29/11/23

BANDEIRAS REVOLUCIONÁRIAS: ANDORRA

A bandeira tornou-se um símbolo imprescindível ao estado soberano.

Como diz o Manual Digest de les Valls Neutres d'Andorra (1748, cap.s III e XII), de Antoni Fiter i Rossell, os andorranos são "verdaders, propis i llegítims catalans", "no dependint en lo domini i governatiu ni en la via judicial de ningú altre que de sos amantíssims prínceps" ("verdadeiros, próprios e legítimos catalães", "não dependendo no domínio e governativo nem na via judicial de nenhum outro, a não ser de seus amantíssimos príncipes").

Bandeira de Andorra.
Bandeira de Andorra.

Os copríncipes de Andorra são o bispo de Urgell e o conde de Foix, que em 1278 firmaram, sob a fiança régia e a aprovação pontifícia, um pariatge, pelo qual partilharam "simul et comuniter" o senhorio dos vales. Os direitos e deveres do copríncipe laico passaram em 1479 ao rei de Navarra, em 1589 ao rei da França e em 1806 ao chefe do estado francês, independentemente do regime político, hoje presidente da República.

A identidade dos andorranos não se fundamentava, pois, na língua ou na religião, mas sim na defesa dos seus privilégios, usos, preeminências e prerrogativas, que os tornavam livres e cujos guardiães eram os copríncipes. Com efeito, ao entoar o seu hino, eles ainda cantam "creient i lliure vull ser: / siguin el furs mos tutors / i mos prínceps defensors!" ("crente e livre quero ser: / sejam os forais meus tutores / e meus príncipes defensores!").

Portanto, durante séculos Andorra não precisou de bandeira, mas Guillem d'Areny-Plandolit, barão de Senaller, percebeu que o mundo estava mudando. Eleito síndico geral dos Vales com a promessa de levar a cabo a reforma política que Josep Caixal, bispo de Urgell, já aprovara, viajou a Compiègne para obter a ratificação do imperador Napoleão III. Foi lá onde lhe apresentou também a bandeira tricolor, azul, amarela e vermelha. Tudo isso aconteceu no ano de 1866 e no seguinte Andorra participou da Exposição Universal de Paris. Compartilhando o mesmo pavilhão com Luxemburgo, Mônaco e San Marino, pode-se imaginar o quão estranho teria parecido aos visitantes um país sem nenhuma bandeira.

Contudo, acham-se tão poucos testemunhos da bandeira de Andorra pelo resto do século que é razoável supor um uso ocasional e vacilante entre o arranjo horizontal e o vertical, a tal ponto que em 1887, pouco depois de ser nomeado vicário (veguer) do copríncipe francês, Charles Romeu se viu constrangido a questionar o seu bailio (batlle) se as três cores da bandeira andorrana se dispunham como as da bandeira espanhola ou como as da bandeira francesa. Dele mesmo conserva-se uma descrição que fez em 1902 e coincide com a forma hodierna.

N.º 11 do Butlletí de la Societat Andorrana de Residents a Barcelona, que mostra a bandeira doada por essa entidade ao Conselho Geral dos Vales. As letras R.A. significam República Andorrana (imagem disponível no perfil da Biblioteca Nacional d'Andorra no Facebook).
N.º 11 do Butlletí de la Societat Andorrana de Residents a Barcelona, que mostra a bandeira doada por essa entidade ao Conselho Geral dos Vales. As letras R.A. significam República Andorrana (imagem disponível no perfil da Biblioteca Nacional d'Andorra no Facebook).

Deve-se a um novo movimento reformista a difusão da bandeira andorrana. Em 1930, a Societat Andorrana de Residents a Barcelona doou ao Conselho Geral dos Vales uma bandeira que contribuiu com a fixação das cores na vertical e o brasão no meio. Também foi essa sociedade que mormente propagou as ideias que levaram aos feitos de 1933: populares ocuparam a Casa de la Vall e forçaram o Conselho Geral a aprovar o sufrágio universal masculino (até então censitário).

N.º 12 do Butlletí de la Societat Andorrana de Residents a Barcelona, que ilustra a bandeira andorrana (imagem disponível na Brevíssima història de la premsa andorrana, de Alba Doral).
N.º 12 do Butlletí de la Societat Andorrana de Residents a Barcelona, que ilustra a bandeira andorrana (imagem disponível na Brevíssima història de la premsa andorrana, de Alba Doral).

Todavia, o pariatge que fundou e sustentou a "neutralidade" de Andorra também refreou o desenvolvimento das suas instituições, porque amiúde um copríncipe encarava com desconfiança o apoio do outro a certa medida modernizante, temendo que encobrisse um plano expansionista. Assim, Andorra chegou ao fim do século XX sem sequer manter relações diplomáticas com outros países além da Espanha e da França. Cabia, pois, ajustar o regime do coprincipado à contemporaneidade e torná-lo inteligível à comunidade internacional. Para tanto, era evidente que faltava uma constituição.

A constituição do Principado de Andorra foi adotada em 1993. O artigo 2 diz que o hino, a bandeira e o brasão são "os tradicionais". A lei que desenvolve esse dispositivo foi passada em 1996 e é um tanto curiosa, porque todo o articulado versa sobre o uso (e ainda se desdobra em um "regulamento de execução", a versão mais recente de 2022), enquanto as formas do brasão e da bandeira se acham no anexo. Sobre esta, permite-se a omissão do brasão "em certos formatos reduzidos ou específicos, como as fitas". Para a reprodução e aplicação desses dois símbolos, há um "livro de normas gráficas" (1999), pelo qual se fica sabendo que as faixas da bandeira não têm o mesmo tamanho, já que a central é ligeiramente maior.

Já a Revue moderne (tomo 40.º), ao noticiar a recepção do barão de Senaller em Compiègne, explica que a bandeira andorrana combina as cores francesas e espanholas"le bleu représentera la France, le jaune, la République, le rouge, l'Espagne" ("o azul representará a França, o amarelo, a República, o vermelho, a Espanha"; o termo "República" deve-se à dificuldade de entender o regime andorrano). Para um estado que subsistia equilibrando-se entre essas duas potências, fazia e ainda faz muito sentido.

