viajou, então, mais ao oeste: herb em polonês e ruteno (3) e gerb em russo. Depois pelo sul: a mesma forma em búlgaro e grb em servo-croata e em esloveno. Nessas línguas, a flexão é um mecanismo forte — de gerb derivam gerbovedenie (a armaria), gerbovnik (o armorial) e gerbovyj (armoriado) —, mas também houve afição ao galicismo, daí geral'dika e armorial.

Heráldica é mesmo a palavra mais estável. Por quê? Porque é uma invenção culta. A raiz foi tirada de heraldus, latinização do francês héraut, e a ela ajuntou-se o sufixo -ica, à semelhança de aritmética, gramática, lógica etc. Formou-se, assim, um vocábulo adaptável à maioria das línguas europeias: Heraldik em alemão, heràldica em catalão, heraldik em dinamarquês e sueco, heráldica em espanhol e português, héraldique em francês, heraldiek em holandês, araldica em italiano, heraldyka em polonês, heraldika em tcheco etc. Em inglês, heraldic funciona apenas como adjetivo, já que o substantivo é heraldry, do francês hérauderie, isto é, héraut mais o sufixo -erie, referido no início desta postagem. (4)

Portanto, da perspectiva etimológica a heráldica é a arte dos arautos. A palavra arauto vem, precisamente, de héraut, mais uma do francês antigo que foi exportada tanto para a esfera românica — araldo em italiano, herald em catalão, heraldo em espanhol — como para a germânica — herald em inglês, heraut em holandês, Herold em alemão — e deste para o norte e o leste do continente. Tem origem frâncica: *heriwald, composto de *heri 'exército' e *wald 'dirigente'. Por certo, antes de se encarregar de insígnias nobiliárias, o arauto fora um especialista em honra cavalheiresca, conceito resultante da idealização da guerra (cf. as postagens de 13/01/21 e 14/03/21). (5)

Notas:
(1) Por brevidade, cinjo-me às línguas padronizadas na Idade Moderna, nas quais se escreveu literatura heráldica.
(2) Nas línguas nórdicas, segue-se geralmente a nomenclatura alemã: blasonere, blasonering e våbenskjold em dinamarquês; blasonnera, blasonnering e vapenskjöld em sueco.
(3) O ruteno é a forma anterior das línguas bielorrussa e ucraniana, empregada na Polônia-Lituânia e depois na Áustria-Hungria (cf. as postagens de 06/10 e 09/12/2023).
(4) Nas línguas românicas, conserva-se a noção de que uma palavra como heráldica é a substantivação de um adjetivo acabado com o sufixo greco-latino -icus: heràldic/heràldica em catalão, heráldico/heráldica em espanhol e português, héraldique em francês, araldico/araldica em italiano. Noutras línguas, o adjetivo é formado por afixo nativo à raiz latina, como heraldisch em alemão e geral'dičeskij em russo.
(5) O étimo protogermânico, *Herjawaldaz, era também um nome de pessoa. Deu Harold em inglês e Harald nas línguas nórdicas. Daí, mediante as suas latinizações, Heraldo Haroldo em português.

10/01/24

FALSOS AMIGOS

O inglês tornou-se a língua mais acessível ao aprendiz de armista, mas a armaria britânica não é um padrão universal.

Pouca gente sabe, mas desde a conquista de 1066 e durante a dinastia Plantageneta (1154-1485) a língua da realeza e da nobreza inglesas foi o francês, como atestado pela crônica de Roberto de Gloucester (versos 7.537-7.547), que viveu na segunda metade do século XIII:

Thus com, lo, Engelond into Normandies hond.
And the Normans ne couthe speke tho, bote hor owe speche,
And speke French as hii dude at om and hor children dude also teche,
So that heiemen of this lond, that of hor blod come,
Holdeth alle thulke speche that hii of hom nome;
Vor bote a man conne Frenss, me telth of him lute.
Ac lowe men holdeth to Engliss and to hor owe speche yute.
Ich wene ther ne beth in al the world contreyes none
That ne holdeth to hor owe speche, bote Engelond one.
Ac wel me wot vor to conne bothe wel it is,
Vor the more that a mon can, the more wurthe he is.

Em prosa vernácula, pode-se traduzir este testemunho como segue:

Eis que assim veio a Inglaterra às mãos da Normandia. E os normandos não podiam falar senão o seu próprio idioma. E falam francês, como o faziam em casa, e a seus filhos também o ensinam, para que os homens nobres desta terra, que vêm do seu sangue, todos mantenham o idioma que deles tomaram, pois a não ser que um homem saiba francês, os homens pouco caso dele fazem. Porém, os plebeus ainda se atêm ao inglês e ao seu próprio idioma. Acho que não há nenhum em todos os países do mundo que não se atenha ao seu próprio idioma, a não ser a Inglaterra, somente. Porém, bem se sabe que é bom conhecer ambos, pois quanto mais um homem conhece, mais vale.

