30/03/21

A DISPOSIÇÃO DOS METAIS OU CORES E COMO SE PODEM DISCERNIR AS ARMAS FALSAS DAS VERDADEIRAS

A regra de iluminura é a principal do código heráldico, a ponto de definir as armas que lhe desobedecem como falsas ou a inquirir.


Do Tratado Prinsault (1444):

Le septiesme chapitre fait mention de la disposition des métals ou couleurs ou blason et comment on peut discerner les fausses armes des vraies.

L'escu de toutes armes est de métal, couleur ou panne par-dessus, comme : tel porte d'or au chief de gueules ou d'azur à une bande d'argent. Autrement, c'est à savoir, quand sont de métal sur métal ou couleur sur couleur, sont fausses. Et par ce moyen, connoist-on souvent les armes des gens de bas estat et non nobles, qui sans discrétion prennent armes à leur voulenté, comme quand aucun a nom Jean ou Pierre Corbin, il prend et porte de gueules à un corbin de sable, ou quand aucun a nom Jean du Chesne, il prend et porte d'or à un chesne d'argent, ou semblables, qui pareillement sont fausses.

Et généralement toutes armes qui sont de métal sur métal ou couleur sur couleur sont fausses, excepté celles de Jérusalem, qui sont de métal sur métal, c'est à savoir, d'argent à une croix potencée et quatre croisettes d'or (1). Et toutesfois, ne sont pas fausses. Et la raison est car quand Godeffroi de Buillon eut très victorieusement acquise la Terre Sainte, fut avisé et ordonné par les vaillants et preux princes, qui en sa compagnie estoient, qu'en mémoire et recordation d'icelle victoire excellente lui seroient données armes différentes du commun cours des autres, afin que quand aucun les verroit, cuidant que fussent fausses, fust esmeü à soi enquérir pourquoi un si noble roi porte telles armes et par ainsi peut estre informé de ladite conqueste. L'entendement et pratique de ce que dessus a esté dit appert par les cinq escus ci-après figurés.

D'or à un chief de gueules.
D'or à un chief de gueules.

D'azur à une bande d'argent.
D'azur à une bande d'argent.

De gueules à un corbin de sable.
De gueules à un corbin de sable.

D'or à un chesne d'argent.
D'or à un chesne d'argent.

D'argent à une croix potencée et quatre croisettes d'or.
D'argent à une croix potencée et quatre croisettes d'or.

O sétimo capítulo faz menção da disposição dos metais ou cores ou brasão e como se podem discernir as armas falsas das verdadeiras.

O escudo de todas as armas é de metal, cor ou forro por cima, como: fulano traz de ouro com um chefe de vermelho ou de azul com uma banda de prata. De outro modo, a saber, quando são de metal sobre metal ou cor sobre cor, são falsas. Por esse meio, conhecem-se amiúde as armas das pessoas de baixo estado e não nobres, que sem discrição tomam armas ao seu bel-prazer, como quando alguém tem o nome de João ou Pedro Corvo, toma e traz de vermelho com um corvo de negro, ou quando alguém tem o nome de João Carvalho, toma e traz de ouro com um carvalho de prata, ou similares, que igualmente são falsas.

Geralmente, todas as armas que são de metal sobre metal ou cor sobre cor são falsas, exceto as de Jerusalém, que são de metal sobre metal, a saber, de prata com uma cruz potenteia e quatro cruzetas de ouro (1). Todavia, não são falsas. A razão é que quando Godofredo de Bulhão conquistou muito vitoriosamente a Terra Santa, foi ponderado e ordenado pelos valorosos e bravos príncipes, que na sua companhia estavam, que em memória e recordação daquela vitória excelente lhe seriam dadas armas diferentes do comum concurso das demais, para que quando alguém as visse, pensando que fossem falsas, fosse movido a inquirir por que tão nobre rei traz tais armas, e assim pode ser informado da dita conquista. O entendimento e a prática do que foi dito acima evidenciam-se pelos cinco escudos figurados a seguir.

De ouro com um chefe de vermelho.
De ouro com um chefe de vermelho.

De azul com uma banda de prata.
De azul com uma banda de prata.

De vermelho com um corvo de negro.
De vermelho com um corvo de negro.