Armas de Andorra (imagem disponível no portal do governo andorrano).
Armas de Andorra (imagem disponível no portal do governo andorrano).

É, porém, igualmente verdadeiro que o ouro, o vermelho e em muito menor medida o azul estão presentes no brasão de Andorra. É que neste caso os esmaltes das armas do condado de Foix (três palas de vermelho em campo de ouro) e daquelas do viscondado de Béarn (duas vacas de vermelho, armadas, unhadas, coleiradas e chocalhadas de azul, uma sobre a outra, em campo de ouro) coincidem com o amarelo e o vermelho da bandeira espanhola, que em parte vêm das armas do reino de Aragão (quatro palas de vermelho em campo de ouro), também presentes no brasão andorrano. Até a mitra e o báculo no primeiro quartel, alusivos à sé de Urgell, acabaram iluminados dessa cor e metal.

Indubitável é que a forma da bandeira andorrana replica a francesa. Se por um lado isso a assemelha às bandeiras da Romênia, da Moldávia e do Chade, por outro a vertical dá mais espaço ao brasão, o elemento distintivo.

27/11/23

BANDEIRAS REVOLUCIONÁRIAS: ROMÊNIA

Bandeiras revolucionárias tornam-se muito potentes quando representam povos que lutam por união e soberania.

Não à toa, é frequente confundir A liberdade guiando o povo com uma cena da Revolução Francesa ou mesmo da Primavera dos Povos, quando o autor, Eugène Delacroix, pintou uma cena das Três Gloriosas. É que essa segunda revolução se releva tanto quanto a primeira e preparou a terceira. Com efeito, a de 1789 findou uma era e a de 1830 firmou que já não se aceitava sequer a outorga de carta constitucional pelo soberano, pois se a república ainda lembrava o terror revolucionário, era à nação que o monarca devia a sua dignidade. Em 1848, até a abolição da escravidão, o sufrágio universal (masculino) ou a liberdade de expressão se fizeram valores inegociáveis e o regime republicano deixou de ser um tabu.

Bandeira da Romênia.
Bandeira da Romênia.

A bandeira da Romênia surgiu precisamente nesse momento, em que já não se podiam conter os ideais revolucionários. As cores foram concedidas em 1835 por edito do sultão Mamude II a pedido de Alexandre II Ghica, príncipe da Valáquia: aos navios mercantes, "steag cu fața galbenă și roșie, având pe dânsul și stele și la mijloc pasăre albastră cu un cap" ("bandeira com a face amarela e vermelha, tendo nela estrelas e no meio um pássaro azul com uma cabeça"); ao exército, "alt steag însă: pe jumătatea cea de sus roșie iar cealaltă jumătate albastră și galbenă, având și aceste stele și pasăre cu un cap la mijloc" ("outra bandeira, porém: na metade de cima vermelha e a outra metade azul e amarela, tendo também essas estrelas e um pássaro com uma cabeça no meio") (1). Mas Anuarul Prințipatului Țări Rumânești testemunha em 1842 que a bandeira militar sofrera alterações: as faixas horizontais tinham o mesmo tamanho, com o amarelo no meio e o brasão valaco sobreposto.

"Oștirea pământenească" ("Exército nacional") no Anuarul Prințipatului Țări Rumânești (1842).
"Oștirea pământenească" ("Exército nacional") no Anuarul Prințipatului Țări Rumânești (1842).

Os três impérios que dominavam então a Europa oriental dividiam os romenos: os principados da Moldávia e da Valáquia estavam sob suserania otomana e proteção russa e o principado da Transilvânia fazia parte da monarquia dos Habsburgos. Na verdade, a Moldávia e a Valáquia tinham um status muito particular, já que pelo Tratado de Adrianópole (1829) o sultão e o tsar acordaram outorgar-lhes um "regulamento orgânico" que, sob a aparência de uma constituição, mantinha a sujeição de ambos às duas potências, de modo mais direto à Rússia.

No entanto, à medida que o nacionalismo romeno se desenvolvia, incomodava mais e mais a ideia do protetorado russo sobre os cristãos ortodoxos do Império Otomano, porque à diferença dos sérvios e búlgaros, que são, como os russos, povos eslavos, os romenos foram percebendo-se falantes de uma língua neolatina, tanto que os seus historiadores chamam a esse período Renașterea ('o Renascimento'), dando a entender que a consciência nacional se tinha perdido e então novamente recobrado. (2)

"Constituição em Bucareste de 11 de junho, ano de 1848", de Costache Petrescu, 1848 (imagem disponível no catálogo da exposição Revoluția Română de la 1848).
"Constituição em Bucareste de 11 de junho, ano de 1848", de Costache Petrescu, 1848 (imagem disponível no catálogo da exposição Revoluția Română de la 1848).

Assim, em 11 de junho de 1848 Jorge III Bibescu, príncipe da Valáquia, viu-se forçado a assinar a Proclamação de Islaz, que em meio a um extenso programa diz: "Adunați-vă cu toții sub steagurile patriei. Cele trei culori naționale vă sunt curcubeul speranțelor. Crucea ce e deasupra lor va aduce aminte Rusiei că e creștină" ("Uni-vos com todos sob as bandeiras da pátria. As três cores nacionais são o vosso arco-íris de esperanças. A cruz que está acima delas lembrará a Rússia de que é cristã"). Dois dias depois o príncipe abdicou e a 14 o primeiro decreto do governo provisório estabeleceu a bandeira nacional: azul, amarela e vermelha com a "divisa romena", isto é, Dreptate și Frăție ("Justiça e Fraternidade"). Como a descrição falhava, no mês seguinte editou-se outro decreto, que precisou: "Lângă lemn vine albastru, apoi galben și apoi roșu fâlfâind" ("Ao lado da haste vem o azul, depois o amarelo e depois o vermelho tremulando").

Pavilhão mercante da Valáquia no Album des pavillons... (1858), de Alexandre Le Gras.
Pavilhão mercante da Valáquia no Album des pavillons... (1858), de Alexandre Le Gras.

