30/07/21

AS COROAS DA CASA REAL

A coroa reforçava o sistema de diferenças da Casa Real, mas outra vez é preciso pesquisar o que de fato tem base histórica.

Para não alongar demais a postagem anterior, reservei para esta a questão dos ornamentos exteriores, que Antônio Godinho, autor do Livro da nobreza e perfeição das armas, não negligenciou e, no caso da Casa Real, resolveu de modo muito inventivo. Com efeito, todos os varões trazem:

  • elmo de ouro, unicamente o do rei posto de frente, os demais virados três quartos para a destra;
  • virol e paquifes de ouro e vermelho;
  • coroa antiga de ouro, cuja riqueza em ornato e pedraria vai simplificando-se conforme diminui a dignidade;
  • o timbre da Casa Real Portuguesa: a serpe, nascente da coroa.

A inventividade está, precisamente, na iluminura do timbre. Num esmero francamente excessivo, ainda que justificado no prólogo ("esta regra quis se guardasse primeiramente antre os senhores ifantes, vossos irmãos, segundo pelos labeos se mostra, mudaram-lhe os timbres, porque despois de Sua Alteza ter vistos os livros e parecer de seus reis d'armas, houve por bem o timbre real se nom trazer sem mudança, posto que nas outras linhagens assi nom fosse"), Antônio Godinho dá um esmalte a cada infante, seguindo a ordem tradicional. Assim, a serpe que timbra as armas do rei e as do príncipe é de ouro; a do primeiro infante, de prata (alada de ouro); a do segundo, vermelha; a do terceiro, azul; a do quarto, negra; a do quinto, púrpura; a do sexto, verde.

Contudo, sabe-se que durante o século XVI na Europa ocidental a forma da coroa real evoluiu, tomando os diademas que até então distinguiam a coroa imperial, daí que se brasone como antiga a coroa aberta. Em Portugal, essa evolução ocorreu durante o reinado de Dom Sebastião (1557-1578), por isso nenhum dos armoriais manuelinos a alcançou. No entanto, Frei Manuel de Santo Antônio e Silva recapitulou todo o sistema de diferenças da Casa Real no Tesouro da nobreza de Portugal, feito a partir de 1783 para servir de armorial oficial:

Fólio 2r: Monsenhor; Cônego; Rei; Rainha.
Fólio 2r: Monsenhor; Cônego; Rei; Rainha.

Tanto o rei como a rainha traziam a coroa fechada por diademas que saem detrás dos florões e convergem sob um mundo, visíveis cinco.

Fólio 2v: Príncipe do Brasil; Princesa do Brasil; Príncipe da Beira; Primeiro Infante.
Fólio 2v: Príncipe do Brasil; Princesa do Brasil; Príncipe da Beira; Primeiro Infante.

Príncipe do Brasil foi o título do herdeiro presuntivo do trono português de 1645 a 1817 (depois príncipe real). Ele e sua esposa também traziam uma coroa fechada, mas o número de diademas visíveis ficava reduzido a três. Já os infantes, traziam a coroa aberta com o timbre da Casa Real: a serpe.

Notem-se três diferenças em relação ao Livro da nobreza e perfeição das armas: a primeira, o lambel não é de prata, mas de ouro; a segunda, os escudetes das armas maternas sobrepõem-se aos pendentes da sinistra à destra; a serpe é invariavelmente de ouro.

Fólio 3r: Segundo Infante; Terceiro Infante; Quarto Infante; Filho natural do rei.
Fólio 3r: Segundo Infante; Terceiro Infante; Quarto Infante; Filho natural do rei.

Curiosamente, os escudetes que diferençam as armas do segundo infante não se sobrepõem ao primeiro e segundo pendentes da sinistra à destra, como era de se esperar, nem saltando o do meio, mas ambos ficam sobre o primeiro da sinistra à destra, assim como nas armas do quarto infante, se bem que neste caso parece cumprir mais fielmente o regimento: "que havendo outros mais filhos, virão por suas precedências de mais velho a mais moço, ocupando as pontas do labéu com armas dobradas da parte da mãe ou outras diferenças nobres. E sempre começarão da primeira ponta da mão esquerda para a da mão direita, como dito é, em cada uma sua".

Fólio 3v: Filho bastardo do rei; Infante, filha do rei; Filhos bastardos dos infantes; Duque do Cadaval.
Fólio 3v: Filho bastardo do rei; Infante, filha do rei; Filhos bastardos dos infantes; Duque do Cadaval.

Mais uma divergência em relação ao Livro da nobreza e perfeição das armas é que a lisonja da infanta também é timbrada com a coroa aberta. Mais que isso: o quarto brasão nessa página, pertencente ao duque do Cadaval, demonstra que o coronel de infante é igual ao de duque.

28/07/21

AS DIFERENÇAS DA CASA REAL

Ainda que talvez tenha sido um sistema mais teórico que prático, a heráldica portuguesa cuidava em diferençar as armas de cada membro da Casa Real.

Uma inocente busca das nossas primeiras armas nacionais na Internet pode levar o incauto curioso a resultados francamente fantasiosos, difundidos por monarquistas. Não sei se foram assumidos pelos pretendentes hodiernos à deposta coroa ou se lhes são atribuídos pelos seus entusiastas. Tampouco me interessa sabê-lo. O que me interessa é a matéria heráldica, daí o que pus na postagem anterior: se querem distribuir brasões aos Orleans e Braganças viventes segundo a antiga linha sucessória, deveriam ao menos fundamentar-se nas regras às quais a armaria gentilícia nacional obedecia: o direito heráldico português.

Com efeito, se tal regulação era tão escrupulosa em assinar a cada um o que lhe cabia em matéria heráldica, não poderia sê-lo menos em estabelecer as diferenças das armas reais que a geração do rei devia trazer. O sistema consta do chamado Regimento e ordenação da armaria, que fazia parte do corpus normativo com que o Cartório da Nobreza operava e vinha geralmente mencionado nas cartas de brasão. Dou-o a seguir a partir da cópia contida no Manual de heráldica portuguesa (1941), de Armando de Matos:

1.º item: Que só o possuidor da coroa real, que é o rei, trará as armas dos estados que o Reino possuir e trouxer direitas, sem nenhuma diferença.
2.º item: A rainha trará também as tais armas do Reino e as do estado donde ela descender direitas e em escudo partido em pala, e na primeira as do marido e na segunda as que lhe pertencerem por parte de seu pai e da maneira que as ele, seu pai, trouxer. E outra nenhuma mulher as pode trazer em escudo se rainha não for.
3.º item: Que o príncipe herdeiro do Reino as trará em vida de seu pai, enquanto não for rei, com um labéu por cima delas, posto em chefe, de três pontas virgens.
4.º item: O filho do príncipe as poderá trazer em vida de seu pai e avô com o mesmo labéu de três pontas, como o pai, mas trará sobre cada uma ponta um botão de rosa cerrado de sua cor.
5.º item: Que o segundo filho do rei e primeiro infante as trará com o mesmo labéu, como o do príncipe, seu irmão, mas trará a primeira ponta da mão esquerda com armas singelas da parte da mãe.
6.º item: Que o terceiro filho e segundo infante as trará pela maneira do infante, seu irmão, e ocupada mais a segunda ponta com mais armas singelas da parte da mãe.
7.º item: Que o quarto filho e terceiro infante as trará pela maneira do terceiro irmão, ocupada mais a terceira ponta com mais armas singelas da parte da mãe.
8.º item: Que havendo outros mais filhos, virão por suas precedências de mais velho a mais moço, ocupando as pontas do labéu com armas dobradas da parte da mãe ou outras diferenças nobres. E sempre começarão da primeira ponta da mão esquerda para a da mão direita, como dito é, em cada uma sua. E sendo filhos de muitas mães que tenham diferentes armas, cada um trará as pontas que ocupadas deve trazer com as armas de sua mãe, que a ela lhe pertencem.
9.º item: Que a princesa trará as suas armas em lisonja, a qual será partida em pala, e trará sempre a primeira parte da mão direita ocupada para as armas do marido casando, e a outra com as armas d'el-Rei, seu pai, e todas sem nenhuma diferença, por ser mulher. E as deve de trazer desta maneira.
10.º item: Que as infantas as trarão pela mesma maneira, em lisonja e partida em pala, e sempre a primeira parte da mão direita limpa para as armas do marido, quando lhe vier, e a outra com as armas d'el-Rei, seu pai, e todas sem nenhuma diferença, senão com a que os maridos tiverem, e desta maneira, por serem mulheres. E as devem assim de trazer.
11.º item: Que casando algum infante, vindo a haver filhos legítimos, estes tais trarão as próprias armas dos pais, mas com mais diferenças de filhos legítimos cada um e de mais velhos a mais moços, para por elas serem conhecidos. E os netos as trarão com mais diferenças e os bisnetos, com mais, de maneira que nesta quarta geração as deixarão de trazer e nela fenecerão as tais armas reais. E trarão dali por diante as armas da parte de suas mães e das casas donde elas descenderem, de maneira que no grau onde se apuram as populares gerações das diferenças se perdem as armas e gerações dos reis com elas.
12.º item: Que sendo caso que venham a falecer a um rei todos os filhos infantes e que lhe não fique mais que um só, este tal, ainda que seja o mais moço, saltará as suas armas e trará as do primeiro infante, por então ficar em seu lugar e não haver outro que lhe preceda.
13.º item: Que vindo a reinar o príncipe em vida deste tal infante, o dito infante, seu irmão, irá saltando as ditas armas do primeiro infante e afastando-se das diferenças que a seus sobrinhos infantes pertencerem, como fica dito, por ficarem mais chegados à coroa que ele.
14.º item: Que se o rei, príncipe ou infante vier a haver algum filho natural, que se entende de solteiro e solteira, trará por cima das armas de seu pai, que lhe pertencerem trazer, posta em banda uma cotica de cor ou metal ou composta ou fimbrada ou de veiros ou de arminhos ou gotada ou endentada ou ameada. E sendo caso que venham a haver alguns destes filhos naturais filhos, fenecerão as ditas armas suas deles em seus netos, filhos de seus filhos, com as outras mais diferenças que lhe a armaria dá, conforme a seus nascimentos, por não poderem passar estas armas reais da quarta geração por si só, ainda que vão com diferenças. E seus descendentes destes, bisnetos do rei ou príncipe ou infante, trarão daí em diante as armas da parte de suas mães e da geração que elas descenderem.
15.º item: Que se outrossim o rei ou príncipe ou infante vier a haver filho bastardo, que se entende de casado e solteira ou de solteiro e casada, além de trazer as armas de seu pai, que lhe pertencerem de trazer, trará um filete preto de bastardia em contrabanda. E vindo a haver algum destes filhos bastardos filhos alguns, fenecerão as suas armas em os filhos destes, seus filhos, com as mais diferenças que lhe a armaria dá, conforme a seus merecimentos, por serem bisnetos, que é a quarta geração do rei ou príncipe ou infante por onde lhe vieram, e não trarão daí por diante seus descendentes mais as tais armas reais, senão as das casas que por parte de suas mães lhe pertencerem.
16.º item: Que os filhos de coito danado, que são os adulterinos ou incestuosos ou sacrílegos, trarão o tal filete de diferença endentado e posto em contrabanda, como o outro, para que por ele sejam uns dos outros conhecidos: o adulterino, azul; o incestuoso, verde; e o sacrílego, sanguinho.
17.º item: Que tudo o sobredito se observará inviolavelmente para que com as sobreditas diferenças haja conhecimento de uns a outras pessoas e se distingam os reis dos príncipes, infantes e das infantas e dos mais descendentes de cada um dos sobreditos, para respeito popular.

Observe, prezado leitor, os itens 12.º e 13.º patenteiam que essas diferenças não pertenciam à pessoa, mas à dignidade. Isso dificulta achar testemunhos históricos, pois um dinasta podia passar por várias dignidades ao longo da vida à medida que o seu lugar na linha de sucessão se movia, em virtude da abdicação ou do falecimento de quem tinha a coroa ou estava mais perto de tê-la, ou mesmo do nascimento de um varão, que preteria, então, os direitos de uma mulher mais velha. Afortunadamente, o próprio criador desse sistema, Dom Manuel I, teve uma vasta prole, cujos brasões estão reproduzidos em dois dos armoriais que mandou fazer: a Sala dos Brasões no Paço de Sintra (1515-1520) e o Livro da nobreza e perfeição das armas (1521-1541). Vejamo-los neste, já que naquele as armas dos infantes estão iguais:

Fólio 7v: Rei de Portugal; Rainha Dona Maria; Do Príncipe; Infante Dom Luís.
Fólio 7v: Rei de Portugal; Rainha Dona Maria; Do Príncipe; Ifante Dom Loís.

Rei de Portugal: De prata com cinco escudetes de azul postos em cruz, carregados de cinco besantes do campo, e uma bordadura de vermelho, castelada de ouro. São as armas de Dom Manuel I (1495-1521).

Rainha Dona Maria: Partido, no primeiro, as armas do Reino; o segundo esquartelado, o primeiro e quarto contraesquartelados, o primeiro e quarto de vermelho com um castelo de ouro; o segundo e terceiro de prata com um leão de púrpura, armado e lampassado de vermelho; o segundo e terceiro partidos, o primeiro de ouro com quatro palas de vermelho; o segundo franchado, o primeiro e quarto de ouro com quatro palas de vermelho, o segundo e terceiro de prata com uma águia abatida de negro; embutido em ponta de vermelho com uma romã de ouro, sustida do mesmo e folhada de verde. São as armas de Dona Maria de Aragão (1482-1517), a segunda esposa de Dom Manuel I. A primeira foi uma irmã desta: Dona Isabel de Aragão, falecida em 1498. Ambas eram filhas de Isabel de Castela e Fernando de Aragão, os Reis Católicos. As armas do segundo partido são exatamente as que estes convieram em 1475 para marcar a sua união: o primeiro e quarto quartéis traziam as armas reais de Castela e Leão, o segundo e terceiro, as de Aragão e Aragão-Sicília e o embutido em ponta (entado en punta em espanhol, entat en punta em catalão), as do reino de Granada, o derradeiro estado muçulmano da península, que ufanamente conquistaram em 1492.

Do Príncipe: As armas do Reino, diferençadas por um lambel de prata de três pendentes. São as armas do príncipe Dom João (1502-57), o filho mais velho de Dom Manuel I e Dona Maria de Aragão. Sucedeu a seu pai em 1521 com o nome de Dom João III e reinou até a sua morte.

Infante Dom Luís (1506-55): As armas do Reino, diferençadas por um lambel de prata de três pendentes com um escudete quadrado, esquartelado de Castela e Leão, brocante sobre o primeiro pendente. Quarto filho de Dom Manuel I e Dona Maria de Aragão, primeiro infante e duque de Beja.

Fólio 8r: Infante Dom Fernando; Infante Dom Afonso; Infante Dom Henrique; Infante Dom Duarte.
Fólio 8r: Ifante Dom Fernando; Ifante Dom Afonso; Ifante Dom Hanrique; Ifante Dom Duarte.

Infante Dom Fernando (1507-34): As armas do Reino, diferençadas por um lambel de prata de três pendentes com dois escudetes quadrados, um esquartelado de Castela e Leão, brocante sobre o primeiro pendente, e o outro com as armas de Aragão, brocante sobre o terceiro. Quinto filho de Dom Manuel I e Dona Maria de Aragão, segundo infante e duque da Guarda.

