A regra de iluminura é a principal do código heráldico, a ponto de definir as armas que lhe desobedecem como falsas ou a inquirir.
Do Tratado Prinsault (1444):
Le septiesme
chapitre fait mention de la disposition des métals ou couleurs ou blason et
comment on peut discerner les fausses armes des vraies.
L'escu de toutes
armes est de métal, couleur ou panne par-dessus, comme : tel porte d'or au
chief de gueules ou d'azur à une bande d'argent. Autrement, c'est à savoir,
quand sont de métal sur métal ou couleur sur couleur, sont fausses. Et par ce
moyen, connoist-on souvent les armes des gens de bas estat et non nobles, qui
sans discrétion prennent armes à leur voulenté, comme quand aucun a nom Jean ou
Pierre Corbin, il prend et porte de gueules à un corbin de sable, ou quand
aucun a nom Jean du Chesne, il prend et porte d'or à un chesne d'argent, ou
semblables, qui pareillement sont fausses.
Et généralement
toutes armes qui sont de métal sur métal ou couleur sur couleur sont fausses, excepté
celles de Jérusalem, qui sont de métal sur métal, c'est à savoir, d'argent à
une croix potencée et quatre croisettes d'or (1). Et toutesfois, ne sont pas
fausses. Et la raison est car quand Godeffroi de Buillon eut très
victorieusement acquise la Terre Sainte, fut avisé et ordonné par les vaillants
et preux princes, qui en sa compagnie estoient, qu'en mémoire et recordation d'icelle
victoire excellente lui seroient données armes différentes du commun cours des
autres, afin que quand aucun les verroit, cuidant que fussent fausses, fust esmeü
à soi enquérir pourquoi un si noble roi porte telles armes et par ainsi peut estre
informé de ladite conqueste. L'entendement et pratique de ce que dessus a esté
dit appert par les cinq escus ci-après figurés.
D'or à un chief de gueules. |
D'azur à une bande d'argent. |
De gueules à un corbin de sable. |
D'or à un chesne d'argent. |
D'argent à une croix potencée et quatre croisettes d'or. |
O sétimo capítulo faz menção da disposição dos metais ou cores ou brasão e como se podem discernir as armas falsas das verdadeiras.
O escudo de todas as armas é de metal, cor ou forro por
cima, como: fulano traz de ouro com um chefe de vermelho ou de azul com uma
banda de prata. De outro modo, a saber, quando são de metal sobre metal ou cor
sobre cor, são falsas. Por esse meio, conhecem-se amiúde as armas das pessoas
de baixo estado e não nobres, que sem discrição tomam armas ao seu bel-prazer,
como quando alguém tem o nome de João ou Pedro Corvo, toma e traz de vermelho
com um corvo de negro, ou quando alguém tem o nome de João Carvalho, toma e
traz de ouro com um carvalho de prata, ou similares, que igualmente são falsas.
Geralmente, todas as armas que são de metal sobre metal ou cor sobre cor são falsas, exceto as de Jerusalém, que são de metal sobre metal, a saber, de prata com uma cruz potenteia e quatro cruzetas de ouro (1). Todavia, não são falsas. A razão é que quando Godofredo de Bulhão conquistou muito vitoriosamente a Terra Santa, foi ponderado e ordenado pelos valorosos e bravos príncipes, que na sua companhia estavam, que em memória e recordação daquela vitória excelente lhe seriam dadas armas diferentes do comum concurso das demais, para que quando alguém as visse, pensando que fossem falsas, fosse movido a inquirir por que tão nobre rei traz tais armas, e assim pode ser informado da dita conquista. O entendimento e a prática do que foi dito acima evidenciam-se pelos cinco escudos figurados a seguir.
