30/06/21

A JUSTIFICAÇÃO DE UM FIDALGO DE LINHAGEM NO ANTIGO REGIME

O recebimento de um brasão era um processo burocrático e dispendioso, nada a ver com o comércio hodierno de quinquilharias armoriadas.

Na postagem anterior, procurei fazer um apanhado sobre a concessão de brasão em Portugal e no Brasil. Como dispõe a legislação citada, não havia heráldica gentilícia assumida, porque a Coroa detinha o seu controle e o direito de herdar ou receber um brasão pertencia aos nobres. Daí que o pretendente às armas "dos seus ascendentes" precisasse justificar, isto é, comprovar a sua nobreza antes de pedir ao monarca que fizesse a mercê de concedê-las a si.

Durante o Antigo Regime, o processo de justificação tramitava no Juízo da Correição do Cível da Corte; sob a monarquia constitucional, nos Juízos de Direito, mas no Brasil, a partir de 1847, nos Juízos dos Feitos da Fazenda. Proferida a sentença, era remetido ao Cartório da Nobreza, onde o escrivão fazia os autos conclusos e o rei de armas passava a carta de brasão, que o mesmo escrivão lavrava e registrava.

O primeiro processo desta série de postagens tem por justificante Joaquim António Clementino Maciel da Costa Monteiro e tramitou de 11 a 30 de janeiro de 1815. A carta de brasão foi-lhe passada a 9 de fevereiro do mesmo ano. Esse processo ilustra o caso de alguém que não possuía título nobiliário nem era fidalgo filhado por Sua Majestade para o serviço de sua Casa (1). Mutatis mutandis, é comparável a qualquer um que hoje pretendesse requerer um brasão se o sistema ainda vigesse.

Para facilitar a leitura e a compreensão, reordenei os autos por ordem temporal e paragrafei os autos de justificação, inclusive destacando os documentos copiados, que no original vêm lavrados como texto corrido. Como de costume neste blog, atualizei a ortografia.

CORREIÇÃO DO CÍVEL DA CIDADE DE LISBOA

SENTENÇA CÍVEL DE JUSTIFICAÇÃO DE NOBREZA, PASSADA A FAVOR DE JOAQUIM ANTÓNIO CLEMENTE MACIEL, DO MODO QUE EM ELA SE CONTÉM E DECLARA.

Dom João, por graça de Deus Príncipe Regente de Portugal e dos Algarves d'aquém e d'além-Mar em África, de Guiné e da Conquista, Navegação, Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e da Índia, a todos os meus desembargadores, corregedores, provedores, ouvidores, julgadores, juízes, justiças, oficiais e mais pessoas públicas destes meus Reinos e Senhorios de Portugal, àqueles a quem onde, perante quem e a cada um dos quais esta presente minha e muito verdadeira carta de sentença cível de justificação de nobreza em forma virem, vos for apresentada e o verdadeiro conhecimento dela com direito direitamente deva e haja de pertencer o seu devido efeito e inteiro cumprimento, real plenária execução dela e com ela, da minha parte se vos alegar, pedir e requerer por qualquer via, modo, forma, maneira ou razão que seja e ser possa em direito, melhor lugar haja, mais firme e valioso for, faço saber a todos em geral e a cada um de per si em particular em suas jurisdições, comarcas, lugares e distritos, como em esta minha Corte, muito Nobre e sempre Leal Cidade de Lisboa e Casa da Suplicação dela, perante um dos do meu Desembargo, meu Desembargador da minha sobredita Casa da Suplicação e na mesma atualmente com exercício de Corregedor do Cível da Corte, nesta de Lisboa e seu termo de cinco léguas em circunferência, com alçada por mim na Segunda Vara, adiante nomeado por quem esta se passou e vai assinada, se tratam, correm, pendem e ultimamente foram processados uns autos de causa em matéria cível de justificação de nobreza, em que é justificante Joaquim António Clemente Maciel.

E visto tudo sobre e em razão do conteúdo escrito e declarado em os mencionados autos, que pelo decurso desta se irá fazendo muito mais larga, expressa e declarada menção. E dos mesmos autos outrossim se via e mostrava estar, logo a seu princípio, uma autuação, que da qual todo o seu teor e forma é pelo modo e maneira seguinte:

Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e quinze anos, aos onze dias do mês de janeiro do dito ano, nesta cidade de Lisboa, Juízo da Correição do Cível da Corte, no meu escritório, autuei a petição e despacho que ao diante se segue. E eu, José Teixeira Pinto Chaves Cabral, o escrevi.

Segundo se continha e declarava e era outrossim conteúdo, escrito e declarado em a mencionada autuação, que sendo do modo e forma que dito é e declarado fica.

Logo dos mesmos autos outrossim se via e mostrava estar uma petição, que da qual todo o seu teor e forma é pelo modo e maneira seguinte:

Diz Joaquim António Clemente Maciel, capitão da Terceira Companhia do Regimento de Milícias da vila da Covilhã, que ele pretende justificar os itens seguintes: item, que o suplicante é filho legítimo de Joaquim José Gregório Maciel e de sua mulher, Dona Maria Josefa Caetana, natural desta cidade de Lisboa e natural da vila da Covilhã; item, que o suplicante é neto paterno de João Lopes Maciel e de Dona Eustáquia Maria de Sales Monteiro e materno de Carlos Pinto da Costa e de sua mulher, Dona Teresa Maria Rosa; item, que tanto o suplicante como seus pais e avós se trataram e tratam à lei da nobreza, com criados, armas e cavalos, sem que jamais fossem compreendidos em crime algum de lesa-majestade, divina ou humana. Pede a Vossa Senhoria se digne admitir o suplicante a justificar o referido e, justificado que seja, se lhe julgue por sentença, mandando-lha extrair para poder requerer com ela o seu competente brasão de armas. E receberá mercê.

Segundo se continha e declarava e era outrossim conteúdo, escrito e declarado em a mencionada petição, que sendo do modo e forma que dito é e declarado fica.

Logo dos mesmos autos e na referida petição outrossim se via e mostrava estar um despacho, que do qual todo o seu teor e forma é pelo modo e maneira seguinte:

Justifique. Esteves.

Segundo se continha e declarava e era outrossim conteúdo, escrito e declarado em o mencionado despacho, que sendo do modo e forma que dito é e declarado fica.