De ouro com um carvalho de prata.
De ouro com um carvalho de prata.

De prata com uma cruz potenteia e quatro cruzetas de ouro.
De prata com uma cruz potenteia e quatro cruzetas de ouro.

Comentário:

Brasões da província eclesiástica de Natal.
Brasões da província eclesiástica de Natal.

A província eclesiástica de Natal é composta de três circunscrições: a sua metrópole e duas dioceses sufragâneas. A diocese de Natal foi criada em 1909 por desmembramento da diocese da Paraíba e foi elevada a arquidiocese em 1952. À sua vez, dela foram desmembradas as dioceses de Mossoró e Caicó, criadas em 1934 e 1939. Cada uma tem um brasão, a julgar pelo estilo comum, todos criados ou pelo irmão Paulo Lachenmayer ou por Víctor Hugo Carneiro Lopes, passavante dele. Vou brasoná-los pelos desenhos:

  • arquidiocese de Natal: talhado de azul e vermelho com uma flor de lis cruzada de prata (2), brocante sobre a partição e acompanhada de uma estrela de oito raios do mesmo no cantão destro do chefe;
  • diocese de Mossoró: de prata com uma cruz de vermelho e uma espada de prata, empunhada de ouro, e uma palma de verde, passadas em aspa, brocantes sobre a cruz; brocante sobre tudo, um lenço de prata, carregado de dois olhos do mesmo, a íris de negro e a pupila de prata;
  • diocese de Caicó: de azul com uma cruz veirada de vermelho e prata, carregada de uma concha aberta, sobrecarregada de uma pérola, tudo de prata.

Cada um desses brasões tem um ordenamento impecável quanto às peças e figuras. Assim, no da arquidiocese de Natal, a flor de lis cruzada representa a padroeira, Nossa Senhora da Apresentação, ao passo que a estrela refere ao nome da cidade. A padroeira de Mossoró é Santa Luzia, cujo atributo icônico são os olhos, que assinalam a devoção popular que lhe atribui proteção da visão, enquanto a espada e a palma indicam o seu martírio. A concha aberta com uma pérola é um atributo concebido pelo Ir. Paulo Lachenmayer ao criar o brasão da então diocese de Feira de Santana, hoje arquidiocese; a partir desse precedente, consagrou-se na heráldica eclesiástica brasileira como figura referente a Sant'Ana, que é a padroeira de Caicó.

No que diz respeito aos esmaltes, as armas diocesanas mossoroenses exemplificam bem o funcionamento da regra de iluminura, da qual trata o presente capítulo: o campo de metal (prata) demanda uma peça ou figura de cor (cruz de vermelho). Há quem creia que essa regra se deve aplicar a ferro e fogo a todos os elementos, mas o que conta é isso: a relação do campo, quer do escudo quer de uma peça, com a peça ou figura principal que o carrega. Desse modo, se a espada fosse a figura principal ou se a palma ficasse dentro do contorno da cruz, a regra seria descumprida, pois de prata com uma espada de prata, empunhada de ouro seria pôr metal sobre metal e uma cruz de vermelho, carregada de uma palma de verde, cor sobre cor. Contudo, como essas figuras estão brocantes, isto é, sobrepostas ao conjunto de prata com uma cruz de vermelho, não há transgressão em ser iluminada uma de metal e a outra, de cor.

As armas diocesanas caicoenses também servem de exemplo ilustrativo: como a cruz é iluminada de pele (o veirado é uma variante dos veiros), não contravém a regra o fato de carregar um campo de cor nem o de estar carregada de uma figura de metal, pois as peles podem combinar-se tanto com os metais como com as cores.

Já as armas da arquidiocese natalense contêm uma divisão do campo em duas cores: talhado de azul e vermelho. Mais uma vez, o manual antigo comporta a vantagem de aduzir uma perspectiva que lança luz sobre certas convenções atuais: esclarece-nos que a locução a inquirir, empregada para indicar as armas que infringem a regra de iluminura, quer dizer 'inquirir o porquê da infração'. Segue-se daí que há casos justificáveis e injustificáveis. Dentre os justificáveis, cita as armas reais de Jerusalém, evocando mais um mito que os tratados de armaria divulgaram (3). Outros podem ser encontrados nas composições com as armas reais francesas:

  • Casa de Bourbon: por descender de Roberto de Bourbon (c. 1256-1317), filho do rei Luís IX, trazia de azul, semeado de flores de lis de ouro, com uma banda de vermelho, brocante sobre tudo;
  • Casa de Valois: por descender de Carlos de Valois (1270-1325), filho do rei Filipe III, trazia de azul, semeado de flores de lis de ouro, com uma bordadura de vermelho;
  • Casa de Albret: desde Carlos I de Albret (1368-1415), por ser filho de Margarida de Bourbon, trazia esquartelado, o primeiro e quarto de azul, semeado de flores de lis de ouro, e o segundo e quarto de vermelho liso;
  • cidade de Lyon: por concessão do rei Filipe IV em 1320, para marcar o estatuto de bonne ville, trazia de vermelho com um leão de prata e um chefe de azul, semeado de flores de lis de ouro (o chamado chef de France 'chefe de França'). 

Observe, prezado leitor, que esses casos consistem em armas diferençadas (Bourbon e Valois), compostas (Albret) ou com acrescentamento honroso (Lyon). O caso da arquidiocese de Natal não se enquadra em nenhuma dessas exceções. Infelizmente, a armaria eclesiástica, ao mesmo tempo que é uma das mais vigorosas hoje em dia, é uma das que mais negligenciam o código heráldico.

Com efeito, no Antigo Regime a maior parte do alto clero procedia da nobreza, de modo que trazia armas gentilícias. Inclusive, apesar de não ser o chefe da linhagem, o clérigo trazia as armas direitas, já que as insígnias de dignidade (a tiara e as chaves do ministério petrino, a mitra e o báculo do episcopado, o galero etc.) bastavam para distingui-lo. Daí que quatro papas — Leão X, Clemente VII, Pio IV e Leão XI  tenham usado das mesmas armas, as dos Médicis. Além disso, poucas dioceses possuíam brasões, o que era mais forte na França, onde alguns bispos eram pares do reino, e mais ainda no Sacro Império, onde um número razoável de bispos eram príncipes, três deles eleitores (4). Entretanto, arrisco afirmar que na contemporaneidade as armas de devoção se tornaram majoritárias na heráldica eclesiástica, como os brasões mesmos das dioceses norte-rio-grandenses o demonstram. O caso é que nessa classe de armas a carga simbólica é mais pesada que em qualquer outra: os esmaltes são influenciados pelas cores litúrgicas e as figuras, pelos atributos icônicos dos santos. Em princípio, não há problema algum; o problema é sobrepor o simbolismo ao código heráldico.

Em particular, a regra de iluminura é a primeira que se deve observar ao se ordenar um brasão novo. Fazendo mais uma comparação com as línguas, a relação do campo com a peça ou figura principal é como a do sujeito com o predicado e a combinação dos esmaltes, como se fosse a concordância verbal. Assim, o normal é que um sujeito no singular seja predicado por um verbo no singular e um sujeito no plural, por um verbo no plural, mas há exceções justificadas, como os casos de silepse (concordância com o sentido, em vez da forma: a maioria são...). Da mesma maneira, o normal é que um campo de metal seja carregado de uma peça ou figura de cor e um campo de cor, de uma peça ou figura de metal, mas há exceções justificadas, como os casos já enunciados. Por conseguinte, combinar metal com metal ou cor com cor é como dizer nós vai: inteligível é, mas não é aceito pela norma-padrão.

Por tudo isto, o autor do Tratado Prinsault é muito feliz quando diz que os erros ocorrem porque alguns "sem discrição tomam armas ao seu bel-prazer". Ora, se há um código, logo não se pode combinar tal e tal esmalte por tal e tal razão fora desse código, digamos: o vermelho por ser a cor da Paixão e do martírio e o azul por ser a cor mariana. Não pode, ponto! Caberá à criatividade do heraldista conciliar o que o cliente quer com o que a heráldica dita. 

