23/11/22

BICENTENÁRIO DA HERÁLDICA BRASILEIRA: HOMENAGEM

Há duzentos anos começava uma experiência ímpar de heráldica gentilícia no continente americano.

Há duzentos anos, Dom Pedro I criou a heráldica brasileira. O direito português nessa matéria seguiu, assim como toda a legislação não revogada, vigendo no país, mas para requerer a confirmação ou concessão de armas os brasileiros não precisavam mais endereçar-se ao rei de armas Portugal, pois agora o rei de armas do Império se encarregava de passar as competentes cartas em nome do imperador. Como referi na postagem de 18/11, um escrivão próprio vinha lavrando e registrando esses diplomas de forma independente do Cartório da Nobreza lisboeta desde 1811.

Desconhecendo nós as insígnias dos oficiais de armas brasileiros, como expus na postagem anterior, resolvi comemorar esta efeméride imaginando como poderiam ter sido. Curiosamente, nenhum dos dicionários mais prestigiosos do nosso idioma define bem o que seja tabardo, nem mesmo o venerável Vocabulário de Bluteau (1712-28). Tive, pois, de apelar à língua original da heráldica, consultando o Trésor de la Langue Française informatisé:

TABAR(D), subst. masc.
HIST. DU COST. Manteau court et ample, à manches formant ailerons, à fentes latérales, porté au Moyen Âge par-dessus l'armure ou la cotte de maille.
P. anal. Tunique brodée d'armoiries portée par les hérauts d'armes. Synon. dalmatique. (1)

Convinha buscar uma definição que dissesse sucintamente como seja um tabardo porque há vários modelos, tanto no que tange à costura como no que tange à heráldica.

Insígnia e tabardo imaginários do rei de armas do Império.
Insígnia e tabardo imaginários do rei de armas do Império.

Quanto à costura, a dianteira e a traseira podem consistir em uma só peça ou duas que se juntam sobre os ombros por costura ou laços de fitas. As mangas variam ainda mais: semicirculares, quadrangulares ou de ambas as formas, como escudos boleados de cabeça para baixo. Os tabardos dos oficiais de armas portugueses que estão conservados no Museu Nacional dos Coches têm clarissimamente o corte de uma dalmática romana, isto é, o paramento que o diácono vestia então no rito romano da Igreja Católica, hoje mais variável.

Quanto à heráldica, discirno quatro modelos. O primeiro é o medieval e original: as peças do tabardo servem de campo para a reprodução das armas, como praticam as corporações britânicas de oficiais de armas. O segundo é o moderno: o tabardo tem certa cor e em cada peça se reproduz o brasão, isto é, o escudo com os ornamentos externos, como é mais comum na Espanha. O terceiro é um tabardo de uma ou duas cores, em que se mesclam elementos heráldicos e decorativos, como o do Chief Herald of Canada/héraut d'armes du Canada. O quarto é, propriamente, o caso de formas mistas, como os tabardos dos maceiros de Madrid e de Leão, na Espanha.

Tabardo do rei de armas Tosão de Ouro. Observe-se que a presença das armas reais portuguesas permite a datação de 1580 a 1668 (conservado no KHM).

No exercício que ora apresento, preferi equilibrar um corte antigo e uma heráldica menos tradicional. Com efeito, preferi o corte outrora praticado nos Países Baixos sob o domínio dos Habsburgos (hoje Bélgica e Luxemburgo), cujos modos cortesãos influíram na península Ibérica por meio da união dinástica com a Coroa espanhola (1518-1714). Vê-se o uso desse modelo nos desenhos das honras fúnebres de Carlos V que Hieronymus Cock fez e Christophe Plantin editou em 1559. Melhor ainda: o Kunsthistorisches Museum (KHM), em Viena, conserva vários exemplares dos séculos XVII e XVIII. Caracteriza-se pelo alargamento das peças dianteira e traseira de cima para baixo e por mangas semicirculares. As quatro peças são costuradas.

Brasão imaginário da corporação brasileira dos oficiais de armas: de verde com três escudetes de ouro; suporte: uma serpe estendida de ouro, armada e lampassada de vermelho e cingida da coroa imperial de ouro, forrada de vermelho.
Brasão imaginário da corporação brasileira dos oficiais de armas: de verde com três escudetes de ouro; suporte: uma serpe estendida de ouro, armada e lampassada de vermelho e cingida da coroa imperial de ouro, forrada de vermelho.

No entanto, acho pouco desafiadora a reprodução das armas nas peças do tabardo a modo de campo. Desta feita, após debruar cada peça em ouro, como nos ditos exemplares borguinhões, impôs-se-me a escolha da cor. É probabilíssimo que os tabardos dos oficiais de armas brasileiros tenham sido verdes, a cor do escudo das armas nacionais, do pano da bandeira nacional, das insígnias imperiais, das librés da Casa Imperial etc.

Reproduções das armas nacionais nas insígnias imaginárias dos oficiais de armas.
Reproduções das armas nacionais nas insígnias imaginárias dos oficiais de armas.