De ouro com um chefe de vermelho. |
De azul com uma banda de prata. |
De vermelho com um corvo de negro. |
De ouro com um carvalho de prata. |
De prata com uma cruz potenteia e quatro cruzetas de ouro. |
Comentário:
Brasões da província eclesiástica de Natal. |
A província eclesiástica de Natal é composta de três circunscrições: a sua metrópole e duas dioceses sufragâneas. A diocese de Natal foi criada em 1909 por desmembramento da diocese da Paraíba e foi elevada a arquidiocese em 1952. À sua vez, dela foram desmembradas as dioceses de Mossoró e Caicó, criadas em 1934 e 1939. Cada uma tem um brasão, a julgar pelo estilo comum, todos criados ou pelo irmão Paulo Lachenmayer ou por Víctor Hugo Carneiro Lopes, passavante dele. Vou brasoná-los pelos desenhos:
- arquidiocese de Natal: talhado de azul e vermelho com uma flor de lis cruzada de prata (2), brocante sobre a partição e acompanhada de uma estrela de oito raios do mesmo no cantão destro do chefe;
- diocese de Mossoró: de prata com uma cruz de vermelho e uma espada de prata, empunhada de ouro, e uma palma de verde, passadas em aspa, brocantes sobre a cruz; brocante sobre tudo, um lenço de prata, carregado de dois olhos do mesmo, a íris de negro e a pupila de prata;
- diocese de Caicó: de azul com uma cruz veirada de vermelho e prata, carregada de uma concha aberta, sobrecarregada de uma pérola, tudo de prata.
Cada um desses brasões tem um ordenamento impecável quanto às peças e figuras. Assim, no da arquidiocese de Natal, a flor de lis cruzada representa a padroeira, Nossa Senhora da Apresentação, ao passo que a estrela refere ao nome da cidade. A padroeira de Mossoró é Santa Luzia, cujo atributo icônico são os olhos, que assinalam a devoção popular que lhe atribui proteção da visão, enquanto a espada e a palma indicam o seu martírio. A concha aberta com uma pérola é um atributo concebido pelo Ir. Paulo Lachenmayer ao criar o brasão da então diocese de Feira de Santana, hoje arquidiocese; a partir desse precedente, consagrou-se na heráldica eclesiástica brasileira como figura referente a Sant'Ana, que é a padroeira de Caicó.
No que diz respeito aos esmaltes, as armas diocesanas mossoroenses exemplificam bem o funcionamento da regra de iluminura, da qual trata o presente capítulo: o campo de metal (prata) demanda uma peça ou figura de cor (cruz de vermelho). Há quem creia que essa regra se deve aplicar a ferro e fogo a todos os elementos, mas o que conta é isso: a relação do campo, quer do escudo quer de uma peça, com a peça ou figura principal que o carrega. Desse modo, se a espada fosse a figura principal ou se a palma ficasse dentro do contorno da cruz, a regra seria descumprida, pois de prata com uma espada de prata, empunhada de ouro seria pôr metal sobre metal e uma cruz de vermelho, carregada de uma palma de verde, cor sobre cor. Contudo, como essas figuras estão brocantes, isto é, sobrepostas ao conjunto de prata com uma cruz de vermelho, não há transgressão em ser iluminada uma de metal e a outra, de cor.
As armas diocesanas caicoenses também servem de exemplo ilustrativo: como a cruz é iluminada de pele (o veirado é uma variante dos veiros), não contravém a regra o fato de carregar um campo de cor nem o de estar carregada de uma figura de metal, pois as peles podem combinar-se tanto com os metais como com as cores.