Como os arautos desenvolveram o seu ofício ao serviço da realeza e da nobreza (leia-se a postagem de 14/03/21), entende-se por que só em 1446 os reis da Inglaterra começaram a assinar cartas de armas em inglês, quando se vinha concedendo essa espécie de mercê desde Eduardo III, em 1335. O mesmo na literatura técnica: o primeiro tratado nessa língua, o de John Dade, também data de meados do século XV, quando o mais antigo foi feito precisamente na Inglaterra: provém da Abadia de Santo Albano (St Albans Abbey), em Hertfordshire. Conhecido pelo seu incipit De héraudie — e pelo nome da sua editora — Ruth Dean —, foi escrito presumivelmente entre 1341 e 1345, portanto antecede até mesmo o De insigniis et armis (1358), de Bártolo de Sassoferrato. (1)

Armas reais da Inglaterra. Em inglês: Gules, three lions passant guardant in pale Or armed and langued Azure. Em português: De vermelho com três leopardos de ouro, armados e lampassados de azul, alinhados em pala.
Armas reais da Inglaterra. Em inglês: Gules, three lions passant guardant in pale Or armed and langued Azure. Em português: De vermelho com três leopardos de ouro, armados e lampassados de azul, alinhados em pala.

Com efeito, o De héraudie ilustra outro fato curioso: o francês usado nos domínios do rei inglês durante esse período não era o padrão, até porque este não existia, mas nem sequer o dialeto da Ilha de França, que viria servir-lhe de base, e sim o da Normandia. Daí que se tenha, pelas suas particularidades, convindo denominá-lo anglo-normando. Eis o início do tratado:

De héraudie le mestier
Si est les armes diviser,
Les colours et les propretées
Qu'en armes sount trovez.

Traduzindo: "Da heráldica o mister é as armas divisar, as cores e as propriedades que nas armas são achadas". Aqui, os vocábulos colours e sount divergem das formas no dialeto parisiense: coleurs e sont. O primeiro mostra a evolução das vogais latinas ō e ŭque explica a divergência entre gueules, no francês padrão, e gules, em inglês, do anglo-normando goules. O segundo, a do o nasalizado, que também contrasta rondeau, no francês padrão, a roundel, em inglês, do anglo-normando.

Armas da Casa de Lennox. Em inglês: Argent, a saltire engrailed between four roses Gules barbed and seeded Proper. Em português: De prata com uma aspa espiguilhada de vermelho, cantonada de quatro rosas do mesmo, apontadas e abotoadas de sua cor.
Armas da Casa de Lennox. Em inglês: Argent, a saltire engrailed between four roses Gules barbed and seeded Proper. Em português: De prata com uma aspa espiguilhada de vermelho, cantonada de quatro rosas do mesmo, apontadas e abotoadas de sua cor.

Na verdade, rondeau (adaptado como rondó em português) é hoje a denominação de certas composições musicais e literárias, já que por arruela se diz tourteau. Isso aponta a outra particularidade da armaria inglesa: a sua elaboração começou em francês, mas se tornou independente da armaria francesa. Por exemplo, quando vert e vair, isto é, 'verde' e 'veiro', ficaram homófonos, adotou-se o termo sinople para a cor no continente, enquanto no outro lado do Canal nada mudou. (2)

Armas da Casa de Chetwynd. Em inglês: Azure, a chevron between three mullets Or. Em português: De azul com uma asna de ouro entre três estrelas do mesmo.
Armas da Casa de Chetwynd. Em inglês: Azure, a chevron between three mullets Or. Em português: De azul com uma asna de ouro entre três estrelas do mesmo.

Mais precisamente, não foi o anglo-normando que evitou a homofonia de vert e vair (afinal, o uso desse dialeto cedeu paulatinamente ante o prestígio do parisiense), mas o próprio inglês, cuja emergência produziu uma linguagem heráldica única. Nela, misturam-se elementos de vária espécie. Assim, ao nível do vocábulo, há formações nativas, como horned, e formações francesas, como battlement, mas é muito mais frequente a raiz francesa com um sufixo nativo, como alternately, canting, langued, paly (3). Ao nível da oração, não há concordância nominal, de acordo com a gramática nativa, mas se pospõe o especificador, o que se deve à influência francesa: three lions passant (calcado em trois lions passants), em vez de three passant lions.

Armas de Casa de Herbert. Em inglês: Per pale Azure and Gules, three lions rampant Argent. Em português: Partido de azul e vermelho com três leões de prata, o terceiro brocante sobre a partição.
Armas de Casa de Herbert. Em inglês: Per pale Azure and Gules, three lions rampant Argent. Em português: Partido de azul e vermelho com três leões de prata.

Seja como for, a literatura heráldica francesa continuou uma referência para todos os estudiosos da matéria até o começo do século XX, tanto que Anselmo Braamcamp Freire na Armaria portuguesa (1908) e Guilherme Luís dos Santos Ferreira no Armorial português (tomo 1, 1920; tomo 2, 1923) empregam o vernáculo e o francês no brasonamento. A ascensão do inglês como língua internacional decorre da ascensão dos Estados Unidos como superpotência após a Segunda Guerra Mundial.

Armas da Casa de Cecil. Em inglês: Barry of ten Argent and Azure, six escutcheons Sable, three, two and one, each charged with a lion rampant of the first. Em português: Burelado de prata e azul de dez peças com seis escudetes de negro, postos três, dois e um e brocantes, cada um carregado de um leão de prata.
Armas da Casa de Cecil. Em inglês: Barry of ten Argent and Azure, six escutcheons Sable, three, two and one, each charged with a lion rampant of the first. Em português: Burelado de prata e azul de dez peças com seis escudetes de negro, postos três, dois e um, cada um carregado de um leão do primeiro.