Logo dos mesmos autos outrossim se via e mostrava estar uma justificação, que da qual todo o seu teor e forma é pelo modo e maneira seguinte:
JUSTIFICAÇÃO DE NOBREZA DO CAPITÃO JOAQUIM ANTÓNIO CLEMENTE MACIEL
Aos onze dias do mês de janeiro de mil oitocentos e quinze anos, nesta cidade de Lisboa, no meu escritório, o inquiridor deste Juízo, o Bacharel Manuel de Azevedo Franco, comigo, escrivão, inquiriu as testemunhas que por parte do justificante, Joaquim António Clemente Maciel, foram apresentadas. Seus nomes e ditos se seguem: José Teixeira Pinto Chaves Cabral descrevi. José Joaquim Piçarro, contador de cobre do terreiro público desta cidade, morador na Rua dos Canos, freguesia de Nossa Senhora do Socorro, idade de quarenta e dois anos, testemunha jurada aos Santos Evangelhos e, do costume, disse nada. Petição, folhas duas. E perguntado pelo conteúdo na petição do justificante, Joaquim António Clemente Maciel, disse que o conhece muito bem e sabe, pelo ver, que ele é filho legítimo de Joaquim José Gregório Maciel e de sua mulher, Dona Maria Josefa Caetana; natural da vila da Covilhã e capitão do Regimento de Milícias da mesma vila; é neto paterno de João Lopes Maciel e de Dona Eustáquia Maria de Sales Monteiro e materno de Carlos Pinto da Costa e de sua mulher, Dona Teresa Maria Rosa, e que tanto o justificante como os ditos seus pais e avós se trataram sempre à lei da nobreza, com criados, armas e cavalos, sem que jamais fossem compreendidos em crime de lesa-majestade, divina ou humana, sendo descendente das nobres famílias de seus apelidos. E mais não disse; a assinou com o sobredito inquiridor. E eu, José Teixeira Pinto Chaves Cabral, o escrevi. José Joaquim Piçarro. Manuel de Azevedo FrancoBrás António Camolino, tenente do Regimento Número Primeiro, morador na Calçada Nova de São Francisco, freguesia dos Mártires, idade de trinta anos, testemunha jurada aos Santos Evangelhos e, do costume, disse nada. Petição, folhas duas. E perguntado pelo conteúdo na petição do justificante, Joaquim António Clemente Maciel, disse que o conhece muito bem e sabe, pelo ver, que ele é capitão da Terceira Companhia do Regimento de Milícias da vila da Covilhã e daí natural, filho legítimo de Joaquim José Gregório e de sua mulher, Dona Maria Josefa Caetana, neto pela parte paterna de João Lopes Maciel e de sua mulher, Dona Eustáquia Maria de Sales Monteiro, e pela materna de Carlos Pinto da Costa e de sua mulher, Dona Teresa Maria Rosa, e que tanto o justificante como os ditos seus pais e avós se trataram sempre à lei da nobreza, com criados, armas e cavalos, sem que fossem compreendidos em crime algum de lesa-majestade, divina ou humana, sendo descendente das nobres famílias de seus apelidos. E mais não disse. E a assinou com o inquiridor. E eu, José Teixeira Pinto Chaves Cabral, o escrevi. Brás António Camolino, Tenente de Artilharia, Número Primeiro. Manuel de Azevedo FrancoJosé de Oliveira Nunes Gomes, tenente do Regimento de Milícias da vila da Covilhã, morador à Convalescença, freguesia de Nossa Senhora do Amparo do lugar de Benfica, testemunha jurada aos Santos Evangelhos e, do costume, disse nada. Petição, folhas duas. E perguntado pelo conteúdo nos itens da petição do justificante, Joaquim António Clemente Maciel, disse que o conhece muito bem e sabe, pelo ver, e é constante que ele é capitão do Regimento de Milícias da vila da Covilhã, filho legítimo de Joaquim José Gregório Maciel e de sua mulher, Dona Maria Josefa Caetana, e natural da dita vila da Covilhã, neto pela parte paterna de João Lopes Maciel e de sua mulher, Dona Eustáquia Maria de Sales Monteiro, e pela materna de Carlos Pinto da Costa e de sua mulher, Teresa Maria Rosa, e que tanto o justificante como os ditos seus pais e avós se têm tratado sempre à lei da nobreza, com criados, armas e cavalos, sem que lhe conste tenham sido compreendidos em crime algum de lesa-majestade, divina ou humana, sendo descendente das nobres famílias de seus apelidos. E mais não disse. E a assinou com o sobredito inquiridor. E eu, José Teixeira Pinto Chaves Cabral, o escrevi. José de Oliveira Nunes Gomes, Tenente. Manuel de Azevedo FrancoCrisanto Pedro de Melo Lobo Rodrigues de Castanheda e Almada, fidalgo-cavaleiro da Casa de Sua Alteza Real, que vive de suas rendas, morador na Rua de Cima do Socorro, dita freguesia, idade de trinta e quatro anos, testemunha jurada aos Santos Evangelhos e, do costume, disse nada. Petição, folhas duas. E perguntado pelo conteúdo nos itens da petição do justificante, Joaquim António Clemente, disse que o conhece muito bem e sabe, pelo ver, e é constante que ele é capitão do Regimento de Milícias da vila da Covilhã, donde é natural, que é filho legítimo de Joaquim José Gregório Maciel e de sua mulher, Dona Maria Josefa Caetana, neto paterno de João Lopes Maciel e sua mulher, Dona Eustáquia Maria Sales Monteiro, e materno de Carlos Pinto da Costa e de sua mulher, Dona Teresa Maria Rosa, e que tanto o justificante como os ditos seus pais e avós se trataram sempre à lei da nobreza, com criados, armas e cavalos, sem que tenham sido compreendidos em crime algum de lesa-majestade, divina ou humana, sendo descendente das nobres famílias de seus apelidos. E mais não disse. E a assinou com o inquiridor. E eu, José Teixeira Pinto Chaves Cabral, o escrevi. Crisanto Pedro de Melo Lobo Rodrigues de Castanheda e Almada. Manuel de Azevedo Franco.

Segundo se continha e declarava e era outrossim conteúdo, escrito e declarado em a mencionada justificação, que sendo do modo e forma que dito é e declarado fica.

Logo dos mesmos autos outrossim se via e mostrava estar uma petição, que da qual todo o seu teor e forma é pelo modo e maneira seguinte:

Diz Joaquim António Clemente Maciel que ele, suplicante, requerera neste Juízo, perante Vossa Senhoria e no escritório do Escrivão Cabral, justificar sua nobreza. E para melhor a comprovar, pretende que Vossa Senhora se digne mandar que está com o documento incluso seguinte aos autos da dita justificação e que depois se façam conclusos, competentemente preparados para julgar a mesma por sentença, na forma do estilo, visto que ao suplicante se lhe torna impossível juntar outros muitos documentos, que podia juntar se se não extraviassem pela invasão do inimigo comum na vila da Covilhã, pátria do suplicante, que pede a Vossa Senhoria se digne deferir-lhe na forma requerida. E receberá mercê.

Segundo se continha e declarava e era outrossim conteúdo, escrito e declarado em a mencionada petição, que sendo do modo e forma que dito é e declarado fica.

Dos mesmos autos outrossim se via e mostrava estar um despacho, que do qual todo o seu teor e forma é pelo modo e maneira seguinte:

Junte-se. Esteves.

Segundo se continha e declarava e era outrossim conteúdo, escrito e declarado em o mencionado despacho, que sendo do modo e forma que dito é e declarado fica.

Logo dos mesmos autos outrossim se via e mostrava estar um documento, que do qual todo o seu teor e forma é pelo modo e maneira seguinte:

Dom João, por graça de Deus Príncipe Regente de Portugal e dos Algarves d'aquém e d'além-Mar em África, de Guiné e da Conquista, Navegação, Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e da Índia. Faço saber aos que esta minha carta patente virem que, conformando-me com as propostas do Marechal do Exército Guilherme Carr Beresford, que os governadores do Reino de Portugal e dos Algarves fizeram subir a minha Real Presença e que eles haviam anteriormente aprovado em vinte e sete de janeiro de mil oitocentos e dez, sou servido promover para Capitão da Terceira Companhia do Regimento de Milícias da Covilhã a Joaquim António Clementino Maciel, tenente da mesma companhia e regimento, o qual posto servirá enquanto eu o houver por bem. E com ele não vencerá soldo algum de minha Real Fazenda, mas gozará de todas as honras, privilégios, liberdades, isenções e franquezas que direitamente lhe pertencerem. Pelo que mando aos ditos governadores do Reino de Portugal e dos Algarves que, mandando-lhes dar a posse deste posto, jurando primeiro de cumprir com as suas obrigações, o deixem servir e exercitar, e o comandante e mais oficiais maiores do dito regimento o tenham e conheçam por tal e os oficiais e soldados seus subordinados lhe obedeçam, cumpram e guardem suas ordens em tudo o que tocar ao meu Real Serviço, tão inteiramente como devem e são obrigados com firmeza. Do que lhe mandei passar a presente, por mim assinada e selada com o selo grande de minhas armas. Dada nesta cidade do Rio de Janeiro, aos doze dias do mês de setembro ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e onze. O Príncipe com guarda e cinco pontinhos. Lugar do selo grande. Patente por que Vossa Alteza Real há por bem promover para Capitão da Terceira Companhia do Regimento de Milícias da Covilhã a Joaquim António Clementino Maciel, tenente da mesma companhia e regimento, como acima se declara. Para Vossa Alteza Real ver. Por Decreto de Sua Alteza Real de treze de maio de mil oitocentos e dez. Pedro Vieira da Silva Teles a fez escrever. Gaspar José de Matos Ferreira Lucena. João Tadeu O'Connell. Registada a folhas cento quarenta e oito, verso, do Livro das Patentes do Exército de Portugal. Secretaria de Estado, catorze de outubro de mil oitocentos e onze. Ildefonso José da Costa e Abreu. Registada no Livro Segundo de Patentes, a folhas quatro. Secretaria do Conselho Supremo Militar, em vinte e seis de outubro de mil oitocentos e onze. José Sérgio Pinto de Figueiredo Meneses Antas. A folhas cento e doze, verso, do Livro Quarto das Patentes de Milícias fica esta registada. Secretaria dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, em cinco de março de mil oitocentos e treze. Miguel Vieira de Abreu. António José Pinto a fez. Lugar do selo pequeno. Do selo quatro mil réis. Rio, quatro de dezembro de mil oitocentos e onze. Meneses. E trasladada, a concertei com a própria, a que me reporto, que entreguei ao apresentante. Lisboa, doze de janeiro de mil oitocentos e quinze. E eu, António Joaquim de Torres, tabelião, a sobrescrevi e a assinei em público. Vai escrita em duas meias folhas de papel, com o meu cognome. Lugar do sinal público. Em testemunho de verdade. Tabelião António Joaquim de Torres. Lugar do selo da causa pública. Pagou cento e vinte réis de selo. Lisboa, treze de janeiro de mil e oitocentos e quinze. Sequeira Coutinho. Número quinhentos vinte e dois lançado.

Segundo se continha e declarava e era outrossim conteúdo, escrito e declarado em o mencionado documento, que sendo do modo e forma que dito é declarado fica.

Logo dos mesmos autos outrossim se via e mostrava estar uma verba do pagamento do selo, que da qual todo o seu teor e forma é pelo modo e maneira seguinte:

JUÍZO DA CORREIÇÃO DO CÍVEL DA CORTE
AUTOS CÍVEIS DE PETIÇÃO E JUSTIFICAÇÃO DE JOAQUIM ANTÓNIO MACIEL
Contém estes autos, exclusas as que já pagaram e inclusas a esta, oito meias folhas, de que por parte do suplicante se vai pagar o competente selo para conclusão. José Teixeira Pinto Chaves Cabral o escrevi. Lugar do selo da causa pública. Pagou oitenta réis de selo. Lisboa, catorze de janeiro de mil oitocentos e quinze. Amorim. Número trinta e quatro lançado.