Vencida a revolução, o Império Otomano e a Rússia firmaram em 1849 a Convenção de Balta Liman, que anulou a autonomia da Moldávia e da Valáquia, mas em 1853 estourou outra guerra entre aquelas potências — a Guerra da Crimeia — que os otomanos ganharam graças à aliança com a França e a Grã-Bretanha. Seguiram-se a Paz e a Convenção de Paris, respectivamente em 1856 e 1858, que prepararam a união dos dois principados: em janeiro do ano seguinte, tanto os moldavos como os valacos elegeram Alexandre João Cuza príncipe. O novo estado, que se chamava oficialmente Principados Unidos Romenos e comumente Romênia, foi reconhecido pelo Estatuto de 1864.

Bandeira do Regimento 7.º de Infantaria de Linha, modelo de 1863 (conservada em Muzeul Național de Istorie a României).
Bandeira do Regimento 7.º de Infantaria de Linha, modelo de 1863 (conservada em Muzeul Național de Istorie a României).

Entrementes, consta que em junho de 1861 Alexandre João decretou o modelo do pavilhão para os navios mercantes de ambos os principados e Monitorul, o jornal oficial, registra que em setembro de 1863 ele distribuiu as bandeiras novas ao exército: "aquelas que foram adotadas ao se efetuar a União: elas trazem as três cores e a gravata azul; têm por cima a inscrição Honra, Pátria e a águia romena trazendo a cruz na boca". Essas cores dispunham-se horizontalmente, o vermelho em cima, o amarelo no meio e o azul em baixo.

Pavilhões da Romênia no Flags of maritime nations (1914).
Pavilhões da Romênia no Flags of maritime nations (1914).

Finalmente, em fevereiro de 1866 um golpe de estado forçou Alexandre João a abdicar, em seguida a assembleia dos deputados elegeu Carlos de Hohenzollern-Sigmaringen príncipe e adotou uma constituição (3), cujo artigo 124 diz que "as cores dos Principados Unidos continuam a ser azul, amarelo e vermelho". No ano seguinte, passou-se uma lei que estabeleceu as armas e a bandeira da Romênia (agora oficialmente assim denominada): "albastru perpendicular și alături cu hampa (lemnul stindardului), galbenul în mijloc, roșul la margine flotând" ("o azul perpendicular e junto ao mastro (a haste do estandarte), o amarelo no meio, o vermelho na borda flutuando").

Desde então, o arranjo cromático da bandeira romena permaneceu inalterado; o que se alterou várias vezes foi o brasão/emblema estatal e a sua presença na bandeira. A lei de 1867 punha-o no meio das bandeiras do príncipe (rei desde 1881) e do exército, também no pavilhão de guerra, mas o omitia na bandeira "das autoridades civis" e no pavilhão mercante. O regime socialista, instaurado com o apoio da União Soviética por um golpe de estado que forçou a abdicação do rei Miguel em 1947, carregou o centro da bandeira nacional com o emblema da república, que mudou por três vezes.

Bandeira com buraco em Bucareste, 23 de dezembro de 1989 (imagem disponível no blog Republica).

Durante a Revolução de 1989, que ocorreu de 15 a 22 de dezembro, os manifestantes cortavam o emblema comunista, fazendo um buraco na faixa amarela da bandeira. Após a queda e execução do ditador Nicolae Ceaușescu, a Frente de Salvação Nacional estabeleceu no dia 27 pelo seu segundo decreto-lei que "a bandeira do país é a tricolor tradicional da Romênia", sem emblema, o que foi confirmado pela Constituição de 1991 (revista em 2003). A lei vigente sobre a forma e o uso da bandeira, do hino e do selo nacionais data de 1994.

Armas da Romênia (imagem disponível no website do presidente da Romênia).

Quanto ao brasão, foi restaurado por lei em 1992. Digo "restaurado" porque o ordenamento é quase o mesmo das pequenas armas de cem anos antes: por lei de 1921, modificaram-se as armas estatais pela segunda vez (a primeira se dera em 1872), agora para refletir a Grande União (Marea Unire), isto é, a união da Bessarábia, da Bucovina e da Transilvânia com o Reino da Romênia na sequência das dissoluções dos impérios russo e austro-húngaro, em 1919. As diferenças reduzem-se a três: hoje é a coroa de aço que cinge a cabeça da águia e não há escudete dinástico sobre o todo nem coroa acima do escudo.

Além disso, as armas da Romênia têm uma curiosa relação com a bandeira. Como noutras partes da Europa ortodoxa, a heráldica romena desenvolveu-se tardiamente, embora o uso do selo seja antigo. Assim, tanto a águia valaca como o encontro de uro moldavo estão atestados desde a segunda metade do século XIV, mas as suas iluminuras apresentam grande variação até a lei de 1872, que demonstra terem servido as cores nacionais à fixação dos esmaltes: o primeiro e quarto quartéis são de azul, o segundo e terceiro de vermelho e todas as figuras de ouro. No ordenamento de 1921 e atual, apenas o encontro de uro e a águia transilvana têm cor diferente, preto, também algumas figuras secundárias de prata.

Ressalvadas as tonalidades, a bandeira da Romênia é igual à do Chade. Contra isso, as autoridades do país africano protestaram mais de uma vez, entendendo que a sua tricolor precede, dado que à época da adoção, em 1959, a romena trazia o emblema estatal. Debalde, já que os romenos remontam a sua bandeira ao Renascimento Nacional, no século XIX, e falta direito aplicável.

Notas:
(1) A expressão "cu un cap" ("com uma cabeça") provavelmente visava a distinguir a águia valaca da águia dicéfala bizantina.
(2) A própria língua reflete a construção da identidade nacional romena, pois enquanto preponderava a religião e vigorava o protetorado russo, o léxico culto do romeno tinha tantos vocábulos de origem eslava que torna qualquer discurso oficial completamente ininteligível para falantes de outras línguas românicas. Mas depois que o nacionalismo romeno enveredou pelo historicismo, buscou-se na França não só um modelo de estado e sociedade, mas na língua francesa a referência para "relatinizar" o romeno. Por exemplo, até o principado de Alexandre João Cuza os textos citados aqui trazem a palavra steag para 'bandeira', do eslavo eclesiástico stěgŭ, mas da lei de 1867 em diante se preferem pavilion e drapel, do francês pavillon e drapeau.
(3) Ainda que essa constituição não mencione a vassalagem ao sultão nem tenha sido submetida à Sublime Porta, o parlamento romeno só declarou a independência do país em maio de 1877, quando começava a derradeira guerra russo-turca. Foi reconhecida pelo Tratado de Berlim (1878), que pôs fim a essa guerra.