Num mundo onde as pessoas macaqueiam coisas como 'guépi' (por gap), quando dispõem de brecha, hiato, lacuna, falha etc.; 'istartá' (por start), quando dispõem de começar, iniciar, dar início etc.; ou, a pior de todas, 'avocádu' (por avocado), em vez do bom e velho abacate, definitivamente o francês já não é a língua de referência nem mesmo para os estudos heráldicos. O problema é que, por todo o razoado, o brasonamento inglês não só é muito particular, mas também está cheio de "falsos amigos".

Entre as particularidades, além das já enunciadas, há pelo menos uma palavra que não tem correspondente noutras línguas: achievement. Ainda que venha do francês antigo (no moderno, achèvement 'acabamento'), designa a reprodução completa de certas armas: escudo mais ornamentos externos. Em português, dizemos simplesmente brasão de armas ou brasão ou armasDe outras três palavras costuma-se abusar, como se não tivessem tradução: badge, hatchment e marshalling.

Por badge, a Canadian Heraldic Authority/Autorité héraldique du Canada usa o termo insigne em francês, portanto é perfeitamente aceitável dizer insígnia em português, ainda mais ao se levar em conta que é continuação da antiga empresa ou divisa, vocábulos que ganharam significados novos. Trata-se de um emblema vinculado ao universo heráldico, porém mais versátil, porque solto das regras da armaria.

Sobre o hatchment discorri na postagem de 21/04/2022 e lembro que a prática dessa honra fúnebre num país parcialmente francófono, a Bélgica, oferece outra vez solução para a nossa língua: obiit, latinismo que significa 'faleceu'.

Quanto a marshalling, quer dizer simplesmente 'composição', portanto marshalled arms são 'armas compostas', isto é, que se compõem de outras. Marechal de armas era um dos títulos dos oficiais de armas e o College of Arms, que governa a armaria inglesa desde 1484, é dirigido pelo conde-marechal (Earl Marshal), daí o verbo to marshal.

Armas da Casa de Gilbey. Em inglês: Gules, a fess nebuly Or, in chief a horse rampant between two estoiles and the like in the base all of the last. Em português: De vermelho com uma faixa nublada entre dois cavalos empinados, cada um entre duas estrelas flamejantes, tudo de ouro.
Armas da Casa de Gilbey. Em inglês: Gules, a fess nebuly Or, in chief a horse rampant between two estoiles and the like in the base all of the last. Em português: De vermelho com uma faixa nublada entre dois cavalos empinados, cada um entre duas estrelas flamejantes, tudo de ouro.

Enfim, os "falsos amigos" em heráldica nada diferem dos falsos cognatos noutras áreas: palavras cujas formas se assemelham em duas línguas, mas têm significados diferentes em cada uma. No caso do brasonamento inglês sob perspectiva lusófona, isso acontece porque, como eu disse, grande parte dos termos têm raízes francesas e, por mor da origem latina comum, parecem vocábulos da língua portuguesa, a tal ponto que, mesmo quando não existem, as pessoas os tomam por possíveis, como *guardante por guardant.

Há, ainda, alguns termos que descumprem o critério da semelhança formal, por terem raiz nativa, mas como em português há vocábulos análogos, podem confundir. Por exemplo: eyed é análogo a olhado, mas na armaria portuguesa se diz animado do animal cujo olho tem esmalte diferente.

Aplicando, pois, esses dois critérios, elaborei o vocabulário heráldico inglês-português que segue e arrola especificamente falsos cognatos. Em cada item, dou o vocábulo inglês, o semelhante em português, o habitual na armaria portuguesa e a sua acepção.

Affronty não é 'afrontado', e sim posto de frente, isto é, diz-se da figura cuja frente está voltada para o observador.

Alternately não é 'alternadamente', e sim contrabretessado, isto é, diz-se da peça cujas ameias se alinham alternadamente, em cima e em baixo.

Argent não é 'argento', e sim prata, porque os esmaltes têm nomes vernáculos na armaria portuguesa.

Arranged não é 'arranjado', e sim alinhado, isto é, diz-se do modo como duas ou mais figuras estão no campo, uma em relação à outra.

Augmentation não é 'aumento', e sim acrescentamento, isto é, diz-se das armas que receberam certa peça ou figura depois do seu ordenamento originário.

Banded não é 'bandado', e sim atado, isto é, diz-se da figura que contém um objeto que a amarra.

Bar não é 'barra', e sim faixeta, isto é, diz-se da faixa diminuída a um terço da sua largura.

Barbed não é 'barbado', e sim apontado, isto é, diz-se da rosa cujas folhas têm esmalte diferente.

Barry não é 'barrado', e sim faixado e, acima de oito peças, burelado, isto é, diz-se do campo, da peça ou da figura que se divide em número par de faixas ou burelas.

Base não é 'base', e sim campanha (ou contrachefe ou ), isto é, a peça honrosa que se firma na ponta do escudo.

Battle cry não é 'grito de batalha', e sim grito de guerra, isto é, diz-se do ornamento externo, consistente numa legenda, que costuma figurar acima do timbre.