Notas:
(1) Atualmente tanto em francês como em português se diria d'argent à la croix potencée d'or, cantonnée de quatre croisettes du même/de prata com uma cruz potenteia de ouro, cantonada de quatro cruzetas do mesmo.
(2) A rigor, o desenho mostra uma cruz que acaba em fusos curvilíneos. Em francês, esse predicativo denomina-se retranché. Como sequer tem denominação consagrada em português, parece excessivo brasoná-lo.
(3) Ao fim da Primeira Cruzada, quando se estabeleceu o reino de Jerusalém (1099), ainda não havia heráldica. As armas reais de Jerusalém foram assumidas durante o reinado de João de Brienne (1210-25) e tal como expus na postagem anterior, sobre o número de figuras repetidas, o das cruzetas nessas armas não era fixo. A fixação de quatro ocorreu no reinado de João de Lusignan (1284-85).
(4) Os pares eclesiásticos da França eram o arcebispo-duque de Reims, o bispo-duque de Laon, o bispo-duque de Langres, o bispo-conde de Beauvais, o bispo-conde de Châlons e o bispo-conde de Noyon. Os três eleitores espirituais do Sacro Império eram o arcebispo de Mogúncia, o arcebispo de Colônia e o arcebispo de Tréveris. Andorra, cujos copríncipes são o bispo de Urgell (na Catalunha, Espanha) e o presidente da República Francesa, é uma remanência disso, além do próprio Vaticano.

28/03/21

O NÚMERO ATÉ O QUAL SE DEVEM CONTAR TODAS AS COISAS QUE ESTÃO NAS ARMAS

Hoje, o limite de figuras repetidas é o bom senso, mas os efeitos de se procurar normalizar esse aspecto foi tal que mudou o sistema heráldico.


Do Tratado Prinsault (1444):

Le sixiesme chapitre démonstre jusques à quel nombre on doit nombrer toutes choses qui sont en armes et quand on doit dire sans nombre ou semé, comme s'ensuit.

Tourteaux, besants et cotices se nombrent jusques à huit. Losanges, fusées, eschequier se nombrent jusques à vingt-et-cinq. Bestes, oiseaux, fleurs, poissons et toutes autres choses qui sont en armes se nombrent jusques à seize. Et se elles passent lesdits nombres, on blasonne sans nombre ou semé, comme ès armes de Laval (1), où l'on dit « d'or à seize aigles d'azur » (2), et en celles de Pully (3), où l'on dit « d'or, semé d'aigles d'azur » ou « d'or à aigles d'azur sans nombre », ainsi que par les deux escus ci-après figurés appert.

D'or à seize aigles d'azur.
D'or à seize aigles d'azur. (4)

D'or semé d'aigles d'azur.
D'or semé d'aigles d'azur. (4)

O sexto capítulo demonstra o número até o qual se devem contar todas as coisas que estão nas armas e quando se deve dizer sem número ou semeado, como se segue.

As arruelas, os besantes e as coticas contam-se até oito. As lisonjas, os fusos e o xadrez contam-se até vinte e cinco. As bestas, os pássaros, as flores, os peixes e todas as outras coisas que estão nas armas contam-se até dezesseis. Se passam desses números, brasona-se sem número ou semeado, como nas armas de Laval (1), de que se diz "de ouro com dezesseis águias de azul" (2), e nas de Pully (3), de que se diz "de ouro, semeado de águias de azul" ou "de ouro com águias de azul sem número", como pelos dois escudos figurados a seguir se evidencia.

De ouro com dezesseis águias de azul.
De ouro com dezesseis águias de azul.

De ouro, semeado de águias de azul.
De ouro, semeado de águias de azul.

Comentário:

Afinal, cinco, dez, onze, quinze ou dezesseis besantes? Seis, sete, oito, nove, dez, doze, treze ou catorze castelos? Estes são os números que Anselmo Braamcamp Freire registra na sua Armaria portuguesa (1908) ao descrever a evolução das armas reais portuguesas. Semelhantemente, as palas das armas reais aragonesas variavam de três a seis e ainda concorriam com o palado, também de número variável de peças. Convém, pois, recuperar a referência a um estudo de Alberto Montaner Frutos, que citei na postagem de 19/01.