25/11/23

BANDEIRAS CONTRARREVOLUCIONÁRIAS: SAN MARINO

Na Era Contemporânea, ideias antigas receberam significados e signos novos.

Durante quase 450 anos, os samarineses associaram-se, como tantas outras sociedades do Antigo Regime, pelas liberdades de que gozavam. O seu pretenso senhor, o bispo de Montefeltro, reconheceu tais liberdades em 1351, mas em 1797 eles se viram cercados pelo exército francês com os seus topes tricolores, que não representavam os interesses de um soberano, mas a causa da nação.

Bandeira de San Marino.
Bandeira de San Marino.

Apesar da ameaça, Napoleão Bonaparte dispensava notável deferência a San Marino, o que assegurou a sua independência em meio à queda de todos os demais estados na península até dezembro de 1798. Três causas podem ter concorrido para tal. A primeira, a pequenez territorial e modéstia econômica: era um paisinho rural. A segunda, a imagem que os samarineses fazem de si mesmos: até hoje se dizem cidadãos da república mais antiga do mundo, já que a remontam ao ano de 301, quando o santo que lhe dá nome — São Marinho — a teria fundado livre "ab utroque homine" ("dos dois homens", isto é, do papa e do imperador); mais que isso: os estatutos de 1600 têm o caráter moderadamente democrático que o próprio Napoleão defenderia no seu consulado e império, tanto que permanecem em vigor. A terceira, a diplomacia de Antonio Onofri, um dos dois capitães regentes de outubro de 1796 a março de 1797.

Seja como for, desde então os samarineses tiveram de buscar outros elementos para se diferençarem dos italianos. Assim, em fevereiro do dito ano de 1797, apenas um mês após o Segundo Congresso Cispadano ter adotado a bandeira e o tope das cores verde, branca e vermelha, o Conselho Príncipe e Soberano (como se chamava então o Conselho Grande e Geral) resolveu que o tope nacional de San Marino deveria ser branco e turqui.

Anexo à Legge pel corpo consolare della Repubblica de San Marino, 1892 (imagem disponível em Spunti di riflessione e aneddoti sullo stemma di San Marino, de Silvia Rossi, 2014).
Anexo à Legge pel corpo consolare della Repubblica de San Marino, 1892 (imagem disponível em Spunti di riflessione e aneddoti sullo stemma di San Marino, de Silvia Rossi, 2014).

Embora nas atas do dito Conselho Príncipe conste que se içou uma bandeira com as cores samarinesas sobre a Primeira Torre em 1829 e que os oficiais e suboficiais das milícias juravam não conhecer e não ter outras cores, mas somente as duas da bandeira da república desde 1854, a primeira norma que mostra e descreve essa bandeira é o anexo à lei para o corpo consular de 1892. Mesmo a lei que regulou o seu uso em 1936 se cinge à matéria do título. A matéria da forma ficou sem tratamento legislativo próprio até 2011, quando o Conselho Grande e Geral passou uma lei constitucional que, na verdade, junta a bandeira e o brasão à Declaração de direitos dos cidadãos e dos princípios fundamentais do ordenamento samarinês, que serve de modernização constitucional a San Marino.

Armas de San Marino, conforme a Lei Constitucional de 22 de julho de 2011, n.º 1.
Armas de San Marino, conforme a Lei Constitucional de 22 de julho de 2011, n.º 1.

O brasão de San Marino está atestado na forma de selo desde a primeira metade do século XIV, o Conselho Príncipe resolveu timbrar o escudo com coroa fechada em sinal de soberania em 1862 e o brasonamento e a reprodução oficiais mais antigas acham-se no referido anexo à lei de 1892. Em 1931, a lei sobre o estado nobiliário estabeleceu que o brasão com a coroa fechada só podia ser usado pelas agências públicas do estado. Isso ensejou a interpretação de que aos cidadãos cabia usar da bandeira sem o brasão, porém a lei de 2011 deixa claro que a bandeira samarinesa é uma só: "La bandiera della Repubblica di San Marino è composta da due campi, divisi in orizzontale, in alto bianco, in basso azzurro, al cui centro figura lo stemma ufficiale" ("A bandeira da República de San Marino é composta de dois campos, divididos na horizontal, em cima branco, em baixo azul, em cujo centro figura o brasão oficial").

23/11/23

BANDEIRAS CONTRARREVOLUCIONÁRIAS: VATICANO

A representação do estado por cores é tão revolucionária que teve de ser adotada até pelos seus opositores.

É de conhecimento geral que o Vaticano é o menor estado soberano do mundo. Como os demais microestados europeus, é remanência de uma sociedade ordenada por laços de vassalagem que se escalavam até o príncipe, diferentemente da sociedade contemporânea, já que desde a Revolução Francesa o ideal é formar uma nação e constituir um estado. Daí que Andorra, Liechtenstein, Luxemburgo, Mônaco e San Marino tenham precisado construir identidades nacionais diferentes da catalã, austríaca, alemã, francesa e italiana.

Bandeira do Vaticano.
Bandeira do Vaticano.

Com efeito, se hoje ainda estranha que haja uma cidadania vaticana, quando no Vaticano falta população nativa, na Itália pré-unitária, onde abundava essa população, porque os Estados da Igreja se estendiam do Lácio à Romanha, devia parecer cada vez mais incompatível a constituição de um estado-nação com o poder temporal do papa.