Bearded não é 'barbado', e sim caudato, isto é, diz-se da estrela que tem uma cauda ondulada, também dita cometa.

Bendy, acima de oito peças, não é 'bandado', e sim coticado, isto é, diz-se do campo, da peça ou da figura que se divide em número par de coticas.

Blazon não é 'brasão', e sim brasonamento, isto é, a descrição de um brasão em linguagem heráldica.

Bottony não é 'abotoado', e sim trilobado, isto é, diz-se do objeto cujas extremidades acabam em três lóbulos unidos.

Cabled não é 'cabeado', e sim cordoado, isto é, diz-se da âncora cuja amarra tem esmalte diferente.

Cadency não é 'cadência', e sim diferença (ou brisura), isto é, a peça ou figura que distingue as armas de um cadete das armas direitas, que pertencem ao chefe da linhagem.

Canting arms não são 'armas cantantes', e sim armas falantes, isto é, diz-se das armas que aludem ao nome do armígero.

Combattant não é 'combatente', e sim afrontado (ou batalhante), isto é, diz-se de duas figuras que estão voltadas para si mesmas.

Common charge não é 'carga comum', e sim figura, isto é, um desenho do que há no céu, na terra, nas águas ou da obra humana.

Compartment não é 'compartimento', e sim terraço, isto é, diz-se do ornamento externo abaixo do escudo, onde este fica repousado, assim como os suportes, se houver.

Conjoined não é 'conjuntado', e sim unido, isto é, diz-se de duas ou mais figuras juntas.

Contourned não é 'contornado', e sim voltado (ou volvido), isto é, diz-se da figura que está voltada para a sinistra.

Crest não é 'crista', e sim timbre, isto é, um emblema adicional, geralmente uma figura tirada das próprias armas (mas não necessariamente), que se põe acima do escudo.

Cypher não é 'cifra', e sim monograma, isto é, diz-se da combinação de letras (com número ou figura ou sem isso) que serve de insígnia pessoal a alguém.

Decrescent não é 'decrescente', e sim minguante, isto é, diz-se do crescente cujas pontas estão voltadas para a sinistra.

Disjointed não é 'disjuntado', e sim quebrado, isto é, diz-se da peça à qual falta um pedaço.

Embattled não é 'batalhado', e sim ameado, isto é, diz-se da peça cujo bordo superior tem forma de ameias.

Enflamed não é 'inflamado', e sim aceso, isto é, diz-se da figura cuja chama ou luz tem esmalte diferente.

Enraged não é 'enraivecido', e sim furioso, isto é, diz-se do touro que se ergue sobre as suas patas traseiras, suspendendo as dianteiras.

Eradicated não é 'erradicado', e sim arrancado, isto é, diz-se da planta cujas raízes têm esmalte diferente.

Escartelled não é 'esquartelado', e sim encravado, isto é, diz-se da partição que tem um ou mais encaixes em forma de ameia.

Escutcheon é 'escudo', mas a figura se denomina escudete em português. Em contrapartida, a peça denomina-se inescutcheon em inglês.

Eyed não é 'olhado', e sim animado, isto é, diz-se do animal cujo olho tem esmalte diferente.

Fimbriated não é 'fimbriado', e sim perfilado, isto é, diz-se da peça ou figura que tem um contorno de esmalte diferente.

Flanche não é 'flanco' nem flanche sinister é 'flanco sinistro', e sim adestrado e sinistrado, isto é, diz-se da pala firmada em um dos flancos, destro ou sinistro.

Flaunches não são 'flancos', e sim flanqueado, isto é, diz-se do campo que contém duas palas, cada uma firmada num flanco, em geral curvilíneas.

Flory não é 'florido', e sim florenciado, isto é, diz-se do objeto cuja extremidade acaba como as pétalas de uma flor de lis.

Foliated não é 'foliado', e sim folhado, isto é, diz-se da planta cujas folhas têm esmalte diferente.

Guardant não é 'guardante' (termo inexistente), e sim olhando para frente, isto é, diz-se da figura cuja cabeça está voltada para o observador. É a postura ordinária do leopardo, daí que não se brasone e se diga aleopardado do leão que olha para frente.

Gules não é 'goles', e sim vermelho, porque os esmaltes têm nomes vernáculos na armaria portuguesa.

Horned não é 'chifrudo', e sim armado, isto é, diz-se da figura cujos chifres têm esmalte diferente.

Impalement não é 'empalamento', e sim composição, especialmente aquela de dois brasões num escudo partido.

Indented não é 'endentado', e sim dentelado, isto é, diz-se da partição ou peça que está traçada em forma de dentes de serra.

Irradiated não é 'irradiado', e sim reluzente, isto é, diz-se da figura que solta raios de luz.

Issuing não é 'saindo', e sim movente, isto é, diz-se da figura parcialmente oculta pelo bordo do campo, por uma peça ou por outra figura.

Langued é linguado, isto é, diz-se do animal cuja língua tem esmalte diferente, mas com a exceção das aves é preferível dizer lampassado.

Legged não é 'pernado', e sim membrado, isto é, diz-se da ave cujas pernas e pés têm esmalte diferente.