Em seguida, veio a escolha das figuras: orlei a dianteira e traseira de ramos ondeantes de cafeeiro e tabaco e carreguei o meio, pouco abaixo do peito de quem o veste, das armas: uma esfera armilar atravessada por uma cruz da Ordem de Cristo e circulada por uma orla com vinte estrelas. Mas não quis repeti-las nas mangas; nelas pus a coroa imperial e, junto à barra, dez estrelas alternadas com esferas armilares e cruzes da Ordem de Cristo, de modo que as duas peças perfazem vinte estrelas. Escolhidas as figuras, ficaria pouco elegante, a meu ver, dar-lhes as suas cores ordinárias, de modo que preferi o dicromatismo "verde de primavera e amarelo de ouro" (cf. a postagem de 16/09), exceto na orladura de cafeeiro e tabaco, que ressaltei em verde-escuro.

Insígnias imaginárias dos oficiais de armas do Império do Brasil.
Insígnias imaginárias dos oficiais de armas do Império do Brasil.

Com relação à insígnia, gosto da fita azul-clara que menciona a Decisão n.º 12/1810 (leia-se a referida postagem anterior), mas se o rei de armas do Império não teve colar, teria sido digno de um. Não como o colar do rei de armas português, de arte abstrata; algo mais significativo, o que não me foi nada difícil encontrar: as vinte estrelas representativas das províncias. Como as encadear? Primeiro as vazando; depois, ligando-as com elos romboidais, isto é, com a forma da figura geométrica que distingue a bandeira nacional. Para ornar esses elos, remontei ao antiquíssimo costume de pôr letras iniciais em colares de dignidades: bês maiúsculos, de Brasil.

Isso descreve o colar. A corrente ou fita fecha-se sob o brasão imaginário da corporação dos oficiais de armas. Para simbolizar o ofício, engenhei um escudo de verde com três escudetes de ouro, referentes aos três graus (rei de armas, arauto e passavante), todos de ponta ogival, o formato clássico (cf. a postagem de 01/01/2021), e por suporte uma serpe estendida de ouro, armada e lampassada de vermelho, o timbre da Casa Imperial, a qual poderia aparecer cingida da coroa imperial.

Para distinguir cada grau do ofício, reproduzi as armas nacionais e imperiais de três maneiras, seguindo à larga o disposto na Decisão n.º 12/1810. Para o rei de armas, uma reprodução completa, mas como seria um trabalho de ourivesaria, meti o escudo numa tarja e passei os ramos de cafeeiro e tabaco pelas suas dobras. Para o arauto, um escudo oval sem a coroa, dentro de uma moldura a modo de bordadura, em cuja metade de baixo figurei com formas frondosas os ramos de cafeeiro e tabaco e em cuja metade de cima escrevi a divisa In hoc signo vinces (cf. a postagem de 09/09). Para o passavante, um escudo redondo, circulado pela dita divisa e, abaixo, o ano MDCCCXXII, tudo dentro de uma tarja.

Como a cor dourada abunda no tabardo, pareceu-me equilibrado fazer as insígnias de prata, exceto a fita azul-celeste.

Para acabar estes exercícios de imaginação, é verdade que os oficiais de armas brasileiros não precisavam ter nomes de lugar, já que havia um de cada grau. Ainda assim, poderiam ter recebido denominações de especial significação histórica, tal como o grito de guerra do rei da França deu nome ao rei de armas Montjoie; a ordem de cavalaria britânica principal, ao rei de armas Garter ou Jarreteira; importantes rios do Canadá, aos arautos desse país.

No Brasil, esses nomes poderiam ter sido, entre outros, rei de armas Cruzeiro do Sul, arauto Ipiranga e passavante Pirajá. O primeiro alude à ordem honorífica que já sob o Império se tornou um símbolo nacional. O segundo, ao riacho em cujas margens Dom Pedro I proclamou a Independência em 7 de setembro de 1822. O terceiro, ao riacho em cujas margens o Exército Pacificador da Bahia travou um combate decisivo (daí dito Batalha de Pirajáem 8 de novembro do mesmo ano contra as forças portuguesas que ocupavam Salvador. Sem dúvida, nomes que satisfariam bem ao gosto nativista do século XIX.

Nota:
(1) "
TABAR(D), subst[antivo] masc[ulino]
"HIST[ÓRIA] DO VEST[UÁRIO]. Casaco curto e largo, com mangas formando alhetas, com fendas laterais, trazida na Idade Média por cima da armadura ou da cota de malha.
"P[or] anal[ogia]. Túnica bordada de brasões trazida pelos arautos de armas. Sinôn[imo] dalmática." (tradução minha)

21/11/22

BICENTENÁRIO DA HERÁLDICA BRASILEIRA: AS INSÍGNIAS

Os oficiais de armas trajam insígnias que os distinguem pomposamente desde a sua origem no fim da Idade Média.