Segundo se continha e declarava e era outrossim conteúdo, escrito e declarado em a mencionada verba do pagamento do selo, que sendo do modo e forma que dito é e declarado fica.

Logo dos mesmos autos outrossim se via e mostrava que, sendo eles competentemente preparados ao dito meu Desembargador-Corregedor do Cível da Corte, este, depois de muito bem os examinar, neles proferiu uma sentença, que da qual todo o seu teor e forma é pelo modo e maneira seguinte:

Hei por justificado o deduzido na petição, folhas duas, em vista das testemunhas, folhas três, e documento, folhas oito. Passe o escrivão sentença à parte e pague as custas. Lisboa, catorze de janeiro de mil oitocentos e quinze. João Batista Esteves.

Segundo se continha e declarava e era outrossim conteúdo, escrito e declarado em a mencionada sentença, que sendo do modo e forma que dito é e declarado fica. Logo por parte do mencionado justificante, o dito Joaquim António Clemente Maciel, me foi pedido e requerido que do processo dos autos de sua justificação lhe mandasse dar e passar sua carta de sentença cível de justificação de nobreza, para com ela e na forma dela tratar de seu direito e justiça e, juntamente, para poder requerer o seu competente brasão de armas, o que sem ela não podia fazer. E pelo seu requerimento ser junto e bem conforme à razão de justiça, lha mandei dar e passar, que efetivamente se lhe deu e passou, que é a presente, pelo teor da qual mando a todas as minhas sobreditas justiças em o princípio desta declaradas que, sendo-lhes esta apresentada e o verdadeiro conhecimento dela com direito direitamente deva e haja de pertencer o seu devido efeito e inteiro cumprimento, real e plenária execução dela, e indo ela, primeiramente que tudo em o meu Real Nome passada, assinada por um dos do meu Desembargo, meu Desembargador da Casa da Suplicação e na mesma atualmente com exercício de Corregedor do Cível da Corte nesta de Lisboa e seu termo de cinco léguas em circunferência, com alçada por mim na Segunda Vara, adiante nomeado por quem esta se passou, sobrescrita pelo escrivão de seu cargo e ultimamente transitada pela minha Chancelaria da Corte e Casa da Suplicação, a cumprais e guardeis e façais cumprir e guardar pela parte que vos toca e tocar pode, bem assim e da mesma forma tão inteira e inviolavelmente como na mesma se contém e declara.

E em seu cumprimento e por virtude dela, requerendo-se-vos por parte do mencionado justificante, o dito Joaquim António Clemente Maciel, alguma cousa a bem de seu direito e justiça, vós lhe dareis o inteiro crédito, como aos próprios autos, donde esta emanou, porquanto nos mesmos justificou a sua nobreza e com o documento que aos ditos juntou e nesta vai inserto comprovou mais a mesma, em vista do qual e de tudo o mais que nesta vai inserto, o referido meu desembargador o houve por justificado e para como tal requerer com esta o que lhe competir de direito e justiça, a qual cumprireis, fareis cumprir e guardar tão inteira e inviolavelmente como na mesma se contém e declara, e al não façais.

Dada e passada e mandada dar e passar em esta Corte, muito Nobre e sempre Leal Cidade de Lisboa e Juízo da Correição do Cível da Corte, e feita em ela, aos dezassete dias do mês de janeiro do ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e quinze anos. Príncipe Regente, nosso Senhor, o mandou pelo Doutor João Batista Esteves, do seu Desembargo e seu Desembargador da Casa da Suplicação e na mesma atualmente com exercício de Corregedor do Cível da Corte nesta de Lisboa e seu termo de cinco léguas em circunferência, com alçada na Segunda Vara, que serve por Sua Alteza Real, o Príncipe Regente, nosso Senhor, que Deus guarde. Esta vai sobrescrita por José Teixeira Pinto Chaves Cabral, escrivão proprietário e encartado em um dos ofícios do Juízo da Correição do Cível da Corte e Casa da Suplicação nesta de Lisboa e cinco léguas em circunferência dela, tudo por Sua Alteza Real, o Príncipe Regente, nosso Senhor, que Deus guarde.

Pagou-se de feitio desta presente carta de sentença cível de justificação de nobreza ao todo, contada na forma do Regimento, a quantia de mil duzentos quarenta e sete réis; do papel, sessenta e seis réis; de assinar se pagaram já nos autos oitocentos réis; na Chancelaria o que se dever. E eu, José Teixeira Pinto Chaves, a subscrevi. João Batista Esteves.

Pagos dez réis e ao [ilegível] cento trinta e seis réis e de novo selo quatrocentos e quarenta réis. Lisboa, 20 de janeiro de 1815. Sousa.

[Proferida a sentença, o suplicante pede ao monarca que seja servido passar-lhe o seu brasão:]

Em observância do despacho retro [no processo, o despacho do rei de armas precede os textos seguintes], copiei a petição e despacho de que ele faz menção, cujo teor é pela maneira e forma seguinte:

PETIÇÃO:
Senhor,
Diz Joaquim António Clementino Maciel da Costa Monteiro, Capitão da Terceira Companhia do Regimento de Milícias da Covilhã, que à vista do documento junto se mostra justificada a sua nobreza. E, por isso, pretende que o rei de armas lhe mande passar o seu brasão. E como o não pode fazer sem o beneplácito de Vossa Alteza Real, portanto pede a Vossa Alteza Real seja servido que se lhe passe o brasão requerido. E receberá mercê. Joaquim António Clementino Maciel, Capitão.

DESPACHO: Assine o Rei de Armas José Teodoro de Seixas. Palácio do Governo, em vinte e um de janeiro de mil oitocentos e quinze. Com a rubrica do Excelentíssimo João António Salter de Mendonça, Secretário do Governo da Repartição do Reino.

E não se continha mais em a dita petição e Régio Despacho, que aqui fiel e exatamente trasladei, cujo original entreguei ao Rei de Armas Portugal, José Teodoro de Seixas, em virtude do seu mencionado despacho. Eu, Francisco de Paula Campos, o escrevi e assinei. Francisco de Paula Campos.

[Deferida a petição pelo secretário dos Negócios do Reino em nome de Sua Majestade, o processo é remetido ao rei de armas:]

Diz Joaquim António Clementino Maciel da Costa Monteiro, Capitão da Terceira Companhia do Regimento de Milícias de Covilhã, que à vista do documento junto e Despacho Régio, se acha justificada a sua nobreza, pelo que pede a Vossa Senhoria seja servido mandar lhe passar o seu brasão de armas. E receberá mercê.

[Despacho do rei de armas:]

Autuado e copiado o Régio Despacho e feito o depósito, venham conclusos. Lisboa, 24 de janeiro de 1815. Seixas.

[Verba do pagamento do selo:]

Os autos de nobreza de Joaquim António Clementino Maciel da Costa Monteiro. Devem pagar selo de quatro meias folhas, esta compreendida. Lisboa, 24 de janeiro de 1815. Francisco de Paula Campos.

[Autuação do escrivão da Nobreza:]

Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e quinze, aos vinte e cinco dias do mês de janeiro do dito ano nesta cidade de Lisboa e no meu escritório, me foi dada a petição e sentença de Joaquim António Clementino Maciel da Costa Monteiro com o despacho nela proferido para haver de se autuar e fazerem os autos conclusos, a fim de se passar ao mencionado suplicante o seu brasão de armas por este Juízo da Nobreza. Eu, Francisco de Paula Campos, o escrevi.

[Verba do pagamento do selo:]

Pagos quarenta réis de selo. Lisboa, 26 de janeiro de 1815. Oliveira.

[Despacho do rei de armas:]

Passe ao suplicante, Joaquim António Clementino Maciel da Costa Monteiro, Capitão da Terceira Companhia do Regimento de Milícias de Covilhã, brasão de armas das famílias de seus ascendentes, na forma que indica na sua justificação, documento e sentença. Lisboa, 30 de janeiro de 1815. José Teodoro de Seixas.

[Protocolo de conclusão:]

E os fiz conclusos. E eu, Francisco de Paula Campos, o escrevi. Campos.

Concluso o processo de justificação de nobreza, passa-se a carta de brasão. Infelizmente, não acho nenhum par de justificação e carta de brasão digitalizado. O texto seguinte transcrevi de um dos livros, o sétimo (folha 305), em que essas cartas eram copiadas.

Armas de Joaquim António Clementino Maciel: esquartelado, o primeiro e quarto partidos, o primeiro de prata com duas flores de lis de azul, uma sobre a outra; o segundo dimidiado de prata com uma águia de vermelho, armada de negro (Maciel); o segundo de prata com três cornetas de negro, guarnecidas e embocadas de ouro, atadas de vermelho (Monteiro); o terceiro de vermelho com seis costas de prata, postas em faixa e moventes dos flancos (Costa); por diferença, uma brica de vermelho com um farpão de ouro.
Armas de Joaquim António Clementino Maciel: esquartelado, o primeiro e quarto partidos, o primeiro de prata com duas flores de lis de azul, uma sobre a outra; o segundo dimidiado de prata com uma águia de vermelho, armada de negro (Maciel); o segundo de prata com três cornetas de negro, guarnecidas e embocadas de ouro, atadas de vermelho (Monteiro); o terceiro de vermelho com seis costas de prata, postas em faixa e moventes dos flancos (Costa); por diferença, uma brica de vermelho com um farpão de ouro.