Lined não é 'alinhado', e sim forrado, isto é, diz-se da figura cujo forro tem esmalte diferente.

Lozenge não é 'losango', e sim lisonja, isto é, a peça de terceira ordem que tem forma de losango.

Mantled não é 'mantelado', e sim paquife, isto é, o pano esvoaçante que cobre parcialmente o elmo.

Mullet é estrela, embora a estrela com um furo redondo se chame efetivamente moleta.

Nebuly não é 'nebulado', e sim nublado, isto é, diz-se da partição ou peça traçada em forma de entrâncias e reentrâncias onduladas, formando um padrão estilizado de nuvens.

Ordinary não é 'ordinário', e sim peça (honrosa ou de primeira ordem), isto é, certa figura geométrica, assim como subordinary é peça de segunda ordem.

Paly, acima de oito peças, não é 'palado', e sim verguetado, isto é, diz-se do campo, da peça ou da figura que se divide em número par de verguetas.

Parted não é 'partido', e sim geminado, isto é, diz-se da cruz formada por gêmeas.

Per bend é '(partido) em banda', mas é preferível dizer fendido, assim como talhado por per bend sinister, e não '(partido) em contrabanda'.

Per fess é '(partido) em faixa', mas é preferível dizer cortado.

Per pale é '(partido) em pala', mas é preferível dizer partido.

Per saltire é '(partido) em sautor', mas é preferível dizer franchado.

Piece of battlement não é 'peça de batalhamento', e sim pano de muralha (ou lanço de muralha), isto é, um desenho do trecho de uma muralha com as suas ameias.

Pily não é 'pilado', e sim emalhetado, isto é, diz-se da partição ou peça que está traçada em ziguezague, formando pontas cujo número é preciso expressar.

Plain não é 'plano', e sim liso (ou pleno), isto é, diz-se do campo que não contém nenhuma peça ou figura.

Point não é 'ponta', e sim pendente, isto é, diz-se das figuras que com a travessa formam o lambel, cujo número é preciso expressar.

Pointed não é 'pontudo', e sim aguçado, isto é, diz-se da figura cuja extremidade acaba em forma de ponta aguda.

Potent não é 'potente', e sim potenteia, isto é, diz-se da cruz cujas extremidades acabam em forma de tê.

Potenty não é 'potentado', e sim potenciado, isto é, diz-se da partição ou peça traçada em forma de tês.

Proper não é 'próprio', e sim de sua cor (ou ao natural), isto é, diz-se da figura pintada na sua cor natural.

Property não é 'propriedade', e sim atributo, isto é, um qualificador que muda a forma ordinária de certa partição, peça ou figura.

Quarter é 'quartel', mas a peça é o franco-quartel.

Recrossed não é 'recruzado', e sim recruzetada, isto é, diz-se da cruz cujas extremidades acabam em forma de cruz.

Regardant não é 'reguardante' (termo inexistente), e sim em fugida, isto é, diz-se da figura cuja cabeça está voltada para a sinistra.

Reversed não é 'revertido', e sim invertido, isto é, diz-se da peça ou figura voltada para o baixo.

Ribbon não é 'fita', e sim cotica (ou bastão), isto é, uma banda diminuta, assim como ribbon sinister não é 'fita sinistra', e sim travessa.

Ringed não é 'anelado', e sim argolado, isto é, diz-se do animal que traz arganel no seu focinho.

Roundel não é 'rodela', e sim arruela, isto é, a peça de terceira ordem que tem forma de círculo, pintado de cor.

Sable não é 'sable', e sim negro, porque os esmaltes têm nomes vernáculos na armaria portuguesa.

Salient não é 'saliente', e sim saltante, isto é, diz-se do bovídeo (bode, carneiro etc., exceto os bovinos, como o boi ou o búfalo, dos quais se diz espantado) que se ergue sobre as suas patas traseiras, suspendendo as dianteiras.

Seeded não é 'semeado', e sim abotoado, isto é, diz-se da rosa cujo botão tem esmalte diferente.

Sejant não é 'sejante' (termo inexistente), e sim sentado, isto é, diz-se da figura que está sentada.

Sexed não é 'sexuado', e sim vilenado, isto é, diz-se do animal cujos genitais têm esmalte diferente.

Statant não é 'estatante' (termo inexistente), e sim parado, isto é, diz-se do quadrúpede cujas patas estão no chão.

Terrace não é 'terraço', e sim terrado, isto é, a campanha que tem forma acidentada, à semelhança de um terreno natural.

Tincture não é 'tintura', e sim esmalte, isto é, a cor e o metal heráldicos.

Variation não é 'variação', e sim atributo, isto é, um qualificador que muda a forma ordinária de certa partição, peça ou figura.

Contudo, se a pessoa quer usar motto, em vez de motedivisalema etc., ou quer inventar coronete, em vez de coronel, não há o que fazer. Cabe reconhecer que o anglicismo tem uma força muito poderosa porque transmite uma imagem de modernidade para uma grande parte das pessoas, mesmo que o seu usuário não saiba falar inglês.