Na postagem anterior, eu disse que as nomeações de Dom João para a Corporação dos Reis de Armas no Rio de Janeiro retroagiram a 19 de junho de 1810. Nessa data, lavrou-se uma decisão de governo a respeito das insígnias de tais oficiais:

DECISÃO N.º 12, DE 19 DE JUNHO DE 1810
Declara as insígnias das pessoas empregadas na Corporação dos Reis de Armas.
O Príncipe Regente, nosso Senhor, é servido ordenar que as pessoas empregadas na Corporação dos Reis de Armas, que mandou criar nesta Corte em 8 de maio próximo passado, usem das suas insígnias pendentes de uma fita azul-claro, que é da mesma forma que lhe foi concedido em Lisboa, a saber, os reis de armas usarão de uma medalha com as armas reais e uma coroa por cima; os arautos, dessa medalha com as armas reais somente, e os passavantes, de uma medalha esférica com o escudo das armas no centro e as cinco quinas. O que tudo participo a Vossa Mercê para sua inteligência e assim o fazer constar às sobreditas pessoas.
Deus guarde a Vossa Mercê.
Paço, em 19 de junho de 1810.
CONDE DE AGUIAR
SR. ISIDORO DA COSTA E OLIVEIRA

Segundo Rui Vieira da Cunha em estudo de 1974 (1), o testemunho mais antigo dessas insígnias remonta ao reinado de Dom José: datam de 1763 umas Ordens que se expedem pela Mordomia-Mor nas funções dos batizados de pessoas reais, nas quais se lê:

Luís Rodrigues Cardoso, que serve de Rei de Armas Portugal, avisará aos reis de armas, arautos e passavantes para se acharem todos no Paço no dia de domingo, 2 de outubro próximo futuro, pelas duas horas da tarde, e assistirem com cotas e colares à função do batismo do Sereníssimo Senhor Infante, neto de Sua Majestade. E para o dito efeito, receberão as ditas cotas e colares do Tesoureiro da Casa Real, na forma costumada.

Nuno Álvares Pereira na Corônica do condestabre de Purtugal, 1526 (exemplar conservado na Biblioteca Nacional de Portugal).
Nuno Álvares Pereira na Corônica do condestabre de Purtugal, 1526 (exemplar conservado na Biblioteca Nacional de Portugal).

O infante era Dom João, secundogênito da princesa Dona Maria, que veio morrer menos de um mês depois de ter nascido. Além do colar, o texto menciona a cota, sobreveste distintiva dos oficiais de armas desde fins do século XIII. A rigor, a cota fazia parte do armamento do cavaleiro (leia-se a postagem de 10/02/2021), ao passo que a do oficial de armas se denomina tabardo. A cota aparece, por exemplo, na iconografia de Nuno Álvares Pereira (1360-1431), o Santo Condestável, reproduzindo as armas dos Pereiras: de vermelho com uma cruz florenciada de prata, vazia do campo.

Samy Khalid, Chief Herald of Canada/héraut d'armes du Canada, proclamando o rei Carlos III em Ottawa, 10/09/2022 (vídeo disponível no portal da CBC).
Samy Khalid, Chief Herald of Canada/héraut d'armes du Canada, proclamando o rei Carlos III em Ottawa, 10/09/2022 (vídeo disponível no portal da CBC).

Com efeito, restam poucos oficiais de armas hoje em dia: na África do Sul, o Bureau of Heraldry é chefiado pelo National Herald; a Canadian Heraldic Authority/Autorité héraldique du Canada é formada por seis arautos sob a direção do Chief Herald of Canada/héraut d'armes du Canada; na Escócia, a Court of the Lord Lyon é formada por três arautos e três passavantes sob a chefia do Lord Lyon King of Arms; na Inglaterra, com jurisdição sobre o resto do Reino Unido e demais reinos da Comunidade britânica, o College of Arms é formado por dois reis de armas, seis arautos e quatro passavantes sob a chefia do Garter King of Arms; na Irlanda, há o Oifig an Phríomh-Aralt/Office of the Chief Herald; em Malta, o Office of the Chief Herald of Arms; o New Zealand Herald of Arms Extraordinary é o oficial de armas extraordinário do College of Arms para a Nova Zelândia; o Геральдический совет при Президенте Российской Федерации (Geral'dičeskij sovet pri Prezidente Rossijskoj Federacii, i.e., 'Conselho Heráldico da Presidência da Federação Russa') é presidido pelo государственный герольдмейстер (gosudarstvennyj gerol'dmejster, i.e., 'arauto principal do estado'); na Suécia, o Heraldiska nämnd é chefiado pelo Statsheraldiker. De todos, apenas o Chief Herald of Canada/héraut d'armes du Canada e os oficiais de armas britânicos costumam trazer tabardo, precisamente porque desempenham funções cerimoniais, como se viu recentemente na proclamação de Carlos III e nas honras fúnebres de Elizabeth II. (2, 3)

David White, Garter King of Arms, proclamando os títulos e tratamentos de Elizabeth II enquanto o seu féretro descia, encerrando as suas honras fúnebres na Capela de São Jorge, Castelo de Windsor (St George's Chapel, Windsor Castle), 19/09/2022 (imagem disponível no portal da Sky News).
David White, Garter King of Arms, proclamando os títulos e tratamentos de Elizabeth II enquanto o féretro descia, encerrando as suas honras fúnebres na Capela de São Jorge, Castelo de Windsor (St George's Chapel, Windsor Castle), 19/09/2022 (imagem disponível no portal da Sky News).