Infante Dom Afonso (1509-40): As armas do Reino, diferençadas por um lambel de prata de três pendentes com três escudetes quadrados, brocantes sobre os pendentes, o primeiro esquartelado de Castela e Leão, o segundo com as armas da Inglaterra e o terceiro com as de Aragão. Sexto filho de Dom Manuel I e Dona Maria de Aragão, terceiro infante, bispo da Guarda (1516-19), bispo de Viseu (1519-23), bispo de Évora e arcebispo de Lisboa (1523) e cardeal da Santa Igreja Romana (1525).

Infante Dom Henrique (1512-80): As armas do Reino, diferençadas por um lambel de prata de três pendentes com três escudetes quadrados, brocantes sobre os pendentes, o primeiro com as armas da Inglaterra, o segundo com as de Aragão e o terceiro partido de Jerusalém e da Hungria. Oitavo filho de Dom Manuel I e Dona Maria de Aragão, quarto infante, arcebispo de Braga (1533-40), arcebispo de Évora (1540-64, 1574-78), arcebispo de Lisboa (1564-70), cardeal da Santa Igreja Romana (1547) e rei de Portugal (1578), o derradeiro da Casa de Avis.

Infante Dom Duarte (1515-40): As armas do Reino, diferençadas por um lambel de prata de três pendentes com três escudetes quadrados, brocantes sobre os pendentes, o primeiro com as armas de Aragão, o segundo partido de Jerusalém e da Hungria e o terceiro com as armas de Aragão-Sicília. Nono filho de Dom Manuel I e Dona Maria de Aragão, quinto infante e duque de Guimarães.

Fólio 8v: Infante Dona Isabel; Infante Dona Beatriz; Infante Dom Antônio; Duque de Coimbra.
Fólio 8v: Ifante Dona Isabel; Ifante Dona Briatiz; Ifante Dom Antônio; Duque de Coimbra.

Infanta Dona Isabel (1503-39): Lisonja partida, o primeiro de prata lisa; no segundo, as armas do Reino. Segunda filha de Dom Manuel I e Dona Maria de Aragão, rainha e imperatriz pelo casamento com Carlos I da Espanha e V do Sacro Império em 1526.

Infanta Dona Beatriz (1504-38): Lisonja partida, o primeiro de prata lisa; no segundo, as armas do Reino. Terceira filha de Dom Manuel I e Dona Maria de Aragão e duquesa pelo casamento com Carlos III de Saboia em 1521.

Infante Dom Antônio: As armas do Reino, diferençadas por um lambel de três pendentes com três escudetes quadrados, brocantes sobre os pendentes, o primeiro partido de Jerusalém e da Hungria, o segundo com as armas de Aragão-Sicília e o terceiro de prata liso. Décimo filho de Dom Manuel I e Dona Catarina de Aragão, faleceu em tenra idade, de tal modo que se pode datar a iluminura destas três páginas entre 9 de setembro de 1516, quando esse infante nasceu, e 7 de março de 1517, quando a rainha morreu. De fato, nem as armas de Dona Maria nem as de Dom Antônio figuram na cúpula da Sala de Sintra, o que situa a sua feitura em 1517 e 1518.

Duque de Coimbra: As armas do Reino, diferençadas por um filete de negro em barra, brocante sobre tudo. São as armas de Jorge de Lancastre (1481-1550), filho bastardo de Dom João II.

A correspondência destes casos com o regimento é bastante regular, a não ser pela ordem dos escudetes: o emprego das locuções da mão direita e da mão esquerda tornam o texto um tanto confuso, ao passo que o armorial sobrepõe os escudetes aos pendentes da destra à sinistra, saltando o do meio no caso do segundo infante, talvez para o conjunto ficar mais simétrico. Na verdade, é razoável supor que foi a própria prole de Dom Manuel I que inspirou a regulação dessas diferenças. Basta observar as armas de Dona Maria de Aragão para ver como os infantes foram tomando as armas dos Reis Católicos, seus avós maternos, segundo as suas precedências:

  • o primeiro, as armas de Castela e Leão;
  • o segundo, estas e as de Aragão;
  • o terceiro, as dessas duas Coroas e as da Inglaterra, porque foi preciso subir até Catarina de Lancastre, avó paterna de Isabel a Católica, para achar mais armas reais diferentes;
  • o quarto, estas, as de Aragão e as de Jerusalém e Hungria, que foram trazidas pelo ramo cadete da Casa de Trastâmara que governara o reino peninsular da Sicília (veja-se Rei de Aragão no Livro do Armeiro-Mor);
  • o quinto, as de Aragão, as de Jerusalém e Hungria e as de Aragão-Sicília, que foram trazidas pelo ramo cadete da Casa de Barcelona que governara o reino insular da Sicília. Fernando o Católico reunificara as Duas Sicílias e reunira-as à Coroa de Aragão em 1504.

Além disso, o regimento sugere que o número de escudetes segue o dos infantes ("ocupando as pontas do labéu com armas dobradas da parte da mãe ou outras diferenças nobres"), mas no Livro da nobreza e perfeição das armas não ultrapassa o dos pendentes, compensando-se essa limitação com a diversificação das armas da linhagem materna.

26/07/21

AS ARMAS IMPERIAIS E O MOVIMENTO MONARQUISTA

A heráldica é uma arte, mas é preciso clareza para discernir o que tem base histórica e o que é mero exercício artístico.

Acabei a postagem anterior dizendo que os artistas que desenhavam as armas nacionais durante o Império não só reproduziam fielmente o ordenamento oficial — que não é uma imagem, mas um texto —, mas também tomavam por vezes algumas liberdades, acrescentando ao brasão certos ornamentos, em consonância com a moda do momento. Uma dessas reproduções mais livres timbra o diploma mais célebre da nossa história: a Lei Áurea.

Armas Nacionais no timbre da Lei Áurea.
Armas Nacionais no timbre da Lei Áurea (imagem disponível no Arquivo Nacional).

Neste caso, o artista fez dois acrescentamentos: atou os ramos de cafeeiro e tabaco com a insígnia da Imperial Ordem do Cruzeiro e sobrepôs o brasão a um pavilhão. Esse ornamento, que se vê também nalguns objetos e no frontispício do Palácio Imperial de Petrópolis (hoje Museu Imperial), consiste num dossel rematado pela coroa e coberto por um manto, geralmente de cor carmesim e forro de arminho, aberto e amarrado como uma cortina de um lado e do outro. Tanto se difundiu que até hoje a maioria das monarquias europeias distingue duas ou três versões das suas armas, a que traz as insígnias das ordens e o pavilhão designada genericamente grandes armas: Bélgica (armoiries de la Maison Royale/wapen van het Koninklijk Huis 'armas da Casa Real'), Dinamarca (kongelige våben 'armas reais'), Liechtenstein (grosse Staatswappen 'grandes armas estatais'), Luxemburgo (grandes armoiries 'grandes armas'), Noruega (kongevåpen 'armas reais'), Países Baixos (koninklijk wapen 'armas reais'), Suécia (stora riksvapen 'grandes armas estatais') e até mesmo uma república, a Sérvia (велики грб/veliki grb 'grandes armas'), além de Mônaco e da Ordem de Malta.

Não obstante, as armas imperiais do Brasil sempre tiveram uma única versão oficial: a ordenada pelo Decreto de 18 de setembro de 1822, apenas retocada pelo Decreto de 1.º de dezembro do mesmo ano, que trocou a coroa real pela imperial. Mesmo o acréscimo da vigésima estrela após 1853, alusiva à província do Paraná, deu-se de modo eventual e oficioso. De fato, versões oficiosas é como se podem considerar essas reproduções mais ornamentadas do que o constante do ordenamento legal, e não como alegorias, seja lá o que se entenda por tal.