Dom João, por graça de Deus Príncipe Regente de Portugal e dos Algarves d'aquém e d'além-Mar em África, Senhor de Guiné e da Conquista, Navegação, Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e da Índia. Faço saber aos que esta minha carta de brasão de armas, de nobreza e fidalguia virem que Joaquim António Clementino Maciel, Capitão do Regimento de Milícias da Covilhã, me fez petição dizendo que pela sentença de justificação de sua nobreza a ela junta, proferida e assinada pelo meu Desembargador da Casa da Suplicação, servindo de Corregedor do Cível da Corte, o Doutor João Batista Esteves, subscrita por José Teixeira Pinto Chaves Cabral, Escrivão do mesmo juízo, se mostrava que ele é filho legítimo de Joaquim José Gregório Maciel e sua mulher, Dona Maria Josefa Caetana, neto por parte paterna de João Lopes Maciel e de Dona Eustáquia Maria de Sales Monteiro e por parte materna de Carlos Pinto da Costa e Dona Teresa Maria Rosa, e que os referidos seus pais e avós são pessoas nobres das famílias dos Maciéis, Monteiros e Costas, que neste Reino são fidalgos de linhagem e, como tais, se trataram sempre à lei da nobreza, com cavalos e criados, sem em tempo algum cometerem crime de lesa-majestade, divina ou humana. Pelo que me pedia ele, suplicante, por mercê que para a memória de seus progenitores se não perder e clareza de sua antiga nobreza, lhe mandasse dar minha carta de brasão de armas das ditas famílias, para delas também usar, na forma que as trouxeram e foram concedidas aos ditos seus progenitores. E vista por mim a dita sua petição e sentença e constar de tudo o referido e que a ele, como descendente das mencionadas famílias, lhe pertence usar e gozar de suas armas, segundo o meu Regimento e Ordenação da Armaria, lhe mandei passar esta minha carta de brasão delas, na forma que aqui vão brasonadas, divisadas e iluminadas com cores e metais, segundo se acham registadas no Livro do Registo das Armas da Nobreza e Fidalguia destes meus Reinos, que tem o meu Rei de Armas Portugal, a saber, um escudo esquartelado: no primeiro e quarto quartel as armas dos Maciéis, que são partidas em pala, na primeira em campo de prata duas flores de lis de azul em pala; na segunda, também em campo de prata, meia águia vermelha, armada de negro; no segundo quartel, as armas dos Monteiros, que são em campo de prata três cornetas de sua cor, com os bocais de ouro e os cordões vermelhos, postas em roquete; e no terceiro, as dos Costas, que são em campo vermelho seis costas de prata, firmadas no escudo, postas em duas palas; elmo de prata aberto, guarnecido de ouro; paquife dos metais e cores das armas; timbre dos Maciéis, que é uma flor de lis de ouro entre dois ramos de macieira verdes, com maçãs de prata; e, por diferença, uma brica vermelha com um farpão de ouro. O qual escudo e armas poderá trazer tão somente o dito Joaquim António Clementino Maciel, assim como as trouxeram e usaram os ditos nobres e antigos fidalgos, seus antepassados, em tempo dos senhores reis, meus antecessores, e com elas poderá entrar em batalhas, campos, reptos, escaramuças e exercitar todos os mais atos lícitos da guerra e da paz. E assim mesmo as poderá trazer em seus firmais, anéis, sinetes e divisas, pô-las em suas casas, capelas e mais edifícios e deixá-las sobre sua própria sepultura. E, finalmente, se poderá servir, honrar, gozar e aproveitar delas em tudo e por tudo, como a sua nobreza convém. Com o que quero e me praz que haja ele todas as honras, privilégios, liberdades, graças, mercês, isenções e franquezas que hão e devem haver os fidalgos e nobres de antiga linhagem e como de tudo usaram e gozaram os ditos seus antepassados. Pelo que mando aos meus desembargadores, corregedores, provedores, ouvidores, juízes e mais justiças de meus Reinos e, em especial, aos meus reis de armas, arautos e passavantes, e a quaisquer outros oficiais e pessoas a quem esta minha carta for mostrada e o conhecimento dela pertencer que em tudo lha cumpram e guardem e façam inteiramente cumprir e guardar como nela se contém, sem dúvida nem embargo algum que a ela seja posto, porque assim é minha mercê. O Príncipe Regente, nosso Senhor, o mandou por José Teodoro de Seixas, Cavaleiro de sua Casa Real e seu Rei de Armas Portugal. Francisco de Paula Campos, Escrivão da Nobreza destes Reinos e seus Domínios, a fez em Lisboa, aos nove dias do mês de fevereiro do ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e quinze. Eu, Francisco de Paula Campos, a fiz e subscrevi. Rei de Armas Portugal José Teodoro de Seixas. Eu, Francisco de Paula Campos, a registei e assinei. Francisco de Paula Campos.

Neste exemplo, o primeiro e quarto quartéis do escudo correspondem à linhagem do avô paterno; o segundo, à da avó paterna; o terceiro, à do avô materno. A brica era praticamente a diferença-padrão. Mostra bem como o sistema funcionava. Com efeito, o suplicante cumpriu os três requisitos para o recebimento de um brasão e o reconhecimento de fidalgo de cota de armas:

  1. Apresentou testemunhas que confirmaram a alegação de que tanto ele como seus pais e avós viviam à lei da nobreza;
  2. seus avós paterno e materno e sua avó paterna tinham sobrenomes homófonos de linhagens armoriadas;
  3. pagou as custas do processo.

Trocando em miúdos, quem tinha sobrenomes iguais aos de linhagens constantes dos armoriais e estava num nível socioeconômico minimamente compatível com a nobreza era tido por fidalgo e bastavam-lhe três ou quatro testemunhos para justificá-lo satisfatoriamente.