Não obstante, a Espanha é, neste tema, um caso curioso. A comunidade autônoma de Castela e Leão criou, mediante o Decreto 105/1991, de 9 de maio, o cargo de cronista de armas de Castilla y León e, pelo Decreto 111/1991, de 15 de maio, o presidente dessa comunidade nomeou Alfonso de Ceballos-Escalera Gila, marquês de La Floresta, para tal cargo. O artigo 16 da primeira norma dispõe que "ostentará las facultades y competencias tradicionales de los antiguos Cronistas, Reyes de Armas y Heraldos de Castilla y León, contenidas en el Real Decreto de 29 de julio de 1915, y el Decreto de 13 de abril de 1951" ("ostentará as faculdades e competências tradicionais dos antigos Cronistas, Reis de Armas e Arautos de Castela e Leão, contidas no Real Decreto de 29 de julho de 1915 e no Decreto de 13 de abril de 1951"), mas o Conselho de Estado, por meio do Ditame 2.437/1995, entende que essa disposição excedeu a competência do governo autônomo, de modo que o cronista de armas se cinge, sob a perspectiva do estado espanhol, a prestar ao dito governo assessoria em matéria de heráldica municipal. À falta de função cerimonial, não se vê o marquês de La Floresta vestindo tabardo.

Maceiro das Cortes Gerais na proclamação de Filipe VI, 19/06/2014 (imagem disponível no portal de El País).
Maceiro das Cortes Gerais na proclamação de Filipe VI, 19/06/2014 (imagem disponível no portal de El País).

Ao mesmo tempo, é muito habitual ver tabardos em cerimônias públicas por toda a Espanha, especialmente nos territórios da antiga Coroa de Castela. Ocorre que aí essa sobreveste se tornou característica dos maceiros. Um macero, segundo o Diccionario de la lengua española, da Real Academia Española, é uma "persona que lleva la maza delante de las corporaciones o personas autorizadas que usan esta señal de dignidad" ("pessoa que leva a maça diante das corporações ou pessoas autorizadas que usam esse sinal de dignidade"), ou seja, equivale ao antigo oficial que em Portugal e no Brasil se denominava porteiro da maça. Como lá a difusão é extensa, há notável diversidade de estilos:

  • O tabardo que os maceiros de Alcalá de Henares trazem exemplifica o modelo mais comum, a saber, tem cor igual à bandeira municipal e ornamentos dourados e ostenta o brasão municipal sobre o peito de quem o veste;
  • os maceiros da província de Guadalajara trazem um tabardo purpúreo sem armas algumas, já que as provinciais pendem de um corrente ao pescoço;
  • aqueles da província de Guipúzcoa, um da mesma cor com as armas provinciais no meio da peça dianteira, dois brasões municipais abaixo delas e mais três na peça traseira e a águia imperial com as Colunas de Hércules nas peças laterais;
  • aqueles da cidade de Leão, um com as armas dos Reis Católicos (sem o embutido em ponta de Granada) abrangendo a maior parte das peças dianteira e traseira, e as armas municipais nas peças laterais;
  • aqueles da vila de Madrid, um semelhante, mas as armas que abrangem a maior parte das peças dianteira e traseira são as assumidas pelo General Francisco Franco em 1938, nas quais em vez das armas da Sicília aparecem as de Navarra, e, sobre o todo, as armas que o município trouxe de 1859 a 1967;
  • aqueles da cidade de Burgos, um com as armas de Castela e do município multiplicadas a modo de xadrezado de três tiras em pala.

Tabardo português do século XVIII (conservado no MNC, Lisboa).
Tabardo português do século XVIII (conservado no MNC, Lisboa).

Em Portugal, o Museu Nacional dos Coches (MNC) conserva seis tabardos com os respectivos colares, os quais descreve assim: "Distintivos – séc. XVIII. Trabalho português. Túnica dos reis de armas e colar de prata dourada. Dalmáticas com as armas em brocado vermelho, agaloadas a ouro, com aplicações de prata dourada representando castelos heráldicos, com as armas reais da época de D. José I". Inclusive, um par desses bens foi cedido ao novo Museu do Tesouro Real.

Colar de rei de armas (conservado no MNC e cedido ao Museu do Tesouro Real, Lisboa).
Colar de rei de armas (conservado no MNC e cedido ao Museu do Tesouro Real, Lisboa).

Como se lê e se vê, o tabardo dos oficiais de armas portugueses, ao menos desde o reinado de Dom José, não reproduzia nenhum brasão, mas era todo vermelho com ornatos vegetais em tom mais claro. Aplicaram-se sete torres de prata dourada, esculpiadas em alto relevo, três em cada flanco e uma no meio, pouco abaixo do peito de quem o vestia. A forma de torre é a que se deu aos castelos das armas reais desde o século XVIII, portanto a feitura desse tabardo se inspirou na bordadura dessas armas. Por que se preteriram as hiperemblemáticas quinas? Suspeito que terá influído aí o fato de o vermelho ser a cor da Casa Real desde 1728, como a própria coleção de fardamentos do MNC o demonstra.

Bens do MNC cedidos ao Museu do Tesouro Real (imagem publicada pela DGPC no Twitter).
Bens do MNC cedidos ao Museu do Tesouro Real (imagem publicada pela DGPC no Twitter).