Assim, em fevereiro de 1808, o exército francês ocupou Roma pela segunda vez depois da Revolução. Diferentemente da primeira, dez anos antes, toda a península estava agora sob domínio direto ou indireto de Napoleão Bonaparte, quem, embora se tivesse feito monarca, ainda representava os ideais revolucionários. Em face destes, o Estado Pontifício era, portanto, o maior antípoda, o que se mostrava nos topes multicolores.

Armas de Roma (imagem disponível no Manuale d'identità visiva do município).
Armas de Roma (imagem disponível no Manuale d'identità visiva do município).

Assim, à incorporação das milícias pontifícias nas forças ocupantes Pio VII reagiu mudando o seu tope, o que tornou público em março por comunicado aos embaixadores junto à Santa Sé. É que o general Sextius de Miollis, comandante da ocupação, querendo lograr a lealdade dessas milícias ao sumo pontífice, preservou o tope vermelho e amarelo, dando a entender que o soberano consentia com a dita incorporação.

Tapeçaria de Pieter van Aelst para o frontal do dossel de Clemente VII, 1525-30 (conservada nos Museus Vaticanos; imagem disponível em La Venaria Reale). Observe-se que cada leão segura um gonfalão da Igreja.
Tapeçaria de Pieter van Aelst para o frontal do dossel de Clemente VII, 1525-30 (conservada nos Museus Vaticanos; imagem disponível em La Venaria Reale). Observe-se que cada leão segura um gonfalão da Igreja.

O tope vermelho e amarelo fora assumido logo depois da restauração do Estado Pontifício, em 1801, e tinha cores heráldicas, pois as armas de Roma são de vermelho com uma cruzeta e as letras SPQR de ouro (1), alinhadas em banda, se bem que combinava também com as armas da Santa Sé: de vermelho com duas chaves decussadas e uma umbela, tudo de ouro. Essas armas apareciam principalmente sob duas formas: uma, a chamada pala da Igreja, que o capitão-general e o gonfaloneiro acrescentavam às suas armas, assim como as casas nobres que davam bispos à sé romana; a outra é referida pelo nome (vexillifer em latim) do segundo desses oficiais, a saber, o gonfalão da Santa Igreja Romana (vexillum Sanctæ Romanæ Ecclesiæ).

Armas do Vaticano (imagem disponível no portal da Santa Sé).
Armas do Vaticano (imagem disponível no portal da Santa Sé).

Com efeito, até hoje as armas do Vaticano são, segundo a lei fundamental, as "chiavi decussate sormontate del triregno in campo rosso" ("chaves decussadas encimadas do trirregno em campo vermelho"). Com maior precisão caberia brasonar as figuras como segue: duas chaves, uma de prata, guarnecida de ouro, e a outra de ouro, guarnecida de prata, passadas em aspa, atadas com cordões de ambos os metais e encimadas de um trirregno, o corpo e as ínfulas de prata e as coroas, cruzetas e franjas de ouro. (2)

Pavilhões do Estado Pontifício no Album des pavillons... (1858), de Alexandre Le Gras.
Pavilhões do Estado Pontifício no Album des pavillons... (1858), de Alexandre Le Gras. (3)

Os dois metais, que iluminam o emblema da Santa Sé na bandeira e nas armas estatais, forneceram, pois, as cores amarela e branca do novo tope de Pio VII, cujo sucessor, Leão XII, as estendeu à marinha mercante do Estado Pontifício por notificação do cardeal camerlengo em 1825: "A bandeira pontifícia, que todos os navios do Estado de comércio e de pesca deverão doravante arvorar, será na metade presa à haste de cor amarela e de cor branca na outra metade, em cujo meio será pintado o trirregno com as chaves". Até então, esse pavilhão fora branco com o dito emblema, como branco permaneceu o pavilhão naval, que trazia as imagens dos Santos Pedro e Paulo encimadas do mesmo emblema.

Estandarte da Guarda Palatina de Honra, 1859-78 (imagem disponível no Patrons of the Arts in the Vatican Museums).
Estandarte da Guarda Palatina de Honra, 1859-78 (imagem disponível no Patrons of the Arts in the Vatican Museums).

Embora nas fortalezas se içasse uma bandeira branca com as armas do pontífice reinante, a concessão de estandartes amarelos e brancos aos corpos armados desde 1831 demonstra que o pavilhão mercante era o mais representativo do Estado Pontifício. Com efeito, uma bandeira semelhante, com o emblema da Santa Sé no meio, tremulava sobre a Porta Pia em setembro de 1870, quando o exército italiano abriu uma brecha na muralha ao lado dela e tomou Roma, acabando de conquistar os Estados da Igreja.

Finalmente, após quase sessenta anos de dissenso, Vítor Manuel III e Pio XI estipularam em fevereiro de 1929 o Tratado de Latrão, pelo qual a Itália reconhece a soberania da Santa Sé e se criou a Cidade do Vaticano para o exercício dessa soberania. Em junho, o pontífice máximo outorgou uma lei fundamental ao novo estado, a qual recobrou o pavilhão mercante do Estado Pontifício, fazendo dele a bandeira vaticana: "constituída por dois campos divididos verticalmente, um amarelo aderente à haste e o outro branco, e traz neste último a tiara com as chaves".

Anexo A à Lei Fundamental do Estado da Cidade do Vaticano.
Anexo A à Lei Fundamental do Estado da Cidade do Vaticano.

A bandeira do Vaticano apresenta duas curiosidades. A primeira diz respeito à forma, pois desde a versão originária da lei fundamental o anexo A mostra uma bandeira cerimonial: é quadrada e está presa a uma haste ornamentada, da qual pende uma gravata das mesmas cores. Em 1929, quando se fez esse desenho, deviam-se efetivamente esperar usos internos para a bandeira de um estado que não dispunha de ambientes para os usos externos de então, como fortalezas e águas navegáveis.

Papa Francisco embarcando no Aeroporto Internacional de Roma em setembro de 2022 para o Cazaquistão (imagem disponível no Vatican News). Observe-se que a proporção da bandeira vaticana é igual à da italiana, isto é, 2:3.
Papa Francisco embarcando no Aeroporto Internacional de Roma em setembro de 2022 para o Cazaquistão (imagem disponível no Vatican News). Observe-se que a proporção da bandeira vaticana é igual à da italiana, isto é, 2:3.