Já as armas da arquidiocese natalense contêm uma divisão do campo em duas cores: talhado de azul e vermelho. Mais uma vez, o manual antigo comporta a vantagem de aduzir uma perspectiva que lança luz sobre certas convenções atuais: esclarece-nos que a locução a inquirir, empregada para indicar as armas que infringem a regra de iluminura, quer dizer 'inquirir o porquê da infração'. Segue-se daí que há casos justificáveis e injustificáveis. Dentre os justificáveis, cita as armas reais de Jerusalém, evocando mais um mito que os tratados de armaria divulgaram (3). Outros podem ser encontrados nas composições com as armas reais francesas:
- Casa de Bourbon: por descender de Roberto de Bourbon (c. 1256-1317), filho do rei Luís IX, trazia de azul, semeado de flores de lis de ouro, com uma banda de vermelho, brocante sobre tudo;
- Casa de Valois: por descender de Carlos de Valois (1270-1325), filho do rei Filipe III, trazia de azul, semeado de flores de lis de ouro, com uma bordadura de vermelho;
- Casa de Albret: desde Carlos I de Albret (1368-1415), por ser filho de Margarida de Bourbon, trazia esquartelado, o primeiro e quarto de azul, semeado de flores de lis de ouro, e o segundo e quarto de vermelho liso;
- cidade de Lyon: por concessão do rei Filipe IV em 1320, para marcar o estatuto de bonne ville, trazia de vermelho com um leão de prata e um chefe de azul, semeado de flores de lis de ouro (o chamado chef de France 'chefe de França').
Observe, prezado leitor, que esses casos consistem em armas diferençadas (Bourbon e Valois), compostas (Albret) ou com acrescentamento honroso (Lyon). O caso da arquidiocese de Natal não se enquadra em nenhuma dessas exceções. Infelizmente, a armaria eclesiástica, ao mesmo tempo que é uma das mais vigorosas hoje em dia, é uma das que mais negligenciam o código heráldico.
Com efeito, no Antigo Regime a maior parte do alto clero procedia da nobreza, de modo que trazia armas gentilícias. Inclusive, apesar de não ser o chefe da linhagem, o clérigo trazia as armas direitas, já que as insígnias de dignidade (a tiara e as chaves do ministério petrino, a mitra e o báculo do episcopado, o galero etc.) bastavam para distingui-lo. Daí que quatro papas — Leão X, Clemente VII, Pio IV e Leão XI — tenham usado das mesmas armas, as dos Médicis. Além disso, poucas dioceses possuíam brasões, o que era mais forte na França, onde alguns bispos eram pares do reino, e mais ainda no Sacro Império, onde um número razoável de bispos eram príncipes, três deles eleitores (4). Entretanto, arrisco afirmar que na contemporaneidade as armas de devoção se tornaram majoritárias na heráldica eclesiástica, como os brasões mesmos das dioceses norte-rio-grandenses o demonstram. O caso é que nessa classe de armas a carga simbólica é mais pesada que em qualquer outra: os esmaltes são influenciados pelas cores litúrgicas e as figuras, pelos atributos icônicos dos santos. Em princípio, não há problema algum; o problema é sobrepor o simbolismo ao código heráldico.
Em particular, a regra de iluminura é a primeira que se deve observar ao se ordenar um brasão novo. Fazendo mais uma comparação com as línguas, a relação do campo com a peça ou figura principal é como a do sujeito com o predicado e a combinação dos esmaltes, como se fosse a concordância verbal. Assim, o normal é que um sujeito no singular seja predicado por um verbo no singular e um sujeito no plural, por um verbo no plural, mas há exceções justificadas, como os casos de silepse (concordância com o sentido, em vez da forma: a maioria são...). Da mesma maneira, o normal é que um campo de metal seja carregado de uma peça ou figura de cor e um campo de cor, de uma peça ou figura de metal, mas há exceções justificadas, como os casos já enunciados. Por conseguinte, combinar metal com metal ou cor com cor é como dizer nós vai: inteligível é, mas não é aceito pela norma-padrão.
Por tudo isto, o autor do Tratado Prinsault é muito feliz quando diz que os erros ocorrem porque alguns "sem discrição tomam armas ao seu bel-prazer". Ora, se há um código, logo não se pode combinar tal e tal esmalte por tal e tal razão fora desse código, digamos: o vermelho por ser a cor da Paixão e do martírio e o azul por ser a cor mariana. Não pode, ponto! Caberá à criatividade do heraldista conciliar o que o cliente quer com o que a heráldica dita.
(1) Atualmente tanto em francês como em português se diria d'argent à la croix potencée d'or, cantonnée de quatre croisettes du même/de prata com uma cruz potenteia de ouro, cantonada de quatro cruzetas do mesmo.