Com efeito, esse estilo de tabardo eludia a convenção originária de restringir as armas reais ao oficial de armas principal, cabendo aos demais trazer aquelas dos reinos, senhorios e povoações que os nomeavam, como o testemunham as gravuras das honras fúnebres de Carlos V, engenhadas por Hieronymus Cock e editadas por Christophe Plantin em 1559. Ainda assim, um tweet da Direção-Geral do Património Cultural (DGPC) mostra um tabardo mais rico, cujos ornatos vegetais também receberam aplicações de prata dourada. Seja como for, a norma transcrita no topo desta postagem patenteia que eram os colares que distinguiam os oficiais de armas portugueses, porém a insígnia que vemos nas fotografias acima — as armas reais ao gosto barroco — não pende de uma fita azul, mas de elos do mesmo metal, finamente lavrados e encadeados.

No mesmo estudo, Rui Vieira da Cunha observa que o Livro 1.º de Funções da Coroação (fol. 74v) registra um aviso ao rei de armas que testemunha a continuidade de todas estas coisas no Brasil:

Para o Rei de Armas. Félix José da Silva, Rei de Armas, avise o arauto e passavante para que no dia 1.º de dezembro próximo seguinte se achem neste paço, onde estarão as insígnias que lhe pertencem para assistirem ao auto da coroação e sagração de Sua Majestade Imperial. E para seu governo se remete o exemplar incluso do cerimonial do referido auto. Rio de Janeiro, em 23 de novembro de 1822.

Essa é exatamente a mesma data em que se criou o ofício de rei de armas do Império e o dito Félix José da Silva foi nele provido. Como eram essas insígnias? Terá havido tempo para confeccionar um tabardo? Se não houve, parece certo que depois se fez, já que o mesmo autor achou numa portaria de 9 de agosto de 1843, endereçada ao rei de armas por José Antônio da Silva Maia, ministro do Império, o aviso seguinte:

Fique na inteligência de que deve comparecer com o arauto e passavante, com cotas e colares, pelas nove horas da manhã no cais denominado da Imperatriz, no dia em que Sua Majestade, a Imperatriz, fizer a sua entrada solene nesta Corte, a fim de tomarem no acompanhamento o lugar que lhes compete, na forma do programa, de que, para seu conhecimento, se lhe remete o incluso exemplar.

Trata-se, evidentemente, da chegada da imperatriz Dona Teresa Cristina ao Rio de Janeiro em 3 de setembro desse ano. O veterano Félix José da Silva respondeu que não poderia comparecer. Por alvará de 21 de agosto do mesmo ano, o arauto José Maria da Silva Rodrigues sucedeu-lhe no ofício de rei de armas do Império.

Infelizmente, não se conhece descrição nem registro visual das insígnias dos oficiais de armas brasileiros, tampouco o paradeiro delas após a queda da monarquia. A derradeira cerimônia em que consta a participação dessa corporação é o batizado do príncipe Dom Luís aos 14 de março de 1878. Presume-se, portanto, que por mais de um decênio antes de a corporação se acabar não precisou usar as suas insígnias. Na verdade, após a morte de Manuel dos Santos Carramona em 1885, sequer voltou a se recompor. E a incúria com que se geria, como o prova o extravio dos livros do Cartório da Nobreza, sugere, enfim, que os desusados tabardos devem ter virado trapos velhos e os colares devem estar por aí, nas mãos de ignotos particulares, quiçá depois de os terem arrematado em leilão, destinos habituais de bens que o poder público não pôde conservar.

Notas:
(1) Ainda as insígnias de oficiais heráldicos, publicado na revista Armas e troféus (III série, tomo III, p. 369-373). Agradeço ao Instituto Português de Heráldica, na pessoa do Sr. João Portugal, o acesso a esse estudo.
(2) Há imagens dos membros do Conselho Heráldico da Presidência da Federação Russa vestindo tabardos na Internet, mas não parece um uso cerimonial, e sim comemorativo. Por outro lado, Philip Patrick O'Shea, New Zealand Herald Extraordinary, exerce funções cerimoniais, como a dita proclamação de Carlos III, mas não veste tabardo.
(3) É perfeitamente possível traduzir os nomes dos oficiais de armas: rei de armas Jarreteira, arauto extraordinário Nova Zelândia, arauto nacional, principal, estatal etc., mas além de não se dizer Senhor Leão, nem mesmo Lorde Leão, por Lord Lyon, acho interessante a dualidade inglês–francês em Chief Herald of Canada/héraut d'armes du Canada, em que uma locução não é exatamente tradução da outra.

19/11/22

BICENTENÁRIO DA HERÁLDICA BRASILEIRA: O INSTITUTO

A criação do ofício de rei de armas do Império pode ser tida como o marco inicial da heráldica brasileira.

A partir de 1808, quando Dom João instalou a Corte no Rio de Janeiro, foram-se paulatinamente duplicando as instituições necessárias ao governo da monarquia, inclusive aquelas às quais competia conceder ou confirmar as diferentes formas de amerceamento régio: títulos de nobreza, foros de fidalguia, ordens de cavalaria, brasões de armas etc.

No que respeita à última das mercês mencionadas, consta que a Corporação dos Reis de Armas foi criada aos 8 de maio de 1810, claramente para funcionar no casamento do infante Dom Pedro Carlos, neto de Carlos III da Espanha, que crescera em Portugal e também viera para o Brasil, com a infanta Dona Maria Teresa, a primogênita do príncipe regente, o qual foi celebrado no dia 13 desse mês no Rio. As nomeações saíram, todavia, algum tempo depois: a Isidoro da Costa e Oliveira deu-se o ofício de rei de armas Portugal por alvará de 13 de setembro de 1814; a Tomás Antônio Carneiro, o de rei de armas Algarve por alvará de 18 de novembro do mesmo ano; a Luís Ribeiro de Carvalho, o de rei de armas América, Ásia e África por alvará da mesma data. Os efeitos desses documentos retroagiam a 19 de junho de 1810, quando se lavrou a Decisão n.º 12, declarando as insígnias dos oficiais de armas.