Nota:
(1) Ainda que fique demasiado longa, copiarei aqui a classificação da fidalguia portuguesa elaborada por Luís da Silva Pereira Oliveira nos Privilégios da nobreza e fidalguia de Portugal (1806): Por poucas luzes que alguém tenha, sempre chega a conhecer que os fidalgos não são todos de igual graduação e que entre eles há uns de maior qualidade, preeminência e condição que outros. Esta palpável diferença, que se mete pelos olhos ainda da gente mais estólida, excitou em mim o desejo de saber quantas e quais eram as espécies de fidalgos que havia neste Reino, e tendo para isso consultado a legislação e a história deste Reino, vim no conhecimento de que nele há oito diferentes qualidades de fidalgos, quais são as que se seguem: 1.ª, fidalgos de solar; 2.ª, fidalgos de linhagem; 3.ª, fidalgos assentados nos livros d'el-Rei; 4.ª, fidalgos feitos por especial mercê d'el-Rei, que são diferentes dos assentados nos livros; 5.ª, fidalgos notáveis; 6.ª, fidalgos de grandes estados ou de grande qualidade; 7.ª, fidalgos principais; 8.ª, fidalgos de cota d'armas. E porquanto nem todos sabem a diferença essencial que distingue uns dos outros, não será ocioso e inútil que eu a declare neste competente lugar e vem a ser: 1.ª espécie: Fidalgos de solar são os sucessores daquela casa onde teve honroso princípio alguma família nobre e onde se deu brilhante tom ao apelido e ao brasão d'armas que nela se conserva e da qual se deriva para os diferentes ramos que da mesma procedem; casa, enfim, que é o tronco, o chefe e a cabeça da linhagem, à qual o bispo Osório chama flor da sua geração. Estes solares ou antiga cepas de nobreza dividem-se em duas classes, uma a que chamam solar grande e outra, solar conhecido ("solar conocido", diz Gutiérrez, "es casa o palacio principal de gente noble"). Solar grande querem alguns que seja o em que se achar a qualidade de solar unida a algum título. Entre o título, porém, e o solar grande fazem separação as Pragmáticas de 24 de maio de 1749, dizendo no Capítulo 22 que sendo titular ou fidalgo de grande solar, será a prisão em uma torre, por onde se vê que fidalgos de grande solar não são só os titulares, pois se o fossem seria supérfluo e até errôneo que a pragmática especificasse aqueles depois de ter nomeado estes, metendo de permeio o ditongo ou, que regularmente só se põe entre cousas diversas, pelo que o jurisconsulto Morais, tomando diverso rumo, diz que sendo "solar de grande senhorio se chamam fidalgos de grande solar". Uns e outros têm preferência na classe da fidalguia e as nossas leis sempre que os nomeiam, antepõem-nos aos fidalgos matriculados nos livros da Casa Real. A maior parte destes solares estão na província do Minho. Pelo menos, posso contar ali acima de um cento deles. Alguma vez o príncipe, por graça especial, faz fidalgo de solar conhecido aquele que o não é, como praticou el-Rei Dom Sebastião a favor de Diogo e Luís de Castro e descendentes de um e outro, sem embargo do defeito de nascimento, por carta expedida em 1573, que se conserva na Real Biblioteca do Escorial de Madrid. 2.ª espécie: Fidalgos de linhagem são aqueles cuja fidalguia já lhe provém de seus avós. Estes fidalgos, posto que não têm moradia nem assento nos livros da Casa de Sua Majestade, compreendem-se, contudo, na generalidade da palavra fidalgos, e por tais podem intitular-se, visto que a Ordenação do Reino faculta esta denominação ainda mesmo aos que forem fidalgos por via do avô materno. E como ela lhes concede o título de fidalgo, também por uma necessária consequência vem a conceder-lhes as prerrogativas que a ele andam anexas. E assim, todas as vezes que a lei falar geralmente de fidalgos, sem determinação de certa espécie, vêm os de linhagem a ser igualmente contemplados na generalidade da mesma lei, como espécie incluída debaixo do seu gênero. 3.ª espécie: Fidalgos assentados nos livros d'el-Rei são aqueles a que chamamos filhados, que é o mesmo que tomados pelo rei para o seu particular serviço, da palavra antiga filhar, que vale o mesmo que 'tomar com autoridade legal e jurídica'. Para estes fidalgos terem assento nos sobreditos livros, precisam habilitar-se com quatro certidões: a primeira do seu batismo; a segunda do casamento de seus pais; a terceira do filhamento de seu pai ou avô paterno, tirada no Registo do Livro das Mercês e não basta que juntem o próprio alvará do foro; a quarta, uma atestação passada e jurada por dous fidalgos (quando na Corte os não houver, que possam ir depor perante o mordomo-mor), em que declarem o nome, naturalidade, domicílio e filiação do impetrante, o de seus pais e avós paternos e maternos e que todos foram pessoas de conhecida nobreza e como tais se trataram, sem nunca fossem penitenciadas pelo Santo Ofício nem cometessem crime de lesa-majestade, divina ou humana, e que o dito seu pai ou avô era fidalgo da Casa de Sua Majestade e por tal tido e reputado. Com estes documentos, reconhecidos por um tabelião da Corte, suplica o impetrante ao mordomo-mor a graça de lhe mandar passar o foro que por seu pai ou avô direitamente lhe compete. E ele, por despacho seu e sem dependência de consultar Sua Majestade, defere ao passe do alvará, feito o qual sobe logo à Real Assinatura e depois se regista no Livro das Mercês e se lhe abre assento no da Matrícula da Casa Real. Esta espécie de fidalgos subdivide-se em três diversas graduações: a primeira e mais antiga é a de moços-fidalgos, a qual já teve princípio em tempo d'el-Rei Dom Afonso V; a segunda e superior é a de fidalgos-escudeiros; a terceira e melhor que as outras é a de fidalgos-cavaleiros, e ambas estas foram graduadas por el-Rei Dom Sebastião, segundo deixamos dito no capítulo antecedente. Os moços-fidalgos sobem por acrescentamento a fidalgos-escudeiros e a fidalgos-cavaleiros, mas com ser melhor o foro acrescentado, todos, ainda que sejam filhos de títulos, querem antes ser moços-fidalgos, por serem só os que têm exercício no paço. Todos estes foros, ainda os de escudeiros ou cavaleiros-fidalgos, costumam conceder-se com moradia em dinheiro, a qual é paga todos os meses por ordem do mordomo-mor aos que assistem na Corte ou onde ela reside, cuja moradia não é igual em todos, mas proporcionada à qualidade do foro ou do acrescentamento de cada um. Tanto os foros como as moradias anexas, depois de uma vez concedidos, ficam perpetuados na família do adquirente e passam a todos os descendentes legítimos por varonia, como adiante veremos. As pessoas condecoradas com estes foros constituem a principal nobreza depois dos títulos e, a darmos fé a um douto antiquário, eles correspondem aos condes do sacro palácio, de que fala o código das leis romanas. 4.ª espécie: Fidalgos por especial mercê do rei são aqueles a quem se passa carta para serem havidos por fidalgos e gozarem dos privilégios da fidalguia. Destas cartas, concedidas antigamente pelos reis de Portugal, ainda apareceram e foram vistas algumas no princípio do século passado próximo, e por elas se convence o autor da Nobiliarquia enquanto diz que “fidalgos por especial mercê dos reis são os fidalgos da Casa dos Infantes e os que fazia a Casa de Bragança”. Estes fidalgos símplices algumas vezes sobem por acrescentamento ao foro de moços-fidalgos, como observou e viu um indagador destas matérias. 5.ª espécie: fidalgos notáveis não se acha declarado quais sejam nem acerca deles podemos estabelecer regra geral, por depender essa declaração da vontade do soberano, como ele mesmo diz na Ordenação do Reino pelas seguintes palavras: "Fidalgo notável ficará em nosso arbítrio". 6.ª espécie: Fidalgos de grandes estados são os donatários de grandes senhorios e jurisdições. A palavra estado toma-se aqui por 'território', 'governo' e 'dominação', e nesse sentido costumamos dizer e a cada passo ler Estado da Rainha, Estado de Bragança, Estado do Infantado, Estado e Casa de Aveiro, estado monárquico, aristocrático e democrático, ministro de Estado, secretário de Estado, estado eclesiástico etc. Sobre o que se pode ver o Dicionário francês do Padre Marques, no vocábulo état. E assim, o mesmo é dizer fidalgos de grandes estados que fidalgos de grandes senhorios e jurisdições. E estes fidalgos de grande qualidade e casa são uma mesma cousa, por isso os incluí debaixo de uma só espécie, o que se prova pela Ordenação do Reino. 7.ª espécie: Fidalgos principais ainda não houve quem até agora os definisse. A Ordenação, falando deles, não os declara quais sejam e os comentadores à mesma guardaram igual silêncio. Morais, que deles se lembra, contenta-se com dizer que fidalgos principais não são só os titulares, verdade manifesta a todos os que lerem na Ordenação do Reino as subsequentes palavras: "Duque, marquês, conde, […] senhor de terras ou fidalgo principal", as quais provam que, além dos titulares e dos senhores de terras, há fidalgos principais, pois que entre uns e outros mete a dicção ou, que serve de separar e diversificar as cousas. E assim, é preciso recorrer à qualidade da pessoa, à antiguidade da casa, aos empregos honrosos que nela houver ou tiver havido e aos parentescos com que se achar enlaçada para se decidir desta preferência, acerca da qual não se pode dar regra certa. Fidalgos de grande qualidade e fidalgos principais são, a meu ver, uma mesma cousa, por isso os incluí debaixo de uma só espécie, posto que a Ordenação do Reino dá a entender que estes fidalgos de grande qualidade e de grandes estados é o mesmo. 8.ª espécie: Fidalgos de cotas d'armas são aqueles a quem o rei concede brasão d'armas, de cuja mercê pagam cinco mil réis de novos direitos na chancelaria competente. Ao principal rei d'armas pertence, pelo seu regimento, ordenar e expedir estes brasões e escudos d'armas, os quais ficam registados e divisados com cores e metais no Livro do Registo dos Brasões e Armas da Nobreza e Fidalguia deste Reino e suas Conquistas, para servirem de modelo, norma, minuta e regra quando se mandarem passar aos descendentes dos que as adquiriram, em cuja família ficam perpetuadas depois de uma vez concedidas.

28/06/21

A CONCESSÃO DE BRASÃO EM PORTUGAL E NO BRASIL

A heráldica luso-brasileira funcionava, sim, com certo conceito de brasão "de família", mas o mercado de bugigangas armoriadas subverteu o sistema.

Como tenho discorrido ao longo deste curto blog, a quase milenária heráldica atravessou algumas fases, seguindo as mudanças das relações sociais às quais servia. As diferentes viradas do sistema semiótico permitem discernir quatro:

  • Heráldica primitiva: Desde o começo do século XII até o começo do seguinte, aproximadamente. Ao contrário do que se apregoa, o brasão não surgiu da necessidade de os guerreiros se distinguirem em meio à batalha, mas dos vexilos senhoriais, cujos emblemas logo foram estendidos ao resto do armamento do cavaleiro, especialmente o escudo. Como desse período não há tratados ou outra literatura técnica, pelo estudo dos testemunhos supõe-se que o uso das armas era coletivo: traziam-nas o senhor e os seus vassalos nas guerras e nos torneios.
  • Heráldica clássica: No século XIII, o escudo armoriado foi tomado cada vez mais por objeto abstrato que servia de identificador pessoal. Isso favoreceu a expansão da heráldica do seu âmbito primitivo, feudal e militar, para toda a sociedade. De fato, é o período em que qualquer um podia assumir um brasão para si, independentemente do estrato social.
  • Heráldica moderna: No século XV, o brasão gentilício foi tido cada vez mais por marca de nobreza e honra. Esse entendimento foi difundido pelos arautos, que se tornaram oficiais de armas, e consolidado pela literatura técnica ao longo de toda a Idade Moderna. A mudança coincidiu com outra social: os nobres foram deixando de ser o braço militar do príncipe para se converterem em burocratas ao serviço da Coroa.
  • Heráldica contemporânea: Depois da Revolução Francesa, a nobreza foi cada vez mais reduzida a um status meramente honorário e as repúblicas sequer a reconhecem. Isso reverteu, de certa forma, a heráldica ao período clássico: hoje, na maior parte do Ocidente, qualquer um pode assumir um brasão para si. Contudo, à diferença do que acontecia na Idade Média, atualmente o uso de armas pessoais é insignificante, restrito aos cleros de certas igrejas, nomeadamente a católica, e à própria comunidade de pessoas que se interessam pelo assunto. Em compensação, cresceu o uso de armas por pessoas jurídicas de direito público.