Com efeito, depois de uma cuidadosa análise, esse pesquisador conclui que no sistema clássico da heráldica a pluralização era similar ao número gramatical em certas línguas. Graças à minha formação linguística e atuação em filologia, sei que a oposição um / mais de um, ou seja, singular e plural, é muito comum nas línguas, talvez o mecanismo mais comum de número, mas não o único. Assim, há línguas que têm três números, pois além do singular e plural, distinguem o dual, isto é, um par de seres ou coisas, como o grego antigo e outras línguas indo-europeias, várias das antigas e poucas das modernas. Além desses três números, o árabe, por exemplo, possui um paucal, que exprime um conjunto pequeno, convencionalmente entre três e dez. Tudo isto pode ser ilustrado pela palavra árvore:

  • latim: arbor (singular) / arbores (plural);
  • grego antigo: δένδρον (déndron, singular) / δένδρω (déndrō, dual) / δένδρα (déndra, plural);
  • árabe: شجر (šajar, coletivo) / شجرة (šajara, singulativo) / شجرتان (šajaratān, dual) / شجرات (šajarāt, paucal) / أشجار (ʾašjār, plural).

Montaner Frutos menciona essas línguas no seu artigo, mas lhe escapa que as suas conclusões são estranhamente correlatas com o número gramatical nas línguas célticas britônicas. Tomando o bretão por exemplo, para referir a certos pares de partes dos seres vivos emprega-se um prefixo que funciona como um dual residual: lagad é um olho, daoulagad são dois olhos (do mesmo ser) e lagadoù são olhos. Ademais, alguns substantivos são plurais coletivos e deles deriva um singular, chamado singulativo, referente a uma unidade da coleção: gwez são árvores incontáveis (mais ou menos como um bosque), gwezenn é uma dessas árvores e gwezennoù são árvores, mais de duas e contáveis. Imaginando armas quaisquer com árvores, a comparação da abstração de Montaner Frutos com o bretão pode ser esquematizada assim:

Abstração
Bretão
Português
um
e wezenn
com uma árvore
dois
e ziv wezenn
com duas árvores
mais de dois, mas contáveis
gant gwezennoù
com árvores
incontáveis
hadet gant gwez
semeado de árvores

Mera coincidência? Não sei, mas o peso político do ducado da Bretanha e o peso cultural da matéria de Bretanha são incontestáveis, sem falar que, segundo alguns, o Joannes de Bado Aureo que escreveu o Tractatus de armis em 1395, um dos mais antigos depois do de Bártolo, era John Trevor/Ieuan Trefor, bispo de St Asaph/Llanelwy, no País de Gales, quem o teria traduzido para o seu idioma. Essa tradução é conhecida como Llyfr dysgread arfau. O galês é outra língua britônica.

Portanto, os besantes das armas reais portuguesas e as palas das aragonesas eram conceituados no número maior que dois, mas contável, análogo ao plural não coletivo das línguas britônicas. Como se podia reproduzir o brasão em objetos dos mais variados tamanhos, inclusive sem o escudo, ou melhor, como se a superfície do objeto fosse o campo, esse mecanismo permitia ao artista adequar a reprodução ao espaço disponível.

Contudo, o Tratado Prinsault demonstra que em meados do século XV a possibilidade do plural não fixo estava desaparecendo. Nas armas reais portuguesas, por exemplo, fixou-se que os besantes seriam cinco a partir da segunda dinastia, a de Avis, ou seja, desde 1385 (a fixação dos castelos em sete demorou mais: 1555, sob Dom João III). Efetivamente, o presente capítulo testemunha um momento de exagero normativo que hoje já não se aplica, se é que alguma vez se aplicou: não se conta nenhuma figura até certo número; esse limite fica a cargo do bom senso. Não obstante, dessa normalização resulta que a cada conjunto de figuras repetidas, de dois a seis, corresponde uma situação ordinária, que não é preciso brasonar. Na armaria portuguesa, essas situações são as seguintes:

  • duas figuras: alinham-se em faixa, ou seja, lado a lado;
  • três figuras: alinham-se duas no alto e uma no baixo, ou seja, como um triângulo invertido;
  • quatro figuras: alinham-se cantonadas, ou seja, duas no alto e duas no baixo;
  • cinco figuras: alinham-se em aspa, ou seja, duas no alto, uma no meio e duas no baixo; (5)
  • seis figuras: alinham-se duas no alto, duas no meio e duas no baixo (6).
  • nove figuras: alinham-se três no alto, três no meio e três no baixo.