Notas:
(1) O De héraudie ou Tratado de Dean (Dean Tract) é um texto curto, de umas 1.350 palavras, que começa em verso e, depois do 53.º, segue e acaba em prosa. Como o códice (Cambridge, Univ. Lib, Ee.4.20) em que se conserva a única cópia contém outros tratados sobre várias matérias e provém da referida abadia, é provável que tenha sido elaborado para a instrução dos próprios monges. A citada editora o publicou em: HOLMES, Urban (ed.). Romance studies in memory of Edward Billings Ham. Hayward: California State College Publications, 1967, p. 21-29.
(2) Na história da língua francesa, quanto mais se remonta ao passado, mais a escrita reflete a fala. Assim, houve um tempo em que vert e vair se pronunciavam tal como se escrevem, mas a evolução da língua os tornou homófonos, isto é, /vɛʁ/.
(3) O sufixo -y é nativo, mas a sua produtividade no brasonamento inglês se deve claramente à semelhança com o do particípio passado francês, provavelmente por analogia com o sufixo -ty, de -té (-dade em português). Assim, de palé ('palado'), paly, como de propre ('propriedade'), property. Corrobora isto a raridade dos cognatos de -y nas demais armarias germânicas (por exemplo, em alemão: bogenförmig 'arqueado'; archy ou arched em inglês), nas quais se emprega habitualmente o particípio passado (outro exemplo em alemão: geschacht 'xadrezado'; mas checky em inglês).

08/01/24

ESTUDO DE ALGUMAS BANDEIRAS BRASILEIRAS: AS ORGANIZAÇÕES MILITARES

Faria bem à heráldica brasileira uma ampla revisão da emblemática militar e uma nova atitude das Forças Armas em relação à matéria.

Como tenho dito neste blog e repisado nesta série de postagens, a heráldica militar brasileira é, em geral, muito ruim. Das Forças Armadas, aquela que aplica esse código com maior correção é a Marinha. No Exército e na Força Aérea, um ou outro brasão se salva ou chega a ser aproveitável. O mesmo se há de dizer das bandeiras.

Complementando a bandeira-insígnia, que representa o exercício de certo comando, as organizações militares têm os seus próprios vexilos, mas não há padrão comum às três forças, nem mesmo padrões singulares dentro de cada uma. Por exemplo, a ICA 903-1, sobre os símbolos heráldicos do Comando da Aeronáutica, estabelece apenas que o estandarte de certa organização militar deve trazer o emblema dela. Portanto, o campo pode ter uma ou mais cores, diversamente arranjadas.

Ora, por que carregar uma bandeira de um brasão se é possível reproduzir qualquer brasão como bandeira? Como razoei na postagem anterior, a bandeira de armas é um recurso tradicional e correto. Não obstante, como a forma mais adequada para essa operação é o quadrado, o terço junto à tralha poderia consistir no padrão comum e singular. Para carregá-lo, nada mais apropriado que o Cruzeiro do Sul, o sinal heráldico do Brasil. Ilustrarei esta proposição a partir de dois brasões sobre os quais já discorri neste blog e um terceiro, que trarei aqui pela primeira vez.

Proposta de bandeira para a 10.ª Região Militar do Exército Brasileiro.
Proposta de bandeira para a 10.ª Região Militar do Exército Brasileiro.

Na postagem de 22/11/2021, fiz uma "leitura" das armas da 10.ª Região Militar do Exército Brasileiro, cujo comando está instalado na Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, em Fortaleza (CE). Brasonei essa leitura como segue: de prata com uma planta de uma fortaleza quadrada de azul, orlada e cheia de ouro, carregada de uma cruz da Ordem de Santiago. Como brasão singelo e belo, poderia perfeitamente transladar-se para uma bandeira quadrada. Dando-se-lhe forma retangular, o terço junto à tralha poderia ser verde.

Proposta de bandeira para o 3.º Distrito Naval da Marinha do Brasil.
Proposta de bandeira para o 3.º Distrito Naval da Marinha do Brasil.

Na postagem de 02/12/2021, dei as armas do 3.º Distrito Naval da Marinha do Brasil, cujo comando está instalado em Natal (RN). Brasonei-as assim: de azul com um pano de muralha de ouro, lavrado de negro, firmado nos flancos e num pé ondado de azul e prata, acompanhado em chefe de uma estrela caudata de um raio curvilíneo de prata. Como exemplo da melhor qualidade da heráldica da Marinha, poderia igualmente transladar-se para uma bandeira quadrada. Dando-se-lhe forma retangular, o terço junto à tralha poderia ser azul-marinho.

Proposta de bandeira para o 1.º Esquadrão do 11.º Grupo de Aviação (Esquadrão Gavião).
Proposta de bandeira para o 1.º Esquadrão do 11.º Grupo de Aviação (Esquadrão Gavião).

Agora dou as armas do 1.º Esquadrão do 11.º Grupo de Aviação, o Esquadrão Gavião, cuja sede está na Base Aérea de Natal, sita no município de Parnamirim (RN). Pelo que vejo no portal da FAB, fiz uma leitura que brasono assim: de azul com um gavião estendido de ouro, armado e bicado de vermelho, pousado num estoque de prata, empunhado de ouro e, brocante sobre o seu peito, um escudete gironado curvilíneo de vermelho e prata, de oito peças, com uma estrela de ouro brocante sobre tudo. É o melhor brasão de organização militar da FAB que consegui achar e, pela sua correção, poderia transladar-se para uma bandeira quadrada. Dando-se-lhe forma retangular, o terço junto à tralha poderia ser azul-celeste, assim como a cor do campo heráldico.