Particularmente em Portugal, e depois também no Brasil, a heráldica gentilícia destacava-se, como tenho dito, pelo controle estatal, algo mais incomum do que parece. Com efeito, em poucos lugares, como a Inglaterra, a Escócia ou a Saboia, alcançou um grau tão alto. Os marcos desse processo são:

  • Carta de 21 de maio de 1476, pela qual Dom Afonso V fez do rei de armas Portugal o oficial de armas principal;
  • Livro do Armeiro-Mor, feito em 1509 por mandado de Dom Manuel I para servir de armorial privado ao rei;
  • Regimento de nobreza dos reis de armas, promulgado por Dom Manuel I em 1512, pelo qual se assentaram as bases para a instituição da autoridade em matéria de heráldica gentilícia até o fim da monarquia: o Juízo e Cartório da Nobreza;
  • Sala dos Brasões no Paço de Sintra, construída entre 1515 e 1520 para servir de armorial monumental;
  • as Ordenações manuelinas, promulgadas em 1521, nas quais se incorporou a legislação heráldica, conservada no essencial pelas Ordenações filipinas, de 1603, as quais vigeram em Portugal até 1867 e no Brasil até 1916;
  • Livro da nobreza e perfeição das armas, feito entre 1512 e 1541 por mandado de Dom Manuel I e Dom João III para servir de armorial oficial de luxo;
  • o Tesouro da nobreza de Portugal, feito a partir de 1783 para servir de armorial oficial no lugar do Livro antigo dos reis de armas;
  • as Cartas de 23 de novembro e 30 de dezembro de 1822 e de 24 de maio de 1823, pelas quais Dom Pedro I criou e proveu respectivamente os ofícios de rei de armas do Império, passavante do Império e arauto do Império, os quais passaram a superintender o Juízo e Cartório da Nobreza do Brasil, aplicando a legislação heráldica portuguesa, confirmada por Dom Pedro II pelo Decreto n.º 499, de 31 de janeiro de 1847.

Quanto a essa norma, a única em matéria heráldica expedida pelo estado brasileiro, vale a pena conhecê-la na íntegra:

DECRETO N.º 499, DE 31 DE JANEIRO DE 1847
Providencia sobre a concessão de brasões d'armas e sobre a expedição dos despachos, tanto para a nomeação dos oficiais mecânicos da Casa Imperial e provimento de todos os ofícios dela, cuja apresentação, na forma das leis em vigor, pertença ainda ao Mordomo-Mor, como para o levantamento d'armas imperiais na frente de alguma morada.
Convindo que sobre o modo de se concederem brasões d'armas e de se expedirem os despachos, tanto para a nomeação dos oficiais mecânicos da minha Imperial Casa e provimento de todos os ofícios dela, cuja apresentação pertença ainda ao meu Mordomo-Mor, como para a permissão de se levantarem armas imperiais na frente de alguma morada, se estabeleçam regras fixas e invariáveis, que estejam em harmonia com a Constituição do Império, com as leis existentes e com os regimentos e antiquíssimos estilos, hei por bem, tendo ouvido a seção do Conselho d'Estado dos Negócios do Império, ordenar que a respeito de cada um dos indicados objetos se observe d'ora em diante o seguinte:
1.º O Rei d'Armas não concederá jamais o uso de brasão d'armas sem precedência da justificação de nobreza, em que haja a necessária e concludente prova exigida pela Provisão de 3 de julho de 1807, a qual impõe aos pretendentes a obrigação de produzirem, além de testemunhas, documentos autênticos que provem legalmente pertencerem eles às famílias com quem querem entroncar-se, devendo proceder-se a esta justificação pelo Juízo dos Feitos da Fazenda, com audiência do Procurador dos Feitos e recurso para a Relação.
2.º Somente pela Mordomia-Mor serão feitos e expedidos, nos termos do Alvará de 3 de junho de 1572, todos os despachos relativos à nomeação dos oficiais mecânicos da minha Imperial Casa e à de todos os ofícios dela, cuja apresentação, na forma das leis em vigor, pertença ainda ao meu Mordomo-Mor.
3.º Serão igualmente expedidos pela mesma Mordomia-Mor, na conformidade do Aviso de 17 de maio de 1828, todos os despachos sobre requerimentos que tiverem por objeto a permissão de levantar as armas imperiais na frente de alguma morada.
Joaquim Marcelino de Brito, do meu Conselho, Ministro e Secretário d'Estado dos Negócios do Império, assim o tenha entendido e faça executar. 
Palácio do Rio de Janeiro, em 31 de janeiro de 1847; 26.º da Independência e do Império.
Com a rubrica de Sua Majestade, o Imperador.
JOAQUIM MARCELINO DE BRITO

A citada provisão, passada em 3 de julho de 1807, publicada no Aditamento geral das leis, resoluções, avisos etc., de Manuel Borges Carneiro (1817, p. 207), dispunha o seguinte:

Provisão despachada em resolução de consulta. Ocorrendo ao abuso com que se passam os brasões d'armas, misturando-se pessoas plebeias ou estranhas com as principais famílias do Reino, as quais os tinham adquirido por serviços notáveis e feitos assinalados, não sejam mais julgados os mesmos brasões sem que os justificantes produzam, além das testemunhas, documentos autênticos que provem legalmente que eles pertencem às famílias com quem querem entroncar-se. Registada no Desembargo do Paço.

A matéria foi, ainda, incluída por Agostinho Marques Perdigão Malheiro no seu Manual do Procurador dos Feitos da Fazenda Nacional, de 1873:

Seção XV
Justificação de nobreza para concessão de brasões de armas.
§ 261. Para concessão do uso de brasão de armas é indispensável que preceda justificação de nobreza no Juízo dos Feitos, com audiência do Procurador da Fazenda.
§ 262. Deve-se provar concludentemente por documentos e testemunhas que pertencem os justificantes às famílias com quem querem entroncar-se.
§ 263. Da sentença há recurso para a Relação.

Como argui na postagem de 13/01, não se acha nessa legislação nenhuma disposição taxativa que vedasse o uso de brasão a quem não era nobre. Tal era desnecessário porque se naturalizara o entendimento de que a armaria distinguia a nobreza, como o prova a Provisão de 3 de julho de 1807: ao se afirmar que as "principais famílias do Reino" tinham adquirido os seus brasões "por serviços notáveis e feitos assinalados", ignorava-se que os mais antigos tinham sido assumidos livremente nos períodos primitivo e clássico da heráldica. Na verdade, era como se esses períodos nunca tivessem existido e desde tempos remotos o brasão sempre tivesse sido uma mercê régia.

Outro aspecto destacável da mesma provisão é a acusação do "abuso com que se passam os brasões d'armas". Isso acabou fazendo constar no seio da legislação o que estava patente na prática: diferentemente do que ocorreu noutros lugares, onde se procurou em vão combater a fraude heráldica, em Portugal e no Brasil o controle estatal funcionou bem porque o nível baixo de exigência dispensava o recurso à trapaça. Ora, dos processos de justificação e das cartas de brasão depreende-se claramente a ênfase em dois critérios: primeiro, viver "à lei da nobreza"; segundo, descender de avós cujos sobrenomes (ou apelidos, no português europeu) constassem do armorial oficial.

Brasão concedido em 1775 pelo rei Dom José I a António José de Afonseca Mimoso.
"Um escudo esquartelado: no primeiro e quarto quartel, as armas dos Fonsecas, que são em campo de ouro cinco estrelas sanguinhas de cinco raios em sautor; no segundo, as dos Guerras, em campo verde uma torre de prata, saindo fogo dos alicerces; orla de ouro com esta letra de negro: AVE MARIA, GRATIA PLENA; no terceiro, as dos Pereiras, em campo vermelho uma cruz de prata florida e vazia do campo; elmo de prata aberto, guarnecido de ouro; paquife dos metais e cores de armas; timbre: o dos Fonsecas, que é um touro vermelho, armado de ouro, com uma estrela do mesmo metal na espádua; e, por diferença, uma brica azul com um farpão de prata"Brasão concedido em 1775 pelo rei Dom José I a António José de Afonseca Mimoso, natural da vila de Linhares, "que pela sentença de justificação de sua nobreza, a ela junta, proferida pelo meu Desembargador-Corregedor do Cível da Corte e Casa da Suplicação, o Doutor João Tavares de Abreu, subscrita por Manuel Luís Tavares Coutinho, Escrivão do dito juízo, e pelos documentos a ela também juntos, se mostrava que ele é filho legítimo de Gregório de Afonseca Mimoso e de sua mulher, Helena Caetana Pereira, moradores na dita vila, neto pela parte paterna de António de Afonseca Mimoso, capitão que foi da dita vila, e de sua mulher, Isabel Mimosa da Guerra, e pela materna de Manuel de Paiva e de sua mulher, Maria Pereira Saraiva. Os quais seus pais e avós foram pessoas muito nobres, legítimos descendentes das esclarecidas famílias dos apelidos de Afonsecas ou Fonsecas, como ordinariamente se diz, dos Guerras e Pereiras, as quais famílias são neste Reino de fidalgos de linhagem, cota de armas e de solar conhecido, e como tais se trataram, com cavalos, armas e criados, à lei da mesma nobreza, servindo no político e no militar os lugares e postos mais distintos do governo e que só servem as pessoas da maior nobreza e qualidade de todas as terras" (carta de brasão disponível na Biblioteca Nacional de Portugal).