Armas do Império do Brasil no frontispício do Palácio Imperial de Petrópolis (hoje Museu Imperial). Note-se, além do pavilhão, que o escudo com os ramos se sobrepõe a uma mão de justiça e ao cetro imperial decussados (imagem disponível no site do projeto A Casa Senhorial).
Armas do Império do Brasil no frontispício do Palácio Imperial de Petrópolis (hoje Museu Imperial). Note-se, além do pavilhão, que o escudo com os ramos se sobrepõe a uma mão de justiça e ao cetro imperial decussados (imagem disponível no site do projeto A Casa Senhorial).

Daí se segue que quem admira a pompa de certas monarquias europeias fica francamente frustrado com os modestos usos heráldicos da brasileira, a começar pelo fato de que o imperador não tinha propriamente armas pessoais. Na verdade, é um exemplo ilustrativo de armas de dignidade, pois o decreto de Dom Pedro I é claro: as armas foram dadas à nação, de modo que o monarca as trazia em função de ser o chefe supremo dela. Isso é reforçado pelo fato bem conhecido de que a Família Imperial era adepta da moda do monograma, como se vê nas portas do Paço de São Cristóvão (hoje Museu Nacional) ou no frontispício da Casa da Princesa Isabel em Petrópolis. Além disso, a relativa brevidade do regime e a alta mortalidade dos varões na linha sucessória podem ter contribuído com a falta de desenvolvimento de brasões para os títulos da Casa Imperial. De resto, as monarquias ibéricas sempre foram mais sóbrias.

Assim, qualquer escudo com lambel desse ou daquele esmalte, carregado dessa ou daquela figura e timbrado com essa ou aquela coroa, como se vê na Wikipédia, carece de fundamento histórico e não passa, portanto, de mero exercício artístico. Trocando em miúdos, durante o Império o príncipe imperial, o príncipe do Grão-Pará e os príncipes do Brasil nunca tiveram armas próprias. Mesmo assim, se os monarquistas querem atribuir brasões aos pretendentes hodiernos, deveriam obedecer às convenções portuguesas, afinal estas regeram a armaria gentilícia nacional até a instauração da República.

Em tempo, note-se que o artista iluminou o forro da coroa e o manto de vermelho na Lei Áurea, em plena consonância com o princípio de que na heráldica não há que se reproduzir objetos reais, mas se desenha uma estilização de tal objeto. Isso contrasta com o que parece dominar no meio monarquista, onde se vê tudo iluminado de verde, como que reproduzindo as insígnias concretas que os monarcas ostentaram. De fato, é um problema habitual do proselitismo: na ânsia de mostrar uma fidelidade exagerada aos ideais, acabam, como diz a frase feita, sendo mais papistas que o papa.

24/07/21

A REPRODUÇÃO DAS ARMAS IMPERIAIS DO BRASIL

Um brasão não é um desenho, mas um conceito formulado em linguagem verbal e reproduzido em linguagem visual.

Como abordei na postagem de 22/02, o Brasil teve três brasões: as armas reais, dadas por Dom João VI em 1816, normalmente unidas às de Portugal; as imperiais, dadas por Dom Pedro I em 1822, e as republicanas, assumidas pelo governo provisório do Marechal Deodoro da Fonseca em 1889. As primeiras e segundas foram tecnicamente descritas, o que se denomina brasonamento, como expliquei na postagem anterior. Em contrapartida, as terceiras foram apenas desenhadas, ao menos até 1968. Há quem enxergue na falta de um "padrão" das armas nacionais durante o Império um defeito, como Milton Luz em A história dos símbolos nacionais (2005):

No entanto, a aparência formal deste símbolo não foi convenientemente preservada, talvez em razão da prevalência do alegórico sobre o heráldico. Assim, as mais variadas e fantasiosas versões deste brasão se multiplicavam nas fachadas dos edifícios públicos e nas publicações oficiais.

Trata-se, porém, de um juízo anacrônico, pois o que distingue o brasão de outros emblemas é justamente a sua natureza multimodal: verbal e visual. É graças a isso que ele perpassa artes e estilos ao longo de tanto tempo. Tomem-se, por exemplo, as armas de Portugal, que são as mesmas desde 1555: de prata com cinco escudetes de azul postos em cruz, carregados de cinco besantes do campo, e uma bordadura de vermelho, carregada de sete castelos de ouro. Atravessaram, portanto, o Renascimento, o Barroco, o Neoclassicismo, o Romantismo, as vanguardas do fim do século XIX e do começo do seguinte e a arte contemporânea, evidentemente em versões variadas, conforme o gosto de cada momento, o que não as torna fantasiosas. Na armaria, a própria noção de padrão é, afinal, recente.

Com efeito, as armas imperiais brasileiras, ainda que usadas por muito menos tempo, demonstram perfeitamente esse estado de coisas, que, ao contrário do que o autor citado julga, não tem nada de alegórico, mas tem sido próprio da heráldica desde sempre. Duas fontes permitem vislumbrar a diversidade na reprodução desse brasão ao longo do período: o jornal oficial e a moeda, tanto a metálica como a impressa em papel.

No cabeçalho do jornal oficial, as armas nacionais foram introduzidas no n.º 137 da Gazeta do Rio, de 14 de novembro de 1822, e assim permanece até hoje no Diário Oficial da União, salvo de 1841 a 1846 e de 1848 a 1862, períodos durante os quais o estado publicou os seus atos no Diário do Rio de Janeiro, de propriedade privada. Infelizmente, a Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional Digital dispõe apenas do primeiro número do Diário Oficial, de 1.º de outubro de 1862, mas por esse e outros que se acham pela Internet, pode-se provisoriamente concluir que se seguiu usando o terceiro desenho adotado pela Gazeta Oficial em 1847.

As Armas Nacionais nos jornais oficiais durante o Império (imagens disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional Digital do Brasil).
As Armas Nacionais nos jornais oficiais durante o Império (imagens disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional Digital do Brasil).

Desses desenhos, dois chamam a atenção: os adotados pelo Correio Oficial em 1833 e 1834. Todos os demais reproduzem perfeitamente o brasonamento constante do Decreto de 18 de setembro de 1822: "em campo verde uma esfera armilar de ouro, atravessada por uma cruz da Ordem de Cristo, sendo circulada a mesma esfera de dezenove estrelas de prata em uma orla azul, e firmada a coroa real [depois imperial] diamantina sobre o escudo, cujos lados serão abraçados por dous ramos das plantas de café e tabaco, como emblemas da sua riqueza comercial, representados na sua própria cor e ligados na parte inferior pelo laço da nação". Tudo o que diverge de uns para outros, até mesmo a forma germânica da coroa no quarto desenho adotado pelo Correio Oficial em 1836, deve-se ao estilo de cada artista, o qual pode ser julgado em termos estéticos, mas não em termos heráldicos.

Com efeito, os ditos desenhos de 1833 e 1834 distinguem-se porque, além dos ramos de cafeeiro e tabaco, o escudo é suportado por diversas insígnias e troféus: bandeiras, âncora, mão de justiça, cornucópia, caduceu, chaves e peça de artilharia. No meio monarquista, costuma-se qualificar esses desenhos de "alegorias", como afirma Milton Luz na citação ("em razão da prevalência do alegórico sobre o heráldico"). Não sei de onde se tirou isto, mas difere de qualquer conceito de alegoria que eu conheça em arte. Talvez se tenha tirado do gosto oitocentista pela alegoria, entendida enquanto representação de um conceito por meio de algo concreto, seja um ser vivo ou uma coisa.

As Armas Nacionais compondo alegorias no papel-moeda durante o Império (imagens disponíveis no Bank Note Museum).
As Armas Nacionais compondo alegorias no papel-moeda durante o Império (imagens disponíveis no Bank Note Museum).

Esse gosto faz-se bem presente no papel-moeda: desenhos de mulheres que representam a agricultura, o comércio, a fortuna, a justiça, a verdade segurando o escudo com a coroa veem-se com frequência, o que, de resto, se conserva até hoje, já que a figura humana que ilustra todas as cédulas do real em circulação é uma alegoria da república. Nesses casos, não é que as armas se convertam numa alegoria, mas sim que façam parte de uma alegoria.