Recordo que o verde, o azul-marinho e o azul-celeste são as cores que vinculei respectivamente ao Exército, à Marinha e à FAB nas proposições de bandeiras que tenho feito ao longo desta série. Tendo o campo heráldico a mesma cor, um filete amarelo poderia separá-lo da faixa com o Cruzeiro do Sul.

Enfim, cabe ressalvar que este sistema funcionaria somente com brasões ao menos aceitáveis, o que não é o caso dos emblemas do Exército e da FAB na sua maior parte. Repito, pois, o que critiquei na dita postagem anterior: as Forças Armadas deveriam criar órgãos específicos para estudar academicamente e regular seriamente as matérias heráldica e vexilológica, o que daria, inclusive, azo a uma extensa e profunda revisão da emblemática vigente.

06/01/24

ESTUDO DE ALGUMAS BANDEIRAS BRASILEIRAS: OS PATRONOS DAS FORÇAS ARMADAS

A insígnia vexilar de um armígero é uma bandeira de armas.

Como eu disse na postagem de 02/01, os militares dão muita importância à honorificência: toques, continências e salvas formam parte fundamental das suas ideias e práticas. Daí que cada força tenha tomado um patrono, cuja memória é constantemente honrada, chegando por vezes a um culto da personalidade. Esses patronos são:

  • O Almirante Joaquim Marques Lisboa, marquês de Tamandaré (1807-97), patrono da Marinha do Brasil;
  • o Marechal de Exército Luís Alves de Lima e Silva, duque de Caxias (1803-80), patrono do Exército Brasileiro;
  • o Marechal do Ar Eduardo Gomes (1896-1981), patrono da Força Aérea Brasileira.

Brasão do duque de Caxias.
Brasão do duque de Caxias.

Apesar de o marquês e o duque terem vivido sob a monarquia, somente este recebeu brasão. Ainda assim, não se conserva a sua carta de armas. Conhecem-se tais armas graças à sua composição e à sua difusão, a saber, partido de dois e cortado de um: ao primeiro, as armas dos Silvas, que são em campo de prata um leão de púrpura, armado e lampassado de vermelho; ao segundo, as armas dos Fonsecas, que são em campo de ouro cinco estrelas de vermelho; ao terceiro, as armas antigas dos Limas, que são em campo de ouro quatro palas de vermelho; ao quarto, as armas dos Brandões, que são em campo de azul cinco brandões de ouro, acesos ao natural; ao quinto, as armas dos Soromenhos, que são em campo de vermelho um soromenho de verde, arrancado e frutado de prata, acompanhado de uma flor de lis e um crescente do mesmo em chefe; ao sexto, as armas dos Silveiras, que são em campo de prata três faixas de vermelho; por diferença, uma brica de prata com um farpão de negro.

Brasão do marquês de Tamandaré.
Brasão do marquês de Tamandaré.

Portanto, o brasão do marquês de Tamandaré é uma concessão póstuma, seguramente a única feita pelo estado brasileiro sob a república, mais precisamente mediante o Aviso n.º 1.753, de 26 de junho de 1957, do Estado-Maior da Armada. Ainda que a descrição e as reproduções tenham defeitos, brasono-o como segue: esquartelado, o primeiro de ouro com a Cruz da Ordem de Cristo, vazia do campo e firmada; o segundo de vermelho com cinco flores de ouro (trifólios?); o terceiro de prata com uma árvore de verde, frutada de ouro (uma oliveira?); o quarto de azul com dezenove estrelas de prata, postas como na insígnia da Imperial Ordem do Cruzeiro. Os desenhos mostram elmo, paquife, virol e, por timbre, um leopardo aleonado, mas o texto não os menciona. (1)

Consta, isto sim, que José Marques Lisboa, irmão do marquês, requereu brasão e recebeu mercê em 1847: um escudo esquartelado, ao primeiro as armas dos Limas; ao segundo, as dos Azevedos; ao terceiro, as dos Oliveiras; ao quarto, as dos Soutomaiores; por diferença, uma brica azul com uma torre de metal; timbre: o dos Limas. Tendo um irmão e o outro os mesmos progenitores, para o marquês bastaria trocar a figura que carrega a brica, mas levando em conta que o brasão ordenado em 1957 é uma homenagem prestada pelo próprio estado brasileiro, não há o que repreender, a não ser que urge reeditar o ato para suprir as suas deficiências textuais.

Proposta de brasão para o Marechal do Ar Eduardo Gomes.
Proposta de brasão para o Marechal do Ar Eduardo Gomes.