Se a situação for diferente, é preciso brasoná-la, o que também se aplica aos conjuntos de sete, de oito e de dez em diante. Para tanto, suprimem-se as locuções no alto, no meio e no baixo. Por exemplo, sete figuras podem ser postas três, três, uma ou três, duas, duas.

Enfim, quanto ao semeado, distinguem-no dois caracteres: o número das figuras é indefinido; as figuras que estão nos extremos costumam ficar cortadas pelos bordos do escudo. Isso acontece porque o semeado consiste, de fato, numa repetição simétrica.

Notas:
(1) Na verdade, as armas da Casa de Montmorency é que são de ouro com uma cruz de vermelho, cantonada de dezesseis aleriões de azul. A Casa de Laval uniu-se à de Montmorency em 1264. Um alerião (alérion em francês) é uma aguieta sem bico nem pés.
(2) Quando há mais de uma águia, atualmente tanto em francês como em português se diz aiglette/aguieta.
(3) Não encontro nenhuma referência a essas armas na Internet.
(4) O artista desenhou aguietas abatidas em ambos os exemplos, de duas cabeças no primeiro.
(5) Daí que os besantes das armas de Portugal sejam conhecidos como quinas.
(6) Na armaria francesa, alinham-se três no alto, duas no meio e uma no baixo.

26/03/21

NOVE COISAS, CADA UMA DELAS ABRANGE UM TERÇO DO ESCUDO

Na heráldica, há peças e figuras. As peças costumam ser qualificadas de honrosas porque os brasões mais antigos são constituídos delas.


Do Tratado Prinsault (1444):

Le cinquiesme chapitre contient neuf choses, dont chascune desquelles fait le tiers de l'escu, et quand elle est plus petite, c'est devise, et s'y dit en quelle manière l'on doit blasonner chascune d'icelles neuf choses.

Chascune des neuf choses ensuivants, c'est à savoir, chef, pal, bande, faisse, chevron, giron, orle, croix et sautouer, doit tenir la tierce partie de l'escu, et quand elle est plus petite, c'est devise.

Et six desdites neuf choses, c'est à savoir, bande, pal, faisse, chevron, giron et orle, quand sont de plusieurs pièces, se blasonnent à un mot, comme : tel porte d'or à une bande de gueules de six ou sept pièces (1). Et pareillement des autres cinq.

Des croix, chef et sautouer, n'en y a qu'un qui fasse le tiers de l'escu. Toutesfois, se en un escu a plusieurs croix, l'on les doit blasonner selon le nombre qui y est, ainsi que pouez veoir par les figures ensuivants.

D'azur à un chef d'argent.
D'azur à un chef d'argent.

D'or à un pal de sable.
D'or à un pal de sable.

De gueules à une bande d'or.
De gueules à une bande d'or.

D'azur à une faisse d'argent.
D'azur à une faisse d'argent.

De sable à un chevron d'or.
De sable à un chevron d'or.

De sinople à un giron d'argent.
De sinople à un giron d'argent. (2)

De pourpre à un orle d'or.
De pourpre à un orle d'or.

D'argent à une croix d'azur.
D'argent à une croix d'azur.

D'argent à une sautoer de sable.
D'argent à une sautoer de sable.

D'argent à une bande de sable de six pièces.
D'argent à une bande de sable de six pièces. (1)

D'or à un orle de sable de cinq pièces.
D'or à un orle de sable de cinq pièces.

D'argent à une bande de gueules à six croix d'azur.
D'argent à une bande de gueules à six croix d'azur. (3)

O quinto capítulo contém nove coisas, cada uma delas abrange um terço do escudo, e quando é menor, é uma divisa, e diz-se de que modo se deve brasonar cada uma dessas nove coisas.

Cada uma das nove coisas seguintes, a saber, chefe, pala, banda, faixa, asna, girão, orla, cruz e aspa, deve ter um terço do escudo, e quando é menor, é uma divisa.

Seis dessas nove coisas, a saber, banda, pala, faixa, asna, girão e orla, quando são de várias peças, brasonam-se numa só sentença, como: fulano traz de ouro com uma banda de vermelho de seis ou sete peças (1). E similarmente das demais cinco.

Da cruz, do chefe e da asna, quando há apenas um, abrange um terço do escudo. Todavia, se num escudo há várias cruzes, devem-se brasonar segundo o número que há, como você pode ver pelas figuras seguintes.