As Armas Nacionais no papel-moeda durante o Império (imagens disponíveis no Bank Note Museum).
As Armas Nacionais no papel-moeda durante o Império (imagens disponíveis no Bank Note Museum).

Ora, o anacronismo da noção de padrão supõe que a heráldica desconheça a influência da moda. Antes o contrário: a heráldica é uma arte e, como tal, fica sujeita a tendências de toda a sorte. Os próprios suportes vegetais, tão pouco tradicionais na armaria portuguesa, são profundamente latino-americanos. Efetivamente, a troféus, como também se vê acima do arco triunfal da Igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Militares, no Recife, quase todas as repúblicas do continente sobrepuseram os seus escudos ou emblemas nalgum momento do século XIX, como ainda o faz o Equador, assim como entre as monarquias europeias esteve em voga sobrepô-los a pavilhões, como ainda o faz a Suécia.

22/07/21

COMENTÁRIO AO BRASÃO NOVO DA PARÓQUIA DE ACARI

Brasonar não é criptografar um brasão da forma mais barroca possível, mas usar de uma linguagem técnica, como a de qualquer arte ou ciência.

Quando comecei este blog, há pouco mais de seis meses, já tinha acumulado leituras e notas sobre heráldica. 2020 foi, sem dúvida, o ano mais difícil do século para grande parte da humanidade. A minha última jornada normal de trabalho foi a manhã de 17 de março de 2020: o calendário acadêmico foi suspenso desde a tarde daquele dia e retomado em outubro, na modalidade remota, em que permanece até a data de hoje. Confinado em casa com as tarefas administrativas da minha função, encontrei na heráldica um passatempo instrutivo e deleitoso. No entanto, todo o sofrimento do distanciamento, adoecimento e falecimento de tanta gente — parentes, amigos, conhecidos — acabou maior do que podia suportar as frágeis táticas que adotamos para preservar a sanidade mental. Daí que eu tenha decidido dar o passo seguinte: escrever.

Com efeito, poderia ter enchido caderninhos, como fiz a vida toda, enquanto alguém devotado ao saber. Nunca tinha passado pela experiência de blogueiro. Mas o espírito docente se inquietava: "Poxa, só pude aprender tanto sobre esse assunto porque sei várias línguas". Daí o que justifiquei na primeira postagem: um blog para compartilhar apontamentos com quem, como eu um dia, pesquisou sobre a heráldica e não achou muito em português. No fim das contas, ser lido e contribuir com o conhecimento alheio é muito aprazível do ponto de vista pedagógico.

Por tudo isto, tudo que tenho publicado, inclusive as postagens propositivas, nunca teve nenhuma pretensão para além da lecionação. Se algum dos destinatários das proposições se interessasse, eu responderia que poderia gratuitamente assumir a que lhe fiz, mas também que buscasse um designer para reproduzi-la, pois os meus desenhos mesmos são meramente ilustrativos, em parte elaborados por mim e em parte compostos com elementos que colho na Wikimedia Commons.

Portanto, quando teço críticas sobre brasões e outros emblemas, presentes ou passados, não o faço para desmerecer o trabalho alheio, seja de quem for, ou porque eu detenha a verdade. Com efeito, é algo que repilo na comunidade heráldica: não são raros os membros que alcançam certo nível de conhecimento e depois passam a vida menosprezando quem sabe menos, de forma pedante ou debochada. Agora, às vezes sobre algo que não é bom só resta dizer que é ruim, honestamente.

Na postagem anterior, referi-me negativamente ao brasão novo da Paróquia de Nossa Senhora da Guia de Acari porque, à luz da heráldica como ars, 'arte' no sentido pré-romântico, isto é, uma 'técnica', um escudo com uma asna e três figuras, tal como no brasão antigo, é melhor que um partido não para compor armas novas, juntando dois emblemas já existentes, mas simplesmente para pôr uma figura de um lado e outra, do outro. É um juízo bastante objetivo, na verdade. E é neste sentido que darei continuidade a essa crítica, concentrando-me no que os autores chamaram de "descrição heráldica":

Escudo saxônico partido. Em honra de chefe, campo argênteo horizontado por estrela de seis raios cosida de jalde que encima cadeia de montanhas em sinopla. Em campanha, ondeado de argento e blau, onde a última faixa após a onda é de sinopla.
Do flanco direito ao cantão da ponta, sobre blau, monograma mariano em jalde coroado por diadema régio. Abaixo uma crescente argêntea.
Do flanco esquerdo ao cantão da ponta, sobre goles, cristograma em jalde, monograma constantiniano.
O escudo repousa sobre as claves petrinas cruzadas e atadas por cordel de goles. Em seu alto fulgura o umbrelino basilical.
Ao cabo, listel argento em reverso, com a inscrição "DEVOTIO MARIAE ACARYENSIS GLORIA" (1) em maiúsculas latinas de sable.

Em primeiro lugar, para haver uma "descrição heráldica", seria preciso que houvesse uma "descrição não heráldica", o que não se verifica. O que se pode fazer e hoje em dia se costuma é acompanhar a descrição do brasão — que, por óbvio, há de ser heráldica — de um comentário simbológico. Mas esse comentário não é outra descrição, daí que a única receba um nome técnico: brasonamento (blasonnement em francês, blasonatura em italiano, blasón em espanhol e blazon em inglês).

Depois, sem a menor intenção de desapreço, é forçoso declarar que o autor dessa tentativa de brasonamento nada sabe de linguagem heráldica. Eu poderia desdenhosamente retorquir qual é o certo, mas prefiro explicar por quê, inclusive reiterando algumas lições que já dei mais de uma vez neste blog.

A primeira é que não se brasona a forma do escudo, pois é uma escolha artística. Se daqui a algum tempo a titular das armas quiser usar de outro desenho, com um escudo de outra forma, poderá fazê-lo, sem que por isso se vá entender que o brasão terá mudado. Além disso, é temerário qualificar um escudo por certo adjetivo pátrio. Por exemplo, em Portugal do século XVIII até o fim da monarquia e no Brasil durante o Império o escudo mais habitual foi o dito "francês moderno", não o dito "português". É mais prudente modalizar essa vinculação por circunlóquios, como o dito escudo francês antigo, o chamado escudo inglês etc., ou referir diretamente à forma: escudo de ponta arredondada, escudo de ponta ogival etc.

A segunda é que na armaria há dois metais, cinco cores e duas peles, que em francês, a língua em que esse sistema semiótico foi desenvolvido, se denominam or, argent, gueules, azur, sable, sinople, pourpre, hermine e vair. Na língua que aprendemos enquanto sugamos o leite materno, "a última flor do Lácio, inculta e bela, em que Camões chorou", diz-se ouro, prata, vermelho, azul, negro, verde, púrpura, arminho e veiros. Qualquer outra nomenclatura é espúria, pois diverge das tradições heráldicas lusófonas. Mais que isto: um texto como o que está em análise deixa ver o entendimento de que o brasão deve ser criptografado num código hermético.

Isso nos leva ao terceiro ponto: a linguagem heráldica não é hermética, mas técnica, como o é a de qualquer arte ou ciência. Assim, alguém pode dizer que o som do f é produzido soprando o ar entre os dentes de cima enquanto tocam o beiço de baixo, mas na linguística se diz que [f] é uma consoante fricativa labiodental surda. Isso garante que qualquer um que tenha estudado fonética decodifique a informação sem depender de descrições em linguagem corrente menos ou mais acuradas. Na heráldica, funciona do mesmo jeito: o que o seu vocabulário tem de insólito ou singular não é para parecer esnobe, mas para exprimir com precisão uma qualidade ou situação.