Não faz muito tempo, o Instagram mostrou-me algumas propagandas nas postagens patrocinadas: o comércio de brasões gentilícios nos mais variados suportes. Trocando em miúdos, alguém vende objetos com brasões pintados, esculpidos, bordados, estampados ou impressos, tirados ou mesmo copiados dos armoriais, a partir do pressuposto de que identificam "famílias". Ora, é inegável que essa noção efetivamente existiu na heráldica gentilícia luso-brasileira: nos processos de justificação e nas cartas de brasão fala-se em "brasões de armas das famílias de seus ascendentes", mas o sistema não funcionava como pressupõe o mercado de quinquilharias armoriadas. Ninguém ostentava as armas dos Silvas ou as dos Oliveiras simplesmente por ter o sobrenome Silva ou Oliveira. Depois de cumprir o trâmite citado mais acima e pagar uma série de taxas, o rei de armas ordenava um brasão composto, partido ou esquartelado, com uma diferença, normalmente uma brica.

Na verdade, são as armas direitas que se ofertam hoje em dia, como se o sobrenome da linhagem à qual pertencem identificasse uma única família. Como se isso não fosse de todo inverossímil, como coloquei na postagem anterior, é agravado e lança suspeita de dolo sobre os negociantes o fato de que toda a legislação e literatura heráldicas sempre puseram de forma muito clara que a tais armas faz jus somente o chefe da linhagem, isto é, o primogênito. Contudo, à medida que as linhas varonis se foram extinguindo, os próprios nobres titulados de juro e herdade começaram a trazer também brasões compostos. Por conseguinte, a maioria dessas armas direitas não têm titulares nem pretendentes há muito tempo, de modo que se tornaram obsoletas, subsistindo apenas nas concessões de armas diferençadas.

Em suma, enquanto foram regulados pelo estado, os brasões gentilícios portugueses e brasileiros sempre foram pessoais, por mais que compostos teoricamente por armas de linhagens, na prática por armas "de sobrenomes", para dizê-lo de forma mais justa, segundo me parece, do que armas "de família".

Nas próximas postagens, procurarei desenvolver o tema desta analisando a prática. Para tanto, consultei o fundo digital do Cartório da Nobreza de Portugal, disponível no portal do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, escolhi e transcrevi quatro processos com as respectivas cartas de brasão. Cada um me pareceu ilustrativo de uma situação exemplar:

Eu gostaria muito de dar exemplos brasileiros de justificações de nobreza, mas à diferença do que aconteceu ao Cartório da Nobreza de Portugal, cujo fundo foi transferido para a Torre do Tombo, que em grande medida o digitalizou e disponibilizou em linha, o Cartório da Nobreza do Brasil sofreu maior incúria e o pouco do seu fundo que não se extraviou dispersou-se: o que estava no Ministério dos Negócios do Império foi depositado no Arquivo Nacional e o que estava sob a guarda de Ernesto Aleixo Boulanger, o derradeiro escrivão, foi adquirido pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). No momento, somente certo número de modelos de brasões, conservado no Arquivo Nacional, está digitalizado e disponível na Internet.

24/06/21

A ORIGEM DO SOBRENOME

As pessoas costumam crer que a cada sobrenome corresponde uma família, mas com poucas exceções, não têm o mesmo sobrenome, e sim sobrenomes homófonos.

Quando se comparam frases como o meu nome é em português, my name is em inglês, to ónomá mou eínai (το όνομά μου είναι) em grego, nâm-e man ast (نام من است) em persa e merā nām hai (मेरा नाम है) em híndi, surpreende que em línguas tão diferentes sejam tão semelhantes as palavras que significam "nome". É que o nome pessoal é tão essencial da vida em sociedade que o vocábulo acaba sendo um dos mais estáveis em línguas que têm a mesma origem, ainda que longínqua, como é o caso das citadas, todas indo-europeias.

Em contrapartida, o nome de família é designado sobrenome no Brasil e apelido em Portugal e nos demais países lusófonos, assim como nos Estados Unidos se prefere last name e na Grã-Bretanha e nos demais países anglófonos se diz surname. No catalão continental são os cognoms, ao passo que nas Ilhas Baleares são os llinatges. Em alemão concorrem os sinônimos Familienname, Nachname e Zuname. Isso deixa ver um instituto muito mais recente. Com efeito, o nosso sistema de nominação surgiu no fim da Idade Média, desenvolveu-se durante a Moderna, consolidou-se na Contemporânea e só nas últimas décadas é que começou a funcionar com pleno rigor.

Antes desse surgimento tardo-medieval, na Roma antiga houve um sistema complexo de nominação. O cidadão romano tinha três nomes (tria nomina):

  • prænomen: era o nome pessoal;
  • nomen: era o nome da gens;
  • cognomen: era o nome de certa estirpe (stirps) dentro da gens.

Esse sistema demonstra como evolui a necessidade de usar um ou mais nomes em certa sociedade. Diferentemente de outros povos indo-europeus, que tinham nomes compostos de duas raízes, como o helênico Ἀλέξανδρος (Aléxandros, de ἀλέξω (aléxō) 'defender' e ἀνήρ,ἀνδρός (anēr,andrós) 'homem', daí Alexandre) ou o germânico *Hlūdawīg (de *hlūd 'famoso' e *wīg 'batalha', daí Clóvis e Luís), os itálicos tinham nomes singelos, como o latino Lucius (de lux,lucis 'luz', daí Lúcio). Aquele mecanismo permite a formação de muitos nomes, ao passo que este gera um repertório mais reduzido. Foi, pois, o número pequeno de prænomina que ensejou a adoção de um segundo nome, o nomen gentilicium. A palavra gens,gentis deu gente em português, mas referia a um conjunto de pessoas que acreditava descender do mesmo antepassado e compartilhava certos costumes, aproximadamente o que hoje chamamos de clã.

No entanto, à medida que a população crescia e a recorrência de alguns prænomina se tornava distintiva de certas gentes, algumas alcunhas tornaram-se hereditárias, dando origem aos cognomina. Isso se desenvolveu desde o começo da República entre as gentes patrícias e propagou-se pelas gentes plebeias desde o século II a.C. Assim, César chamava-se Gaius e Cícero, Marcus; aquele pertencia à gens Julia e este, à gens Tullia; dentro da sua gens, aquele descendia dos Cæsares e este, dos Cicerones, daí os seus nomes completos: Gaius Julius Cæsar e Marcus Tullius Cicero, aportuguesados como Gaio (ou Caio) Júlio César e Marco Túlio Cícero.

Como o fim da República e o começo do Império são considerados a era áurea de Roma, os tria nomina foram tidos por convenção exemplar, mas nesse tempo o repertório dos prænomina ficara tão diminuto — os mais comuns não passavam de duas dezenas — que foram caindo em desuso. Além disso, o nomen era um signo da cidadania romana, de modo que a Constituição Antoniniana, do imperador Caracala, que estendeu tal cidadania a todos os homens livres do Império em 212, acelerou o retorno a um sistema de dois nomes: o prænomen rareou a ponto de se tornar excepcional a partir do século IV e nomina como Flavius e Aurelius (Flávio e Aurélio) vulgarizaram-se tanto que não pareciam mais gentilícios, mas sim pessoais. Ao mesmo tempo, o uso de cognomina, tirando proveito da sua origem epitética (Cicero, por exemplo, vem de cicer, que é o grão-de-bico, talvez porque certo ancestral dessa estirpe tinha uma verruga grande como essa semente), multiplicou-se. Por exemplo, o imperador Constantino e todos os seus filhos chamavam-se Flavius e o cognomen era que distinguia cada um: Constantinus, Constantius, Constans, aportuguesados como Constantino, Constâncio, Constante.

Assim, pelo fim do Império ocidental os romanos identificavam-se mediante um nome só, o que foi favorecido pelo cristianismo, pois abriu a antroponímia romana ao vasto repertório grego, como Theodosius (de Θεοδόσιος: θεός (theós) 'deus'; δόσις (dósis) 'dom', aportuguesado como Teodósio), nome do derradeiro imperador do mundo romano unido, o qual não era heleno, mas hispano. No Ocidente, isso foi reforçado pela dominação germânica após a queda do Império. O recurso regular a duas raízes, habitualmente referentes à guerra, tornava a antroponímia germânica muito produtiva. Por exemplo, dos 31 reis que os visigodos tiveram desde o fœdus ('aliança') de 418 até a invasão muçulmana em 711, apenas três nomes repetiram-se, cada um por duas vezes: Teodorico, Liuva e Recaredo. Esse é o estado de coisas que chegou até o século XI: uma inumerável profusão de nomes de origem germânica, empregada por toda a população, a maioria absolutamente desusada hoje em dia.