De azul com um chefe de prata.
De azul com um chefe de prata.

De ouro com uma pala de negro.
De ouro com uma pala de negro.

De vermelho com uma banda de ouro.
De vermelho com uma banda de ouro.

De azul com uma faixa de prata.
De azul com uma faixa de prata.

De negro com uma asna de ouro.
De negro com uma asna de ouro.

De verde com um girão de prata. (2)

De púrpura com uma orla de ouro.
De púrpura com uma orla de ouro.

De prata com uma cruz de azul.
De prata com uma cruz de azul.

De prata com uma asna de negro.
De prata com uma asna de negro.

De prata com uma banda de negro de seis peças.
De prata com uma banda de negro de seis peças. (1)

De ouro com uma orla de negro de cinco peças.
De ouro com uma orla de negro de cinco peças.

De prata com uma banda de vermelho entre seis cruzes de azul.
De prata com uma banda de vermelho entre seis cruzes de azul. (3)

Comentário:

Um aspecto muito interessante de ler os tratados medievais de armaria é como perspectivas singelas lançam luz sobre questões que acabaram assumindo dimensões mais ou menos intricadas. Assim, o presente capítulo aborda nove coisas: acaso não têm nome? Com efeito, um brasão pode ser constituído apenas pelo campo, mas os casos são raros, pois o normal é que esse campo venha carregado de certos elementos. Tais elementos podem ser desenhos geométricos ou de seres e coisas. Em francês, essas categorias são diferençadas pelas palavras pièce e meuble, ou seja, 'peça' e 'móvel', porque os elementos geométricos costumam ficar firmados nos bordos do escudo, ao passo que os referentes a seres e coisas costumam ficar soltos. Em português diz-se peça e figura.

Com frequência, as peças recebem o epíteto de honrosas, porque preponderam nos brasões mais antigos, e são divididas em duas ou três ordens, segundo diferentes autores. A adscrição de algumas peças à primeira ordem ou à segunda tem sido bastante estável, mas a de outras tem vacilado, também a depender do autor. Curiosamente, o nosso agrupa as peças que menciona neste capítulo sob o critério de abrangerem um terço do escudo.

Em primeiro lugar, cabe precisar que essa medida normalmente não refere a um terço da altura, mas sim da largura do escudo. Depois, convém ressalvar que essa convenção não é taxativa, pois é perfeitamente aceitável diminuir um pouco a peça quando a harmonia do conjunto o requere, como uma cruz ou uma aspa cantonada de quatro figuras. Enfim, nem todas as peças mencionadas medem esse terço, como a orla e o girão.

Seja como for, ao designar esses elementos como coisas que abrangem um terço do escudo, o nosso autor pode ter fornecido um critério razoável para a definição do que seja uma peça de primeira ordem. Na postagem de 04/02, expus que a cada uma das quatro linhas que podem partir o campo corresponde uma peça. Cada uma dessas peças mede, efetivamente, um terço da largura do escudo:

  • Ao partido corresponde a pala;
  • ao cortado corresponde a faixa;
  • ao fendido corresponde a banda;
  • ao talhado corresponde a barra;
  • ao esquartelado corresponde a cruz;
  • ao franchado corresponde a aspa.

Além dessas correspondências, a linha do cortado faz mais duas peças que medem esse terço: o chefe e a campanha (ou contrachefe ou ). Ademais, os braços inferiores da aspa formam outra peça que pode ter essa mesma medida: a asna. Para fechar esse rol, o perle, que combina os braços superiores da aspa e a metade inferior da pala. Sob essa perspectiva, bem se poderiam classificar essas dez peças como os componentes da primeira ordem.

Na dita postagem de 04/02, também observei que a pala, a faixa, a banda e a barra tomam outros nomes quando se repetem em número maior que quatro:

  • a pala passa a denominar-se vergueta;
  • a faixa passa a denominar-se burela;
  • a banda passa a denominar-se cotica;
  • a barra passa a denominar-se travessa.