Com o mesmo espírito, desenvolvi uma proposta de brasão para o Marechal do Ar Eduardo Gomes. Na armaria portuguesa, há certos Gomes, que trazem em campo de azul um pelicano em sua piedade de ouro. Julguei um bom ponto de partida, já que o azul é a cor da FAB e um pássaro inspira outro: em vez do pelicano, uma águia, que representa comumente a aviação. Fazendo essa águia estendida, é um recurso consagrado sobrepor um escudete ao seu peito. Ora, o cocar da FAB evoca precisamente o escudo das armas nacionais com a estrela que o suporta. Tirei a bordadura com as estrelas, iluminei os perfis de prata e tudo resultou no brasão seguinte: de azul com uma águia estendida de ouro e uma estrela gironada de verde e ouro, perfilada de prata e carregada de um escudete redondo de azul, sobrecarregado de cinco estrelas de prata, postas como a constelação do Cruzeiro do Sul, e perfilado do mesmo, o todo brocante sobre o peito da águia. (2)

Não obstante, como o duque de Caxias e o marquês de Tamandaré têm os coronéis dos seus títulos, parecia justo engenhar um para Eduardo Gomes. Com efeito, em algumas armarias, inclusive na portuguesa, há o chamado coronel aeronáutico, que em vez de florões e pérolas é rematado por asas e estrelas. Similarmente, o coronel aeronáutico brasileiro poderia trazer em cima do aro quatro voos estendidos e o Cruzeiro do Sul de prata sobre cada um (visíveis um por inteiro e dois pela metade), alternados com quatro estrelas de seis raios de ouro (visíveis duas).

Bandeira de armas do duque de Caxias.
Bandeira de armas do duque de Caxias.

Vamos, pois, aos vexilos. O pavilhão do marquês de Tamandaré consta do Cerimonial da Marinha: é igual à bandeira do Cruzeiro e traz o brasão do marquês no cantão e, abaixo deste (em linguagem heráldica, no terceiro), cinco estrelas brancas, alinhadas na forma de um pentágono. A bandeira-insígnia e o estandarte "histórico" do duque de Caxias estão regulados respectivamente pelas Portarias n.os 1.277 e 1.278, de 21 de agosto de 2019, do Comando do Exército: ambos são panos brancos com as armas do duque no centro; a diferença é que o estandarte apresenta uma franja dourada e a bandeira-insígnia, um debrum desse metal. (3)

Bandeira de armas do marquês de Tamandaré.
Bandeira de armas do marquês de Tamandaré.

Apesar da preeminência das bandeiras nos cerimoniais das Forças Armadas, os militares demonstram, em geral, um conhecimento bastante raso de heráldica e vexilologia. Por exemplo, a bandeira real portuguesa era branca com as armas reais por razões que o estudo da matéria elucida: a reprodução dessas armas não no próprio campo da bandeira, mas sim como um escudo numa bandeira branca, deixava ver a coroa sobre esse escudo num momento em que o poder régio se fortalecia. Por que o branco? Porque corresponde à prata, que é o metal do campo (4).

Proposta de bandeira de armas para o Marechal do Ar Eduardo Gomes.
Proposta de bandeira de armas para o Marechal do Ar Eduardo Gomes.

Daí a pousar qualquer escudo sobre fundo branco para se fazer uma bandeira é desconhecer que se pode reproduzir qualquer brasão como bandeira, que isso era habitual na Idade Média e que ainda se pratica. A bandeira real mesma tinha tal forma antes de Dom Manuel I (1495-1521). Portanto, se com o vexilo do patrono a força armada quer honrar a memória dele em certas cerimônias, o recurso semiótico mais apropriado e correto é a bandeira de armas ou bandeira heráldica, isto é, transladar as armas a um pano quadrado, embora se possa igualmente adotar a forma retangular.

Na verdade, observe-se que o Exército editou dois atos, dando nomes diferentes (bandeira-insígnia e estandarte histórico) àquilo que, no fim das contas, é o mesmo objeto: o sinal vexilar do seu patrono. Para mim, é mais uma mostra de certo amadorismo ou achismo na hora de se fazerem as coisas. Em Portugal, a lei que regula a heráldica municipal acerta ao permitir duas formas para a mesma bandeira: estandarte, quadrado, de seda, com debrum, cordões e borlas, para desfiles e similares; bandeira de hastear, retangular, em filele, sem ornato, para hasteamento em mastro.

Mais que ficar emitindo normas de técnica sofrível, o que cada uma das Forças Armadas necessita é instituir um setor específico para atender às suas demandas semióticas, provê-lo de pessoal competente e dar-lhe condições de se capacitar seriamente na matéria.

Notas:
(1) Na armaria portuguesa e depois também na brasileira, os brasões dos titulados não costumavam trazer elmo, paquife, virol e timbre, pois o coronel do título ficava ordinariamente acima do escudo. Ainda assim, como desde o século XVIII se perdeu a noção de que o paquife é um pano recortado que forra o elmo, esse elemento passou a ornar também escudos timbrados com coronel, como se fossem folhagens.
(2) Na reprodução do brasão, usei o azul, mas na da bandeira, o azul-celeste, por coesão com as propostas de bandeiras para a FAB nas postagens antecedentes.
(3) O Exército Brasileiro qualifica certos estandartes de "históricos", mas isso sequer faz sentido em português, já que o adjetivo histórico quer dizer que algo existiu em dado momento, daí a locução bandeira histórica. Ora, não consta em nenhum lugar que o duque de Caxias tenha trazido um estandarte com as suas armas em campo branco. Tal estandarte é, na verdade, memorial.
(4) De prata com cinco escudetes de azul, postos em cruz e carregados de cinco besantes do campo, e uma bordadura de vermelho, carregada de sete castelos de ouro.