Plácito procedente do mosteiro de São Salvador de Moreira (915)
Plácito pelo qual Flaino e seus herdeiros, Trudildi, Vidisclum, Ariulfo, Honorigo, Leodemundo e Didagu, por intermédio deste, transfere a dotação da Igreja de São Salvador para Alvitu e Senorino, com os testemunhos de Bretus, Eldebredus, Vermudo, Trasmiru, Bellengo, Miro, Fafila e Lovegildo, no ano de 915 (do Mosteiro de São Salvador de Moreira, conservado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo e editado por António Emiliano em estudo de 2003). Observe-se a profusão de nomes, dos quais somente Didagu, hoje Diogo, permanece usual.

A antroponímia portuguesa começou a tomar forma no século IX: desde então, a documentação testemunha com progressiva frequência o uso de um segundo nome. Conforme Ana Isabel Boullón Agrelo em estudo de 1999, o nome único persistiu até meados do século XI e no XIII a nominação dupla já se tornara dominante. Esse segundo nome referia à filiação paterna ou à origem local ou tratava-se de uma alcunha. Portanto, não era como o sobrenome hodierno, mas um identificador individual. Isso dispensou que numa comunidade as pessoas precisassem de muitos nomes, pois se podiam distinguir o Afonso que era filho de Gonçalo (Afonso Gonçalves) e o Afonso que era filho de Rodrigo (Afonso Rodrigues), o Álvaro que morava perto do lago (Álvaro do Lago) e o Álvaro que morava perto do ribeiro (Álvaro Ribeiro), o Pedro que era valente (Pedro Valente) e o Pedro que parecia um pinto (Pedro Pinto). No corpus do estudo citado, que se estende do século VIII ao XIII, 84% dos segundos nomes são patronímicos, 13% são alcunhas e 3% são toponímicos.

Notícia de Fiadores (1175)
Nota de 1175, em que Pelagio Romeu lista os seus fiadores: Stephano Pelaiz, LectonPelai Garcia, Gundisalvo Menendici, Egeas Anriquici, Petro ConlaçoGundisalvo Anriquici, Egeas Moniici, Jhoane Suarici, Menendo Garcia, Petro Suarici  (do Mosteiro de São Cristóvão de Rio Tinto, guardada no Arquivo Nacional da Torre do Tombo e editada por Ana Maria Martins em estudo de 2007). Conhecida como Notícia de fiadores, trata-se de um dos textos mais antigos em português, ainda que em scripta muito conservadora. Observem-se os nomes duplos, que hoje seriam Paio Romeu, Estêvão PaisPaio Garcia, Gonçalo Mendes, Egas Henriques, Pedro Colaço, Gonçalo Henriques, Egas Moniz, João Soares, Mendo Garcia e Pedro Soares, além da alcunha Lecton, ou seja, Leitão.

Durante esse período, escrevia-se em latim, entre os tabeliões um latim muito arromançado. Duas opções de patronímico concorriam: o emprego do caso genitivo e o do sufixo -z. Por exemplo, Afonso, filho de Gonçalo, podia ser referido como Adefonsus Gundisalvi ou Adefonsus Gundisalviz; Rodrigo, filho de Álvaro, como Rodericus Alvari ou Rodericus Alvariz. Ainda que de modo bastante escasso, também se empregavam as palavras filius 'filho' e proles 'prole' com o genitivo (Adefonsus filius Gundisalvi, Rodericus proles Alvari) e certos nomes, como Afonso, resistiam ao sufixo patronímico: Pedro, filho de Afonso, era referido como Petrus Adefonsus.

Seja como for, é do sufixo -z — que apresenta variações na forma (aparece precedido das vogais a, i, o: -az, -iz, -oz) e na escrita (aparece com c ou z, seguido ou não de ie até com ou x: -ci, -z(i), -t, -x— que vêm os sobrenomes acabados em -es, como Álvares, Gonçalves, Rodrigues. De certo sobre a sua origem sabe-se apenas que é nativo da península Ibérica. Com efeito, a vacilação gráfica demonstra tentativas de transcrever a pronúncia medieval, que era /-ts/: Rodríguez soava /ro'dɾiɡets/ em todas as línguas ibero-românicas, salvo em catalão, em que se desconhece tal sufixo. Contudo, as mudanças fônicas acabaram levando à preferência do s na ortografia do português contemporâneo. Além disso, mesmo o consenso sobre a origem pré-romana deixa lacunas: como ficou latente ao longo do período em que vigeu a nominação única para emergir só no século IX permanece um mistério.

No Livro do Armeiro-Mor, cujo prólogo foi lavrado em 1509, somente quinze dos 287 brasões da realeza e nobreza portuguesas são vinculados a patronímicos, não por acaso todos identificados com o nome do armígero: Gabriel Gonçalves, Afonso Garcês, Pedro Rodrigues, João Garcês, Paio Rodrigues, Antão Gonçalves, Martim Rodrigues, Diogo Fernandes, João Lopes, André Rodrigues, Jorge Afonso, Rodrigo Esteves e Estêvão Martins. As exceções são os Manuéis e os Henriques, sabidamente as linhagens dos infantes castelhanos Manuel, filho do rei Fernando III, e Fernando Henriques, neto do rei Henrique II. Noutras palavras, à falta de um sobrenome epitético ou toponímico, o autor procurou patentear que tais armas pertencem às linhagens desses cavalheiros: Gabriel, filho de Gonçalo; Afonso, filho de Garcia; Pedro, filho de Rodrigo; etc.

Com efeito, a antroponímia e a heráldica parecem ter evoluído de modo interdependente ou, no mínimo, paralelo. A heráldica clássica, quando cada um podia assumir e legar armas independentemente do estamento social, corresponde ao período em que o segundo nome era um mero complemento, referente ao pai, ao lugar de nascimento ou moradia ou a outra condição pessoal. O momento em que os brasões se tornaram marcas de nobreza e honra (ou seja, durante o século XIV) coincidiu com a conversão desse segundo nome em identificador familiar e transmissível. A heráldica atesta que o fenômeno começou pelos sobrenomes epitéticos e toponímicos, com os quais se identifica a maioria das linhagens armoriadas mais antigas. Já a nominação patronímica, esta se desmantelou ao longo do século XVI: pouco a pouco, Rodrigues não identificava mais um filho de Rodrigo, mas uma linhagem começada por certo Rodrigo. É por isso que até então às vezes o sujeito é identificado não por dois, mas por três nomes, como Diogo Rodrigues Botilher, Pedro Lourenço de Guimarães, João Lopes de Leão, João Álvares Colaço, João Afonso de Santarém, Fernão Gomes da Mina, Gonçalo Pires Bandeira e João Fernandes do Arco no citado Livro do Armeiro-Mor. Nesse caso, o segundo nome ainda é um patronímico e o terceiro já é um sobrenome de origem epitética (Botilher, Colaço, Bandeira, Arco) ou toponímica (Guimarães, Leão, Santarém).

Em suma, apesar de o vínculo da nobreza com a antiguidade ser um lugar-comum na genealogia, o sobrenome é uma convenção plenamente moderna. A literatura genealógica menos rigorosa, produzida para satisfazer pretensões vaidosas, criou a ideia de que as pessoas de mesmo sobrenome descendem dos mesmos antepassados. Mas não são só os patronímicos que desmentem isso: assim como há várias famílias Rodrigues a partir de vários Rodrigos, há várias famílias Ribeiro a partir de vários ribeirinhos e várias famílias Valente a partir de vários alcunhados de valente.

Na verdade, até poucas décadas atrás, bastava a condescendência do tabelião para que qualquer um alterasse os seus sobrenomes. Um avô meu chamava-se Raimundo Linhares Xavier, mas como o pai abandonara a mãe quando ele era criança, ao alcançar a maioridade foi ao cartório e fez-se renomear Raimundo Nonato Linhares, compensando a supressão do sobrenome paterno com o acréscimo de um segundo nome. Houve muitos casos semelhantes por aí, e isso já sob a vigência do registro civil. Antes, isto é, de 1889 para trás, nada impedia que alguém tomasse o sobrenome que quisesse: bastava então a condescendência do pároco, responsável pelos assentos de batismo, casamento e óbito.

Ainda mais para trás, é fácil imaginar a quantidade de colonos que, no ímpeto de viver uma vida nova, alteraram os seus sobrenomes ao desembarcar no ultramar, ou, muito maiores, as quantidades de índios aldeados e africanos traficados que receberam forçosamente nomes e sobrenomes portugueses para serem integrados à colônia. Ao fim e ao cabo, convém corrigir: com poucas exceções e para além da memória familiar, as pessoas não têm o mesmo sobrenome; têm sobrenomes homófonos.