A segunda curiosidade decorre de um paradoxo: apesar de constituir o menor estado independente, o soberano do Vaticano encabeça uma congregação de 1,378 bilhão de batizados (2021). Daí que a bandeira vaticana seja talvez a mais presente fora do país que representa, pois por toda a parte é fácil vê-la hasteada em igrejas, permanentemente ou por ocasião de certa festa. Além disso, o desenvolvimento do transporte aéreo de passageiros, coincidente com o pontificado de São Paulo VI (1963-78), fez do papa um dos chefes de estado que mais viajam pelo mundo todo e o líder espiritual que nessas viagens ajunta as maiores multidões. Esses usos tornaram a proporção de 2:3 a mais habitual da bandeira vaticana na atualidade.

Bandeira do Vaticano hasteada no adro da igreja matriz durante a Festa de Sant'Ana (de 16 a 26 de julho) em Currais Novos (RN), 2023 (imagem disponível no perfil da paróquia no Instagram).
Bandeira do Vaticano hasteada no adro da igreja matriz durante a Festa de Sant'Ana (de 16 a 26 de julho) em Currais Novos (RN), 2023 (imagem disponível no perfil da paróquia no Instagram).

Resta, enfim, uma questão interessante. O sujeito de direito internacional público não é o Estado da Cidade do Vaticano, mas sim a Santa Sé, ainda que na linguagem corrente vigore a metonímia de se referir um pelo outro. O Vaticano é, propriamente, o território que garante a soberania da Santa Sé, tanto que essa soberania extrapola a muralha leonina, abrangendo uma série de zonas extraterritoriais, e é a Santa Sé que mantém relações diplomáticas com outros sujeitos de direito internacional. Contudo, as chaves com a tiara são o seu único emblema, de modo que à falta de uma bandeira da Igreja os católicos têm recorrido cada vez mais à do Vaticano quando se põe a necessidade de desfraldar uma. 

Notas:
(1) É praticamente consensual a interpretação de que essas letras significam Senatus Populusque Romanus, isto é, 'O Senado e o Povo de Roma", uma espécie de nome oficial do estado romano.
(2) Confesso que esse tópico é discutível. Fora do escudo, as chaves e o trirregno assinalam a dignidade pontifícia e, assim, não demandam um brasonamento detalhado, pois são consabidas as suas formas e iluminura. Dentro do escudo, tornam-se, porém, figuras e, como tais, cumpre brasoná-las com precisão. A questão é: o quanto?
(3) I. Pavilhão papal; II. Pavilhão de guerra; III. Pavilhão do pontífice reinante; IV. Pavilhão das Finanças; V. Pavilhão dos barcos de pesca; VI. Pavilhão de pilotos; VII. Corneta de comando; VIII. Jaque; IX. Flâmula de guerra; X. Flâmula das Finanças.

21/11/23

BANDEIRAS REVOLUCIONÁRIAS: ITÁLIA

À falta de cores heráldicas que ajudem a construção da nação, uma bandeira revolucionária ganha grande força.

É verdade que durante a Idade Moderna a Itália foi o lugar onde se encontravam os interesses do Sacro Império, da França e da Espanha: à véspera da campanha revolucionária no fim do século XVIII, monarcas que ou se entroncavam ou se enlaçavam com as casas de Habsburgo e de Bourbon governavam todos os estados italianos, salvo os eclesiásticos e as repúblicas. Isso se mostrava nos pavilhões: por exemplo, o da Toscana tinha três faixas horizontais, vermelha, branca e vermelha, com as armas grão-ducais, tal como o austríaco, e o de Nápoles era branco com as armas reais, tal como o espanhol até 1785.

Bandeira da Itália.
Bandeira da Itália.

Entretanto, é igualmente verdadeiro que houve uma unificação cultural muito antes da unificação política, graças a três fatores. O primeiro é a geografia, porque o arco alpino e a forma peninsular delimitam naturalmente o território. O segundo é a memória histórica, porque os romanos chamavam Itália a essa península e tal noção nunca foi esquecida. O terceiro é o idioma, porque as obras de Dante Alighieri (1265-1321), Francesco Petrarca (1304-74) e Giovanni Boccaccio (1313-1375) deram o máximo prestígio ao dialeto florentino, de modo que outros escritores começaram a empregá-lo fora da Toscana já no século XV e desde meados do século seguinte serviu cada vez mais de língua oficial aos vários estados, tornando-se com o tempo a língua italiana.

É, pois, compreensível que, mesmo comandando uma invasão estrangeira, boa parte dos italianos, especialmente os intelectuais, tenha acolhido o jovem general Napoleão Bonaparte, que atravessou os Alpes para combater a coalizão contrarrevolucionária. Ora, assim como poucos anos antes os franceses tinham abolido primeiro os institutos da sociedade estamental e depois a própria monarquia (além de terem chegado a decapitar o rei), a derrota das potências que dividiam a Itália infundia nos italianos a esperança de constituir um estado cujos cidadãos, iguais em dignidade e direitos, deveriam a sua lealdade apenas à própria nação.

Com efeito, o gênio de Napoleão não basta, mas é o substantivo apoio interno que explica a queda de todos os monarcas na península ao cabo de três anos: em maio de 1796 o arquiduque Fernando da Áustria, que governava Milão em nome do imperador, fugiu; o duque Fernando I de Parma ficou preso no seu próprio palácio e o duque Hércules III de Módena partiu para o exílio, também o grão-duque Fernando III da Toscana em março de 1799; em fevereiro de 1798 o papa Pio VI foi detido e faleceu em agosto do ano seguinte, durante o cárcere na França; em dezembro de 1798 os reis Carlos Manuel IV da Sardenha e Fernando IV de Nápoles refugiaram-se em Cagliari e em Palermo.