Assim, certos brasões têm uma descrição longa porque provavelmente se compõem de várias armas, como o do marquês de Vila Real, talvez o mais complexo da armaria portuguesa. Contudo, se discriminarmos cada componente, constataremos que é, por si, singelo:

  • As armas do Reino diferençadas por um filete de negro em barra (primeiro e quarto quartéis das armas dos Noronhas, por Isabel de Portugal, filha natural de Dom Fernando I);
  • de vermelho com um castelo de ouro; mantelado de prata com dois leões batalhantes de púrpura, armados e lampassados de vermelho; bordadura composta de ouro e veiros de dezoito peças (segundo e terceiro quartéis das ditas armas, por Afonso de Castela, filho natural de Henrique II);
  • de azul com um estoque de prata, empunhado de ouro (primeiro quartel das armas de Pedro de Meneses, pela capitania de Ceuta);
  • de ouro com quatro palas de vermelho (segundo, quarto e sexto quartéis das ditas armas, pelo entroncamento do armígero na estirpe dos Limas);
  • de ouro com dois lobos passantes de púrpura, um sobre o outro (terceiro e quinto quartéis das ditas armas, pelo entroncamento do armígero na estirpe dos Vila Lobos);
  • de ouro liso (armas dos Meneses).

Ainda assim, em heráldica menos é mais. Composições como essa justificam-se à luz das relações sociais do Antigo Regime. Hoje, uma tal complexidade não tem sentido, de modo que um brasonamento longo, obscuro, críptico denuncia uma criação aperfeiçoável, no mínimo.

Para brasonar, pois, as armas em questão, deve-se começar exprimindo que o escudo é partido, sempre atentando para a norma de que a destra precede a sinistra: partido de azul e vermelho. Como não se trata da junção de dois brasões, a combinação de cor com cor infringe a regra de iluminura: se o primeiro é de azul, o segundo deveria ser ou de metal ou de pele.

Depois, cabe indicar as figuras que carregam cada partição. Na primeira, a figura principal é um crescente de prata, o qual está encimado pelo monograma MA de ouro, este coroado do mesmo metal. Não se pode tomar o monograma por figura principal porque a linguagem heráldica descreve conjuntos de baixo para cima e o que por ventura fica embaixo da figura principal é assinalado como se sustentasse esta, o que não é o caso. Ademais, não há um só monograma mariano: além do MA, que também pode ser lido AM (Ave Maria ou Auspice Maria), há o simples M, como no brasão de São João Paulo II, e MI (I de Iesus ou Jesus), como na Medalha Milagrosa. A figura que carrega a segunda partição também é um monograma, o ΧΡ (qui-rô), iniciais de Χριστός (Khristós), ou seja, 'Cristo' em grego. A rigor, considerando a precedência da destra à sinistra, a ordem dos partidos deveria ser invertida: primeiro Cristo, depois Maria. Seja como for, fica completado o brasonamento: partido, o primeiro de azul com um crescente de prata, encimado do monograma MA de ouro, coroado do mesmo; o segundo de vermelho com o monograma ΧΡ de ouro.

O chefe, tanto o ponto do escudo como a peça, brasona-se sempre por último. No caso que nos ocupa, é a peça, iluminada de prata, e diz-se brocante, porque se acha como que sobreposta ao partido. A figura principal consiste no contorno da serra que se vê ao leste de Acari, o que não é de boa heráldica, pois a regra é a estilização, de modo que para representar acidentes geográficos reais, desenham-se figuras correspondentes ideais, como a própria faixa ondada de prata e azul, referente ao rio Acauã. Por outro lado, a iluminura da estrela que acompanha essa cordilheira deixa ver certa dificuldade em aceitar o caráter normativo e alegórico da armaria: podia perfeitamente ter sido iluminada de azul, mas isso deve ter parecido pouco verossímil aos autores, que preferiram, então, o ouro, em detrimento da regra, por sobrepor metal a metal. Eis o brasonamento deste conjunto: brocante sobre o partido, chefe de prata com uma cordilheira de verde, firmada nos flancos e no bordo inferior, carregada de um rio de prata e azul de cinco peças e encimada de uma estrela de seis raios de ouro.

Por último, os ornamentos externos. Na minha opinião, quando se trata de elementos convencionais, é desnecessário o detalhamento. As chaves petrinas (na heráldica uma chave é uma chave, não uma clave) são muito bem conhecidas: uma de ouro e a outra de prata, decussadas e atadas por um cordão vermelho. O mesmo quanto à umbela basilical (a palavra umbrelino não está registrada no Vocabulário ortográfico da língua portuguesa, da Academia Brasileira de Letras): sabe-se que consiste num grande guarda-sol que alterna as cores antigas da Santa Sé: amarelo e vermelho. Já a divisa, tanto o listel como a legenda podem ser iluminados de diferentes esmaltes, daí que convenha, sim, informá-los.

Brasão da Paróquia de Nossa Senhora da Guia de Acari: partido, o primeiro de azul com um crescente de prata, encimado do monograma MA de ouro, coroado do mesmo; o segundo de vermelho com o monograma ΧΡ de ouro; brocante sobre o partido, chefe de prata com uma cordilheira de verde, firmada nos flancos e no bordo inferior, carregada de um rio de prata e azul de cinco peças e encimada de uma estrela de seis raios de ouro; sob o escudo, uma umbela basilical e duas chaves passadas em aspa; divisa: Devotio Mariæ Acaryensis gloria, escrita de negro em listel de prata.
Brasão da Paróquia de Nossa Senhora da Guia de Acari: partido, o primeiro de azul com um crescente de prata, encimado do monograma MA de ouro, coroado do mesmo; o segundo de vermelho com o monograma ΧΡ de ouro; brocante sobre o partido, chefe de prata com uma cordilheira de verde, firmada nos flancos e no bordo inferior, carregada de um rio de prata e azul de cinco peças e encimada de uma estrela de seis raios de ouro; sob o escudo, uma umbela basilical e duas chaves passadas em aspa; divisa: Devotio Mariæ Acaryensis gloria, escrita de negro em listel de prata.

Enfim, o brasonamento completo fica assim: partido, o primeiro de azul com um crescente de prata, encimado do monograma MA de ouro, coroado do mesmo; o segundo de vermelho com o monograma ΧΡ de ouro; brocante sobre o partido, chefe de prata com uma cordilheira de verde, firmada nos flancos e no bordo inferior, carregada de um rio de prata e azul de cinco peças e encimada de uma estrela de seis raios de ouro; sob o escudo, uma umbela basilical e duas chaves passadas em aspa; divisa: Devotio Mariæ Acaryensis gloria, escrita de negro em listel de prata.

Nota:
(1) Significa "A devoção a Maria é a glória do acariense" e, segundo a postagem citada, é inspirada na homilia que o acariense Eugênio Cardeal de Araújo Sales proferiu no 160.º aniversário da paróquia de Acari, em 1995.

20/07/21

PROPOSTA DE BRASÃO PARA A ESCOLA DIACONAL MONS. AUSÔNIO TÉRCIO DE ARAÚJO

Como na vida, na heráldica é virtuoso seguir bons exemplos.

Há alguns dias a Paróquia de Nossa Senhora da Guia de Acari anunciou a assunção de um brasão novo, por ocasião do acrescentamento das insígnias basilicais. No dia 25 de abril, fiz uma proposta aproveitando o mesmo ensejo. Não porque eu tivesse alguma pretensão além da publicação de um apontamento meramente pessoal, como assinala o título do blog, mas por avaliação técnica, devo dizer que o brasão antigo da paróquia era melhor que o novo, pois aquele ao menos apresentava um conjunto de elementos dentro de um campo inteiriço, ao passo que este segue a moda de dividi-lo para acomodar figuras diferentes. Ora, quando se observa, por exemplo, o brasão da arquidiocese de Olinda e Recife, é fácil responder que o escudo é partido porque se compõe das armas de Olinda e da bandeira do Recife, mas ao se observar o brasão em questão, não é possível dar resposta similar: de azul com um crescente de prata, encimado do monograma MA de ouro, coroado do mesmo, são as armas de quem? E de vermelho com o monograma ΧΡ de ouro, de quem outro?