Agora cabe acrescentar que a vergueta, a cotica e a travessa podem igualmente figurar como peça única, mais precisamente como formas diminutas da pala, da banda e da barra. Essa diminuição varia de metade a um terço, segundo o autor. Com efeito, ensina o nosso texto que "cada uma das nove coisas seguintes [...] deve ter um terço do escudo, e quando é menor, é uma divisa", mas atualmente a divisa é a forma diminuta específica da faixa, quando peça única. Em francês, tanto as diminuições da cruz, da aspa e da asna como as do chefe e da campanha também têm nomes próprios: respectivamente estrezflanchis, étaicomble e plaine. Para o português estes podem ser traduzidos como escoracúmulo e planície (ainda assim, talvez asna diminutachefe diminuto e campanha diminuta soem menos forçados), mas as diminuições da cruz e da aspa não costumam ser brasonadas (cruz/aspa de coticas ou de verguetas é um preciosismo francamente dispensável).

Na segunda ordem ficam, então:

  • o escudete, cuja largura equivale normalmente a um terço da do escudo;
  • a bordadura, cuja largura equivale normalmente a um sexto da do escudo;
  • a orla, cuja largura equivale normalmente à metade da bordadura e é separada do bordo do escudo pela mesma medida;
  • o lambel, que se assemelha a um banco, tanto que na heráldica portuguesa também se denomina banco de pinchar, cujo número de pés ou pendentes varia e, por isso, é preciso brasonar;
  • o franco-quartel, que é a partição do esquartelado convertida em peça, normalmente equivalente ao primeiro quartel;
  • o girão, que é a partição do gironado convertida em peça, normalmente equivalente à última, de modo que o lado oposto ao centro do escudo se firma no flanco destro;
  • a pila, que é a partição do calçado convertida em peça, isto é, um triângulo cuja base se firma no chefe;
  • a pira, que é a partição do chapado convertida em peça, isto é, um triângulo cuja base se firma na ponta.

Em francês, há nomes específicos para as reduções da bordadura, da orla e do franco-quartel: respectivamente filière, trécheur e franc-canton. Na nossa língua, diz-se debrum, orleta e franco-cantão, sabendo-se, porém, que, como rareiam nas armarias portuguesa e brasileira, não receberam um tratamento claro dos autores lusófonos.

Em síntese:

 

Peça

Diminuição (½ ou )

Em número

Francês

Português

Francês

Português

Francês

Português

1.ª ordem

chef

chefe

comble

cúmulo

Não há.

pal

pala

vergette

vergueta

pals (≤ 4)
vergettes (≥ 5)

palas (≤ 4)
verguetas (≥ 5)

fasce

faixa

divise

divisa (½)
faixeta ()

fasces (≤ 4)
trangles (5 ou 7)
burèles (6 ou 8)

faixas (≤ 4)
burelas (≥ 5)

bande

banda

cotice

cotica

bandes (≤ 4)
cotices (≥ 5)

bandas (≤ 4)
coticas (≥ 5)

barre

barra

traverse

travessa

barres (≤ 4)
traverses (≥ 5)

bandas (≤ 4)
travessas (≥ 5)

croix

cruz

estrez

Não se brasona.

croisettes

cruzetas

sautoir

aspa

flanchis

Não se brasona.

flanchis

aspas

chevron

asna

étai

escora

chevrons

asnas

champagne

campanha

plaine

planície

Não há.

pairle

perle

Não se brasona.

Não há.

2.ª ordem
écusson
escudete

Não se brasona.

écussons

escudetes

bordure

bordadura

filière

debrum

Não há.

orle

orla

trécheur

orleta

double, triple trécheur etc.

orleta dupla, tripla etc.

lambel
lambel
Não se brasona.
lambels
lambéis
franc-quartier

franco-quartel

franc-canton

franco-cantão

Não há.

pile
pila
Não se brasona.
piles
pilas
pointe
pira
Não se brasona.
pointes
piras
giron

girão

Não se brasona.

girons

girões


Notas:
(1) Atualmente se diria tanto em francês como em português d'argent à six cotices de sable/de prata com seis coticas de negro.
(2) Atualmente, tanto em francês como em português, giron/girão é a peça, ao passo que a partição se denomina gironné/gironado. Além disso, o artista inverteu os esmaltes: no gironado, o primeiro esmalte é o do girão que se firma na destra do chefe.
(3) Atualmente se diria cruzetas e se brasonaria a sua disposição, pela iluminura as da ponta alinhadas em banda.