Para passar cartas de brasão e registrá-las, faltava, porém, prover o ofício de escrivão da Nobreza, o qual foi dado a Antônio Bernardo Cardoso Pessanha de Castelo Branco por alvará de 6 de fevereiro de 1811. Enquanto isso, Francisco de Paula Campos, escrivão da Nobreza por alvará de 18 de julho de 1803, e Antônio da Silva Rodrigues, rei de armas Portugal por alvará de 19 de julho de 1805, sucedido por José Teodoro de Seixas a partir de junho de 1811, permaneceram no Reino, passando e registrando tais cartas, de modo que houve desde então dois Cartórios da Nobreza: um em Lisboa e o outro no Rio.

Convém lembrar que a corporação dos oficiais de armas foi instituída por Dom Manuel I em 1512 (leia-se a postagem de 13/01/2021). Compunha-se de três reis de armas, três arautos e três passavantes. Os primeiros tinham os nomes dos dois reinos e do único estado ultramarino à época: rei de armas Portugal, rei de armas Algarve e rei de armas Índia. Os segundos, os nomes das cidades principais desses domínios: arauto Lisboa, arauto Ceuta (depois Silves) e arauto Goa. Os terceiros, das suas maiores vilas: passavante Santarém, passavante Tavira (depois Lagos) e passavante Cochim. Portugal era o oficial de armas principal desde 1476 e, como tal, competia-lhe exclusivamente passar brasões em nome do monarca (leia-se a postagem de 11/01/2021).

Portanto, o rei de armas América, Ásia e África foi uma inovação e em 1817, quando se aproximava a aclamação de Dom João VI (que se celebraria em fevereiro do ano seguinte), pleiteou a precedência para proferir o "Ouvide!", mas a Mesa do Desembargo do Paço preferiu salvaguardar a principalidade do rei de armas Portugal, julgando que o de Luís Ribeiro não era ofício novo, mas mera renomeação do rei de armas Índia, não mais alusivo a um dos estados, mas ao conjunto do império ultramarino, embora então houvesse alguém na posse desse ofício: José da Cunha Madeira, que serviu de rei de armas Portugal interinamente desde dezembro de 1817 junto ao cartório lisboeta.

Dom Pedro I, gravura de Pierre-Louis Grevedon, c. 1830 (imagem disponível na Brasiliana Iconográfica).
Dom Pedro I, gravura de Pierre-Louis Grevedon, c. 1830 (imagem disponível na Brasiliana Iconográfica).

Foi, pois, mais um fausto da monarquia que demandou a criação da corporação brasileira dos oficiais de armas em novembro de 1822: a sagração e coroação de Dom Pedro I. A corporação que funcionava no Rio partira com Dom João VI para Portugal em abril de 1821, exceto Félix José da Silva, que tinha o ofício de passavante desde 1817. Foi feito rei de armas do Império:

Eu, o Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Império do Brasil, faço saber a vós, José Bonifácio de Andrada e Silva, do meu Conselho de Estado, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império e que servis de meu Mordomo-Mor, que hei por bem e me praz fazer mercê a Feliz José da Silva do ofício de Rei d'Armas do Império, com o qual haverá mil e quinhentos réis de moradia por mês e um alqueire de cevada por dia, paga a vinte réis o alqueire, e sete mil cento e sessenta réis de vestiaria por ano e seiscentos réis de janeiras. Mando-vos o façais assentar no Livro da Matrícula dos Moradores da minha Casa em seu título, como dito é. E pagou de novos direitos cinco mil e seiscentos réis, que se carregaram ao Tesoureiro deles no Livro Primeiro da sua Receita, a folhas nove. Rio de Janeiro, 23 de novembro de 1822. Imperador com guarda. José Bonifácio de Andrada e Silva. Praz a Vossa Majestade Imperial fazer mercê a Feliz José da Silva do ofício de Rei d'Armas do Império, como neste alvará se declara. Para Vossa Majestade Imperial ver. Por portaria do Ilustríssimo e Excelentíssimo José Bonifácio de Andrada e Silva, que serve de Mordomo-Mor, de 12 de novembro de 1822. O Visconde do Rio Seco o fez escrever. Do alvará, 12$800; aos oficiais, 1$600. Domingos José Ferreira o fez. (1)

Além do rei de armas, o cerimonial também previu o funcionamento de um arauto e um passavante, mas apenas o alvará transcrito saiu antes da cerimônia. O ofício de passavante do Império foi criado e dado a José Bernardes Monteiro Guimarães por alvará de 30 de dezembro de 1822 e o de arauto do Império, a Daniel José Pereira por alvará de 24 de maio de 1823. Como havia um oficial de cada categoria, não foi preciso dar-lhes nomes de lugar.