Na verdade, nem mesmo as repúblicas escaparam, já que eram tão aristocráticas quanto as monarquias. O Maior Conselho dissolveu a República de Veneza em maio de 1797 e o Menor Conselho conveio a transição da República de Gênova para o regime constitucional em junho; em janeiro de 1799 impôs-se o mesmo à República de Luca. Esse regime emulava a constituição francesa do ano 3, daí a expressão república irmã, que dissimulava a realidade: as repúblicas irmãs serviam de estados-satélites à França.

Estandarte regimental da República Cisalpina (conservado no Museo del Risorgimento, Milão).
Estandarte regimental da República Cisalpina (conservado no Museo del Risorgimento, Milão).

Seja como for, a emulação abrangia a escolha de três cores para representar os ideais revolucionários: a República Romana adotou o branco, o vermelho e o preto; a República Cisalpina, o verde, o branco e o vermelho; a República Napolitana, o azul, o amarelo e o vermelho. Mas alguns fatos favoreceram a tricolor cisalpina.

Estandarte da 6.ª Coorte da Legião Lombarda (conservado no Musée de l'Armée, Paris).
Estandarte da 6.ª Coorte da Legião Lombarda (conservado no Musée de l'Armée, Paris).

Primeiro, antes de se tornar bandeira nacional por lei do Grande Conselho em maio de 1798, verde, branco e vermelho era o estandarte da Legião Lombarda. Segundo o prospecto da sua formação em outubro de 1796, "cada coorte terá o seu estandarte tricolor nacional lombardo distinto por número e ornado com os emblemas da liberdade". Numa carta datada do dia seguinte, o próprio Napoleão reporta ao Diretório quais são as cores: "os Senhores encontrarão aí a organização da legião lombarda: as cores nacionais que adotaram são o verde, o branco e o vermelho".

Depois, sendo o movimento revolucionário mais forte no vale do Pó, onde havia, ademais, a maior fragmentação política, vogava aí maior apelo à Itália como referente nacional. Assim, a legião formada em Módena alguns dias depois da lombarda não só se nomeou italiana, mas a sua norma dá às bandeiras das coortes as "três cores nacionais italianas". Ainda no mesmo mês, as atas do Senado Provisório de Bolonha registram que, "requerido quais sejam as cores nacionais para formar com elas uma bandeira, respondeu-se o verde, o branco e o vermelho".

Bandeira da República Cispadana (reconstrução de Ugo Bellocchi; imagem disponível na webpage do Museo del Tricolore, Régio na Emília).
Bandeira da República Cispadana (reconstrução de Ugo Bellocchi; imagem disponível na webpage do Museo del Tricolore, Régio na Emília).

Finalmente, em 7 de janeiro de 1797 o deputado Giuseppe Compagnoni propôs ao Segundo Congresso Cispadano "que se torne universal o estandarte ou bandeira cispadana de três cores, verde, branco e vermelho, e que se usem essas três cores também no tope cispadano, o qual há de ser trazido por todos". A Confederação Cispadana, depois República, começou unindo os governos provisórios de Ferrara, Bolonha, Módena e Régio e acabou fundida à República Cisalpina no fim de julho.

Retrato de Eugène de Beauharnais (1805), de Giovanni Battista Gigola (conservado no  Musée Marmottan-Monet). Ao fundo, na lagoa, vê-se um navio que arvora o pavilhão do Reino da Itália.
Retrato de Eugène de Beauharnais (1805), de Giovanni Battista Gigola (conservado no  Musée Marmottan-Monet). Ao fundo, na lagoa, vê-se um navio que arvora o pavilhão do Reino da Itália.

Em janeiro de 1802 em Lyon, uma consulta extraordinária de deputados cisalpinos encontrou Napoleão, a qual adotou uma constituição nova, renomeando a república Italiana, e o elegeu presidente. Quando este se coroou imperador dos franceses em dezembro de 1804, outra cerimônia na Catedral de Milão em maio de 1805 com a antiquíssima Coroa de Ferro consagrou a mudança de regime: a República Italiana deu lugar ao Reino da Itália. A bandeira permaneceu, todavia, a mesma constante de um aviso do Ministério da Guerra em agosto de 1802: "um quadrado com fundo vermelho, no qual é inserido um losango com fundo branco, que contém outro quadrado com fundo verde".

Bandeira da Giovine Italia (conservada no Museo del Risorgimento, Gênova).
Bandeira da Giovine Italia (conservada no Museo del Risorgimento, Gênova).

Apesar de a tricolor italiana ter sido criada durante a hegemonia da França revolucionária, é justo reconhecer a Giuseppe Mazzini a sua difusão em prol da libertação e unificação da Itália, precisamente num momento em que a contrarrevolução, vitoriosa desde 1814, oprimia tudo que ameaçasse as monarquias restauradas. Em 1831, ele fundou a Giovine Italia ('Jovem Itália') com o intuito de unificar a Itália na forma de uma república unitária. Na Istruzione generale per gli affratellati nella Giovine Italia, estabelece que "i colori della Giovine Italia sono il bianco, il rosso, il verde. La bandiera della Giovine Italia porta su quei colori scritte da un lato le parole Libertà, Uguaglianza, Umanità, dall'altro Unità, Indipendenza" ("as cores da Giovine Italia são o branco, o vermelho, o verde. A bandeira da Giovine Italia traz sobre essas cores escritas de um lado as palavras Liberdade, Igualdade, Humanidade, do outro Unidade, Independência").

"Veneza, Proclamação da República, Março de 1848" (litografia de Nicola Sanesi).
"Veneza, Proclamação da República, Março de 1848" (litografia de Nicola Sanesi).

Graças à militância de Mazzini, quando os italianos se levantaram contra a ordem imposta pelo Congresso de Viena (1815) no bojo da Primavera dos Povos, o verde-branco-vermelho foi assumido pelos nacionalistas em todo o país. Dessa vez nem todos os monarcas caíram, mas tiveram de aceitar constituições e demonstrar adesão ao novo regime. Essa demonstração fazia-se precisamente pela bandeira:

  • em Roma, por portaria do Ministério do Interior apôs-se gravata "com as cores italianas" à haste da bandeira pontifícia;
  • em Milão, por proclamação do governo provisório exortou-se a adoção da bandeira tricolor em todo o país;
  • em Turim, por proclamação do rei Carlos Alberto aos povos da Lombardia e de Veneza sobrepôs-se o escudo da Saboia à "bandeira tricolor italiana" que as tropas despachadas para essas regiões levariam;
  • em Veneza, por decreto do governo provisório adotou-se a mesma bandeira e na faixa verde um cantão branco com o leão de São Marcos em amarelo e perfil das três cores, sobre as quais acrescenta: "com as três cores comuns a todas as bandeiras hodiernas da Itália professa-se a comunhão italiana".