Seja como for, repiso que prefiro a crítica construtiva à destrutiva, daí que, seguindo o bom exemplo que apresentei e comentei na postagem anterior, dedicarei o apontamento pessoal de hoje a mais uma proposta de brasão, desta vez para a Escola Diaconal Monsenhor Ausônio Tércio de Araújo. Restaurado o diaconato permanente pela constituição dogmática Lumen gentium no bojo do Concílio Vaticano II (1964), foi o Mons. Ausônio, então vigário-geral, que, com o apoio de Dom Heitor de Araújo Sales, começou a formação para essa ordem no bispado de Caicó na década de oitenta. É graças a essa iniciativa que essa diocese conta hoje com o serviço de 44 diáconos incardinados e residentes. Justíssimo, pois, que a instituição formadora leve o seu nome.

Com efeito, o Mons. Ausônio é uma dessas colunas da igreja no Seridó, que a fazem respeitada não só pelo fornecimento do pasto espiritual, mas também pela contribuição com o desenvolvimento regional. Nascido em 1935 em Currais Novos, era o irmão mais novo do Mons. Ausônio de Araújo Filho, pároco de Sant'Ana de Currais Novos por longo tempo, falecido em 2001. Foi ordenado presbítero em 1960 em Roma, onde cursou mestrado em Filosofia e Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Percorreu toda a carreira que um padre pode percorrer: foi capelão, vigário, pároco, vigário-geral, administrador diocesano e também honrado com o título de monsenhor. E percorreu toda a carreira que um professor pode percorrer: foi professor e reitor de seminário, professor e gestor de escolas católicas e estaduais, professor e diretor do Colégio Diocesano Seridoense, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, presidente da Fundação Educacional Sant'Ana, membro e presidente do Conselho Estadual de Educação. Mais que isso: entusiasta da doutrina social da igreja, encabeçou vários movimentos da Ação Católica. Faleceu em janeiro deste ano, uma das vítimas que a Covid-19 nos arrebatou.

Proposta de brasão para a Escola Diaconal Monsenhor Ausônio Tércio de Araújo: de prata com uma barra de azul, carregada de três cruzetas de ouro e acompanhada em chefe de um livro aberto do mesmo, encapado de azul e carregado de um Α e um Ω do mesmo; timbre: mitra; divisa: Ut crescat Verbum Dei, escrita de negro em listel de prata.

Para a Escola Diaconal Monsenhor Ausônio Tércio de Araújo, proponho: de prata com uma barra de azul, carregada de três cruzetas de ouro e acompanhada em chefe de um livro aberto do mesmo, encapado de azul e carregado de um Α e um Ω do mesmo; timbre: mitra; divisa: Ut crescat Verbum Dei, escrita de negro em listel de prata.

Procurei incorporar nesta proposta o espírito da melhor armaria eclesiástica seridoense. Assim, a barra, as cruzetas e os esmaltes estão inspirados nas armas dos Araújos, que são de prata com uma aspa de azul, carregada de cinco besantes de ouro. Portanto, trata-se de uma inspiração na linha do que tratei na postagem de 08/07: a criação de armas novas a partir do armorial gentilício, o que, inclusive, foi o expediente de que usaram os irmãos Eugênio e Heitor de Araújo Sales, a partir das mesmas armas dos Araújos. Da aspa fiz, pois, uma barra, que simboliza a estola do diácono, a qual é trazida sobre o seu ombro esquerdo e é presa junto ao lado direito da cintura. Troquei, ademais, os besantes por cruzetas, marcando o estado eclesiástico da armígera. Tal caráter fica reforçado pelo livro aberto com um alfa e um ômega, a mais eloquente das representações heráldicas do Verbo Divino (Apocalipse, 22, 13: "Eu sou o Alfa e o Ômega, o Primeiro e o Último, o Começo e o Fim").

De resto, a figura do livro dialoga com a divisa, que tirei do capítulo dos Atos dos Apóstolos (6, 7) em que se narra a instituição do diaconato: após a escolha dos sete diáconos, diz-se que "a palavra de Deus crescia e o número dos discípulos se multiplicava consideravelmente em Jerusalém; também um grande grupo de sacerdotes judeus aderiu à fé" ("Et verbum Dei crescebat, et multiplicabatur numerus discipulorum in Jerusalem valde; multa etiam turba sacerdotum obœdiebat fidei"). A sentença Ut crescat Verbum Dei significa, pois, 'Para que cresça a Palavra de Deus'. Efetivamente, a proclamação do Evangelho é uma das funções mais emblemáticas do diácono.

Enfim, se o brasão do seminário foi timbrado com uma mitra por causa do seu caráter diocesano, com a mesma justeza pode-se timbrar com ela o da escola diaconal, cujo campo de atuação é, também, a diocese.

18/07/21

O BRASÃO DO SEMINÁRIO SANTO CURA D'ARS

Há uma armaria eclesiástica excelente que deveria servir de exemplo para a atualidade.

Como disse na postagem de 15/04, em meio à enorme obra de Dom José de Medeiros Delgado em prol da educação, está a fundação do Seminário Santo Cura d'Ars em 1946. Paula Sônia de Brito, na sua dissertação de mestrado (2004), cita um artigo do Monsenhor Maurílio César de Lima sobre o brasão dessa instituição, publicado na revista comemorativa 50 anos formando sacerdotes (1996):

Brasão português de ouro, sobreposto por uma cruz grega de goles (vermelho), tendo no centro concha de prata aberta, ostentando pérola ao natural. No primeiro quartel destro, estrela de cinco pontas em blau (azul). Como timbre, mitra episcopal, com suas bandas ladeando laceando. No listel, o mote 'IN SEMINE SPES' em caracteres de sable (negro).
SIMBOLISMO: A forma de escudo alude à colonização portuguesa, que nos legou a fé católica na região do Seridó; o campo de ouro simboliza o sacerdócio que se exerce nos trigais dourados do Senhor da messe; a cruz rubra lembra a redenção; a concha é tirada do Brasão da Diocese, indica Sant'Ana, padroeira da diocese de Caicó, que se abriu para o mundo, dando-nos a Virgem Maria, pérola preciosa de Deus. A estrela solitária azul, representa o idealismo do Santo Cura d'Ars, dedicando-se sozinho ao apostolado. O timbre, com mitra episcopal, enlaça o Seminário, que é diocesano, e a divisa recorda que as esperanças do Povo de Deus estão plantadas no Seminário, que é sementeira do futuro Clero Diocesano.

Brasão do Seminário Santo Cura d'Ars: de ouro com uma cruz de vermelho, carregada de uma concha aberta de prata, sobrecarregada de uma pérola do mesmo, e cantonada de uma estrela de azul no primeiro; timbre: mitra; divisa: In semine spes, escrita de negro em listel de prata.

O brasonamento não é bom, mas o brasão é ótimo. Prefiro brasoná-lo assim: de ouro com uma cruz de vermelho, carregada de uma concha aberta de prata, sobrecarregada de uma pérola do mesmo, e cantonada de uma estrela de azul no primeiro; timbre: mitra; divisa: In semine spes, escrita de negro em listel de prata.

Justifico rapidamente por que julgo ruim o brasonamento. Primeiro, não se brasona a forma do escudo, porque é uma escolha artística, e não há escudo português, francês, inglês etc., mas escudo dito "português", "francês", "inglês" etc., porque mais usado em certo país em dado momento. Por exemplo, em Portugal nos séculos XVIII e XIX o escudo habitual não era o dito "português" (de ponta arredondada), mas o dito "francês moderno" (de ângulos inferiores arredondados e ponta aguçada). Depois, goles, blau, sable são uma nomenclatura espúria em língua portuguesa. Enfim, cumpre empregar a linguagem heráldica para exprimir como os constituintes das armas se ordenam.