Carta de brasão de Augusto Leverger, barão de Melgaço e presidente do Mato Grosso, passada pelo rei de armas Manuel dos Santos Carramona e registrada pelo escrivão Luís Aleixo Boulanger em 1865. As suas armas são "em campo de goles um castelo de ouro, saindo pela porta uma [mão] destra ao natural, armada de uma espada de azul, posta em banda, acompanhado em chefe de uma estrela de prata entre as letras iniciais M–G de ouro e em ponta de um rio de prata, carregado de uma âncora de sable; divisa: SEMPRE PRONTO" (imagem disponível da Biblioteca Nacional Digital).
Carta de brasão de Augusto Leverger, barão de Melgaço e presidente do Mato Grosso, passada pelo rei de armas Manuel dos Santos Carramona e registrada pelo escrivão Luís Aleixo Boulanger em 1865. As suas armas são "em campo de goles um castelo de ouro, saindo pela porta uma [mão] destra ao natural, armada de uma espada de azul, posta em banda, acompanhado em chefe de uma estrela de prata entre as letras iniciais M–G de ouro e em ponta de um rio de prata, carregado de uma âncora de sable; divisa: SEMPRE PRONTO" (imagem disponível da Biblioteca Nacional Digital).

O arauto era uma espécie de aprendiz do rei de armas e o passavante, uma espécie de aprendiz do arauto. Com efeito, Félix José da Silva foi sucedido no ofício de rei de armas por José Maria da Silva Rodrigues em 1846, quem o exerceu até 1859, sendo que ele mesmo assumira o ofício de arauto no lugar de Daniel José Pereira em 1826. Seguiu-se Manuel dos Santos Carramona de 1865 a 1885, depois de quem vagou, mas Ernesto Aleixo Boulanger serviu interinamente desde 1887 até o fim da monarquia. Portanto, o Brasil teve quatro reis de armas, tendo o primeiro funcionado nas sagrações e coroações dos dois imperadores.

Seja como for, os oficiais de armas estavam entre os menores da Casa Imperial: o próprio Félix José da Silva começou a sua carreira cortesã como apontador de carpinteiros e veio ascendendo a mestre das obras públicas, varredor dos paços reais e mestre carpinteiro da Fazenda Real de Santa Cruz antes da Independência; depois, além de rei de armas, foi da Guarda de Honra (onde chegou a capitão), cavaleiro da Ordem de Cristo e cavaleiro-fidalgo da Casa Imperial. Passou a vida queixando-se de insuficiência financeira e requerendo mercês à Coroa.

José Antônio da Silva Maia nos seus Apontamentos de legislação para uso dos procuradores da Coroa e Fazenda Nacional (1846, p. 146) revela que "[n]o Brasil há somente três destes oficiais — rei d'armas, arauto e passavante — e exercem funções semelhantes às que ficam expostas, sem terem a instrução que neles desejou o rei Dom Manuel". Mas esse defeito não surgiu aqui; desde o começo do século XVIII, o rei de armas Portugal fazia pouco mais que despachar ao escrivão da Nobreza que passasse ao suplicante "o brasão de armas dos seus apelidos", cobrar os seus direitos e assinar a carta de confirmação ou concessão. Dom João V convenceu-se até mesmo de designar em 1722 um frade paulista para reformar o Cartório da Nobreza, Frei José da Cruz, tarefa continuada por Frei Manuel de Santo Antônio e Silva até 1790.

Portanto, no Brasil, como em Portugal sob a monarquia constitucional, o grosso do trabalho no Cartório da Nobreza recaía sobre o seu escrivão, daí que o derradeiro rei de armas do Império, Ernesto Aleixo Boulanger, estivesse, na verdade, acumulando interinamente esse ofício com o seu, precisamente o de escrivão da Nobreza. O primeiro seguiu sendo Antônio Bernardo Cardoso Pessanha de Castelo Branco, que não voltara com Dom João VI para Lisboa; sucedeu-lhe seu filho, Joaquim de Azevedo Lobo Pessanha e Vilhegas Castelo Branco (1830-46); depois o barão Carlos Roberto de Planitz (1846-48), Possidônio Carneiro da Fonseca Costa (1848-54), Luís Garcia Soares de Bivar (1854-63) e Luís Aleixo Boulanger (1863-74), pai de Ernesto Aleixo (1874-89). Em suma, o Cartório da Nobreza do Império teve sete escrivães.

Nota:
(1) As doações dos ofícios da Casa Real, depois Imperial, eram assentadas em livros próprios, guardados no Registro Geral das Mercês. Dou aqui a transcrição de Rui Vieira da Cunha em artigo de 1963, do qual também extraio parte das informações nesta postagem.

10/11/22

BICENTENÁRIO DA BÊNÇÃO DA BANDEIRA NACIONAL

Em 10 de novembro de 1822 finalmente se tinham bandeiras em número bastante para que começassem a assinalar a nova soberania nacional.

Há duzentos anos, os símbolos que Dom Pedro I criou pelo Decreto de 18 de setembro de 1822 começaram a exercer a função de identificar o novo estado-nação: a 10 de novembro, os primeiros exemplares da bandeira nacional foram benzidos, saudados e hasteados; no dia 12, a Secretaria de Estado remeteu o dito decreto aos diplomatas estrangeiros acreditados no país; no dia 13, as embarcações estrangeiras fundeadas no porto do Rio de Janeiro içaram e saudaram a bandeira do Brasil; no dia 14, a Gazeta do Rio, que servia de jornal oficial, incorporou as armas nacionais ao seu cabeçalho.