Bandeira dos revolucionários bolonheses (conservada no Museo Civico del Risorgimento, Bolonha).
Bandeira dos revolucionários bolonheses: a legenda quer dizer "Itália livre, Deus quer" (conservada no Museo Civico del Risorgimento, Bolonha).

Tudo isto em março de 1848. Prosseguiu-se em abril:

  • Em Módena, uma proclamação do governo provisório testemunha que a tricolor, "longo amor e suspiro perpétuo da nossa gente", já tremulava nas torres sineiras;
  • em Nápoles, pelo programa do ministro Carlo Troya, aprovado pelo rei Fernando II, circundou-se a bandeira real das "cores italianas";
  • em Parma, por ordenação da Suprema Regência estabeleceu-se que a bandeira e o tope das tropas estatais se comporiam das "cores do glorioso vexilo da Independência Italiana";
  • em Florença, por decreto do grão-duque Leopoldo II substituiu-se a bandeira vermelha, branca e vermelha pela "tricolor italiana" com as armas grão-ducais sobrepostas;
  • em Palermo, por decreto do Parlamento Geral da Sicília apôs-se o sinal da trinácria à "bandeira nacional".

Porta-bandeira da República Romana.
Porta-bandeira da República Romana.

Por último, em fevereiro de 1849 por decreto da Assembleia Constituinte a República Romana adotou "a italiana tricolor com a águia romana sobre a haste". Contudo, todas essas bandeiras foram proscritas antes do fim daquele ano, já que o liberalismo de Fernando II das Duas Sicílias tinha durado apenas três meses e depois reconquistou a Sicília, a Casa de Habsburgo retomou o Reino Lombardo-Vêneto e também reconduziu os duques Francisco V a Módena e Carlos II a Parma e o grão-duque Leopoldo II à Toscana e uma expedição francesa devolveu Roma a Pio IX. A exceção era o Reino da Sardenha.

Pavilhões da Itália, segundo o Flags of maritime nations (1914).
Pavilhões da Itália, segundo o Flags of maritime nations (1914).

Com efeito, Vítor Manuel I, que sucedeu à abdicação de Carlos Alberto ainda em 1849, teve a longividência de preservar dois elementos que sustentariam a esperança na unificação da Itália: o estatuto outorgado em março de 1848 e a bandeira ordenada por decreto régio em abril do mesmo ano. Esta era a mesma que a proclamação de março dera às tropas sabaudas que apoiariam os insurgentes lombardos e vênetos, mas o seu uso ficava estendido às marinhas de guerra e mercante, para esta sem a coroa sobre o escudo. Um decreto em 1860 especificou para o exército o escudo "com contorno azul".

Vítor Manuel I acertou. Com Camillo Benso, conde de Cavour, à presidência do Conselho de Ministros, a Casa de Saboia encabeçou o Risorgimento, garantindo que a Itália unida fosse uma monarquia constitucional, moderadamente liberal. Ora, sendo a assunção do título de rei da Itália em 1861 um ato do estado sardo, a bandeira do novo reino permaneceu a mesma desse estado. Demorou até 1923 para que se renovasse a norma nessa matéria: um decreto régio, convertido em lei dois anos depois. Curiosamente, a redação é quase heráldica: "La bandiera nazionale è formata da un drappo di forma rettangolare, interzato in palo, di verde, di bianco e di rosso, col bianco coronato dallo stemma reale, bordato d'azzurro" ("A bandeira nacional é formada por um pano de forma retangular, terciado em pala, de verde, de branco e de vermelho, com o branco coroado pelo brasão real, bordado de azul").

Pavilhão naval da Itália.
Pavilhão naval da Itália.

As armas reais foram suprimidas pela primeira vez em novembro de 1943, quando a República Social Italiana, estado fantoche da Alemanha no bojo do avanço aliado a partir da Sicília, regulou os seus símbolos, como se lê nas atas do Conselho de Ministros. No entanto, a sucessora legal do Reino da Itália é a república que se constituiu após o referendo de 2 de junho de 1946. No dia 19 desse mês, por decreto de Alcide de Gasperi, chefe provisório do estado, a tricolor verde, branca e vermelha permaneceu bandeira nacional, mas sem nenhum emblema, o que foi confirmado pela Constituição de 1948.

Pavilhão mercante da Itália.
Pavilhão mercante da Itália.

Atualmente, o uso da bandeira italiana é regulado por uma série de protocolos, compilados pela Presidência do Conselho de Ministros. Para a navegação, há três pavilhões: o naval e o mercante são ordenados por outro decreto de 1947, que carrega a faixa branca de um escudo esquartelado com as armas das repúblicas marítimas — Veneza, Pisa, Gênova e Amalfitana —, naquele encimado de uma coroa torreada e rostrada, neste sem essa coroa nem a espada empunhada pelo leão; o terceiro consta de um decreto presidencial de 2010, é reservado às embarcações governamentais e traz o emblema estatal na mesma faixa.

Pavilhão governamental da Itália.
Pavilhão governamental da Itália.

Portanto, a tricolor italiana já foi agitada por antagônicos regimes: republicanos e monárquicos, liberais e conservadores, extremistas e moderados, democráticos e autoritários. É possível que o seu sucesso se deva precisamente à indeterminação da sua origem, já que, para além da evidente semelhança à tricolor francesa, em nenhum lugar se vislumbra a fonte desse arranjo cromático. Ora, sem vínculo com esse ou aquele signo sectário, ela pôde ser aceita por todos os defensores da nação italiana, diferentemente dos emblemas estatais, como as armas do Reino da Itália, que pertencem, na verdade, à Casa de Saboia.