Por outro lado, o brasão é muito bom porque, como sempre digo nestes casos, é singelo, belo e representativo. Nada de partido, terciado ou esquartelado: acertadamente, o autor não dividiu o campo, mas o carregou com uma peça de primeira ordem, a cruz, que remete ao estado eclesiástico do armígero. Escolheu uma figura para representar a jurisdição, muito bem escolhida, por ser o próprio atributo icônico da padroeira — Sant'Ana  no brasão da diocese, e outra para referir ao patrono da instituição titular — São João Maria Vianney , ambas assentadas em pontos honrosos do escudo. Tudo em estrita observância da regra de iluminura: campo de metal com peça de cor, carregada de figura de metal e acompanhada de outra de cor. Para rematar, nada de listel com legenda redundante, mas um lema, um ideal conciso e contundente, lavrado em língua latina.

A julgar pelas armas diocesanas e pelas episcopais de então, parece ter sido um tempo em que se praticava uma boa heráldica eclesiástica, pois ao invés de alguns vícios tão habituais hoje em dia, como afetação, pobreza semiótica e ignorância do código heráldico, veem-se simplicidade, inteligência e correção.

Este brasão também é interessante pelo seu timbre. Com efeito, é consabido ou ao menos bastante perceptível o quanto os ornamentos externos da armaria eclesiástica pessoal são minuciosos. Mas, ao contrário do que isso sugere, essas minúcias não estão codificadas, mas consolidadas por tradição, o que fica patente na armaria eclesiástica comunitária. Por exemplo: no Brasil, tornou-se bastante regular sobrepor o escudo da arquidiocese ou diocese a uma cruz arquiepiscopal ou episcopal/processional e um báculo decussados e timbrá-lo com mitra e o escudo da paróquia, a uma cruz episcopal. Não obstante, fora do país não se observa o mesmo: dentre as arquidioceses e dioceses, há umas que trazem apenas a mitra (como a de Lamego), outras o galero (como a do Porto) e umas terceiras a cruz episcopal (como muitas hispânicas). Inclusive, a presença dessa cruz nos brasões paroquiais parece mesmo uma inovação brasileira. Talvez essa regularidade da armaria nacional de comunidades religiosas se deva ao fato de que teve início há algumas décadas por obra de poucos heraldistas, mas bons.

Em tempo, o desenho desses ornamentos — menos ou mais decorados — é um aspecto meramente artístico de cada execução do brasão. Por isto, sequer indico no brasonamento se são de ouro ou prata, com pedraria ou sem nenhuma.

16/07/21

PROPOSTA DE BRASÃO PARA A PARÓQUIA DE SÃO FRANCISCO DE CURRAIS NOVOS

A heráldica é uma ars ou tékhnē tanto no sentido antigo como no moderno, pois é uma arte e também uma técnica.

Encerrando a série de propostas de brasões para as paróquias de Currais Novos, a "irmã mais nova" é a patrocinada por São Francisco. Como informei na primeira postagem desta série, Dom Antônio Carlos Cruz Santos, bispo diocesano de Caicó, erigiu-a em 24 de janeiro de 2015 por desmembramento da paróquia da Imaculada Conceição.

Igreja Matriz de São Francisco, Currais Novos (imagem disponível no perfil da paróquia no Facebook).
Igreja Matriz de São Francisco, Currais Novos (imagem disponível no perfil da paróquia no Facebook).

Com relação ao emblema atual, choca ainda mais que o da paróquia da Imaculada Conceição, porque simplesmente alguém recortou uma foto do vulto de São Francisco que é venerado na igreja matriz, pegou o emblema da Santa Sé e o brasão da diocese de Caicó e os aplicou sobre a imagem de um escudo... marrom!

Emblema da Paróquia de São Francisco de Currais Novos (imagem disponível no perfil da paróquia no Facebook).
Emblema da Paróquia de São Francisco de Currais Novos (imagem disponível no perfil da paróquia no Facebook).

Como, à falta de um trabalho artístico, não há sequer o que comentar, vou direto à proposta: de azul com dois braços de carnação passados em aspa, o esquerdo vestido do hábito franciscano, ambos com as mãos espalmadas e feridas de vermelho, moventes de nuvens de prata, rematados por uma cruz alta de ouro, o todo entre quatro cruzes de prata e acompanhado de uma cerca de ouro, firmada em ponta; sob o escudo, uma cruz processional; divisa: Felices qui perseverabunt, escrita de negro em listel de prata.

Proposta de brasão para a Paróquia de São Francisco de Currais Novos: de azul com dois braços de carnação passados em aspa, o esquerdo vestido do hábito franciscano, ambos com as mãos espalmadas e feridas de vermelho, moventes de nuvens de prata, rematados por uma cruz alta de ouro, o todo entre quatro cruzes de prata e acompanhado de uma cerca de ouro, firmada em ponta; sob o escudo, uma cruz processional; divisa: Felices qui perseverabunt, escrita de negro em listel de prata.
Proposta de brasão para a Paróquia de São Francisco de Currais Novos: de azul com dois braços de carnação passados em aspa, o esquerdo vestido do hábito franciscano, ambos com as mãos espalmadas e feridas de vermelho, moventes de nuvens de prata, rematados por uma cruz alta de ouro, o todo entre quatro cruzes de prata e acompanhado de uma cerca de ouro, firmada em ponta; sob o escudo, uma cruz processional; divisa: Felices qui perseverabunt, escrita de negro em listel de prata.

O conjunto que está por figura principal consiste no emblema franciscanoCada um dos seus elementos pode apresentar variantes, mas essa versão é quase a padrão. Parece ter evoluído a partir do brasão assumido por São Boaventura quando Gregório X o criou cardeal. Nesse brasão, viam-se duas mãos, uma sobre a outra, unidas por um cravo. Conta-se que o seu brasão original trazia um sol de ouro, carregado do monograma de Jesus, em campo de azul, mas tendo recebido o capelo cardinalício, quis denotar que prezava mais a união com Cristo que as honras do mundo. Ao fim do século XV, começaram a aparecer dois braços cruzados, um despido e o outro vestido com o hábito da ordem, ambos com as mãos estigmatizadas, assinalando a "conformidade" excepcional de São Francisco com Cristo por meio das chagas abertas, a ponto de se converter num Alter Christus. Pouco tempo depois, no século seguinte, acrescentou-se a cruz ao centro, em diversa coloração e posição relativamente aos braços. O azul do campo é a cor que normalmente ilumina o escudo quando tal emblema integra um brasão. Ademais, exprime a devoção franciscana à Imaculada Conceição e evoca o céu que as nuvens sugerem.

Quanto à divisa, tirei-a da Vita secunda, mais precisamente do capítulo 162, em que Tomás de Celano narra a exortação e bênção de São Francisco àqueles que o assistiram no seu passamento:

"Valete", inquit, "filii omnes, in timore Domini (cf. Act., 9, 31) et permanete in ipso semper! Et quoniam futura tentatio et tribulatio (cf. Sir., 27, 6) appropinquat, felices qui perseverabunt in his quæ cœperunt. Ego enim ad Deum propero, cujus gratiæ vos omnes commendo".

Em vernáculo:

E disse: "Filhos todos, adeus no temor do Senhor! Permanecei sempre nele! E como a tentação e a tribulação estão para chegar, felizes os que perseverarem no que começaram. Eu vou para Deus, a cuja graça recomendo-vos todos" (tradução da Custódia São Francisco de Assis–Brasil Oeste).

Desse excerto do texto, a sentença Felices qui perseverabunt, ou seja, 'Felizes os que perseverarem', guarda especial força para se assumir, defender e difundir como divisa.

Sobre as cruzetas e a cerca, leia-se a primeira postagem da série, que citei no início desta.