A bênção da bandeira era um costume militar português, atestado já por Isidoro de Almeida no seu Quarto livro das instruções militares (1573, capítulo 12): "E tanto que [o capitão] tiver a companhia formada de seus oficiais e soldados, deve fazer benzer a bandeira em ũa igreja e da sua mão publicamente dá-la ao alferes". Como eu disse na postagem de 12/10, o liberalismo moderado transigia com certas práticas sociais do Antigo Regime, especialmente em matéria religiosa. Os próprios revolucionários de 1817 em Pernambuco benzeram a sua bandeira republicana.

Para a bênção da bandeira nacional escolheu-se a festa do Patrocínio de Nossa Senhora, que fora introduzida em Portugal em 1756 pelo rei Dom José, em ação de graças por terem ele e sua família sobrevivido ao Terremoto de Lisboa. Reforçava-se, portanto, a ideia de que a separação do Brasil estava salvaguardando a Casa de Bragança, cujo chefe se achava refém das Cortes, segundo se acusava. Com efeito, o n.º 138 da Gazeta do Rio começa o relato do evento evocando a provisão de Dom João IV pela qual tomou Nossa Senhora da Conceição por padroeira do Reino, dando a entender que a escolha dessa festa para um ato tão significativo de soberania ratificava tal padroado sobre o Brasil independente.

Bandeira nacional do Brasil durante o primeiro império.
Bandeira nacional do Brasil durante o primeiro império.

A cerimônia foi presidida por Dom José Caetano da Silva Coutinho, bispo do Rio de Janeiro e capelão-mor, e ocorreu na Igreja da Sé e Capela Imperial (hoje Antiga Sé). Do relato depreende-se que ele recebia cada bandeira enrolada na haste, a benzia e entregava a Dom Pedro I, que a passava a João Vieira de Carvalho, ministro da Guerra e depois marquês de Lajes. Este as distribuiu aos comandantes das tropas formadas no Largo do Paço (hoje Praça XV de Novembro), às quais o imperador endereçou este discurso:

FALA DE 10 DE NOVEMBRO DE 1822
Faz entrega das bandeiras nacionais às forças da Guarnição da Corte.
Soldados de todo o Exército do Império,
É hoje um dos grandes dias que o Brasil tem tido. É hoje o dia em que o vosso Imperador, vosso Defensor Perpétuo e Generalíssimo deste Império vos vem mimosear, entregando-vos em vossas mãos aquelas bandeiras que em breve vão tremular entre nós, caracterizando a nossa independência monárquico-constitucional, que, apesar de todos os reveses, será sempre triunfante.
Logo que os exércitos perdem os estímulos de honra e a obediência que devem ter ao Poder Executivo, a ordem e a paz de repente é substituída pela anarquia; mas quando eles são, como este que tenho a glória de comandar em chefe, cuja divisa é valor, respeito e obediência aos seus superiores, os cidadãos pacíficos contam com a sua segurança individual e de propriedade e os perversos retiram-se da sociedade, sucumbem ou convertem-se.
Quanto a pátria precisa ser defendida e o exército tem por divisa Independência ou morte, a pátria descansa tranquila e os inimigos assustam-se, são vencidos e a glória da nação redobra o brilho.
Soldados, não vos recomendo valor, porque vós o tendes, mas sim vos asseguro que podeis contar sempre com o vosso Generalíssimo nas ocasiões mais arriscadas, em que ele, sem amor à vida e só à pátria, vos conduzirá ao campo da honra, onde ou todos morreremos ou a causa há de ser vingada.
Soldados, qual será o nosso prazer e os das nossas famílias quando ao seio delas voltarmos cobertos de louros, nos vermos rodeados da cara esposa e de nossos filhos e lhes dissermos: "Aqui me tendes; quem defende o Brasil não morre; os nossos direitos são sagrados e, por isso, o Deus dos exércitos sempre nos há de facilitar as vitórias".
Com estas bandeiras em frente do campo da honra destruiremos os nossos inimigos e no maior calor dos combates gritaremos constantemente: "Viva a independência constitucional do Brasil! Viva! Viva!".
IMPERADOR

Findo o discurso, desenrolaram-se as bandeiras. Ao mesmo tempo nas fortalezas e nos navios da marinha de guerra, arriaram-se as bandeiras do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves e hastearam-se as do Império do Brasil sob salvas de artilharia. Assim como as armas esculpidas na cruz chantada por Pedro Álvares Cabral marcaram o começo do domínio português em 1500, a heráldica, agora reproduzida sobre pano, marcava o fim desse mesmo domínio e a posse do território pelo novo estado-nação em 1822.

Bandeira do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.
Bandeira do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.

Três dias depois, a fragata francesa e a inglesa que se encontravam ancoradas no porto do Rio prestaram as suas homenagens ao pavilhão brasileiro, içando-o à proa e saudando-o com uma salva. Os seus comandantes tinham sido comunicados pelos respectivos agentes diplomáticos, a quem a Secretaria de Estado remetera um dia antes cópias do Decreto de 18 de setembro.