30/12/21

OS BRASÕES DO BRASIL COLONIAL: BELÉM

Se o brasão de Belém fosse um texto literário, certamente satisfaria bem ao gosto pelo barroco que predominava aquando da sua criação.

Na postagem de 16/12, contei como Aires da Cunha e João de Barros foram desventurados nas tentativas de ocupar as capitanias que tinham recebido em 1535: o primeiro morreu num naufrágio em 1536, durante a primeira tentativa de ocupação, e o segundo, endividado em 1570, após a segunda. Com efeito, estavam associados a um terceiro donatário, Fernão Álvares de Andrade, tesoureiro-mor do Reino, cuja capitania se estendia desde o rio da Cruz, hoje Coreaú, até o cabo de Todos os Santos, hoje a ponta oriental da ilha de Santana. Esses três capitães perfaziam a posse de quase toda a costa ao norte da baía da Traição, pois o navegador e o cronista possuíam, também conjuntamente, outro lote entre o dito cabo e a abra de Diogo Leite, hoje baía de Turiaçu. A porção restante, da angra dos Negros, hoje enseada do Iguape, ao dito rio da Cruz, pertencia a Antônio Cardoso de Barros, que teve igualmente um fim trágico: junto com o bispo Dom Pero Fernandes Sardinha, foi devorado pelos índios após um naufrágio em 1556.

Se supusermos que Antônio Cardoso de Barros trocou a sua capitania pela nomeação para provedor-mor do Brasil antes mesmo de embarcar com o governador-geral Tomé de Sousa em 1549 e que Fernão Álvares de Andrade, assim como os seus sócios, ficou afundado em dívidas após a expedição de 1536 e deve ter-se valido do seu lote para obter o perdão do rei, ao findar o século XVI todas as terras do rio Goiana para o norte estavam revertidas ao domínio real, não sem grande custo, já que se impunha expulsar os corsários franceses e subjugar os indígenas resistentes. Tanto que, rendido o invasor do Maranhão em novembro de 1615, Alexandre de Moura, comandante da frota que acudira Jerônimo de Albuquerque, nomeou Francisco Caldeira Castelo Branco capitão-mor do Grão-Pará e o despachou para guardar a costa até o rio Amazonas, conforme as ordens do governador-geral Gaspar de Sousa.

A jornada de Francisco Caldeira Castelo Branco levou dezoito dias e como transcorreu no tempo do Natal de 1615 para 1616, ele chamou Forte do Presépio à fortaleza que ergueu à margem oriental da baía de Guajará e a povoação que cresceu no entorno dela tomou o nome de Belém. Desde 1916, tem-se comemorado a fundação dessa cidade em 12 de janeiro, mas, tal como no caso de São Luís, essa data é uma convenção, pois ao começar 1619 a própria São Luís carecia de povoadores que assumissem os ofícios camarários. De fato, a câmara de Belém está atestada a partir de 1625 e só foi dotada de patrimônio em 1627. Seja como for, nasceu cidade em razão da sua posição estratégica, confirmada pela elevação a sé episcopal em 1720 e a cabeça do estado em 1751.

Brasão de Belém no Álbum de Belém (1902).
Brasão de Belém no Álbum de Belém (1902).

A menção às armas de Belém encontra-se à página 199 da História da companhia de Jesus na extinta província do Maranhão e Pará, do padre José de Morais, na edição de Cândido Mendes de Almeida (1860):

Por agora, quero acabar este capítulo com a breve notícia das armas com que se enobreceu em seus princípios esta ilustre cidade, que devendo estar gravadas em mármore, para eterno monumento da sua grandeza, apenas as encontramos, depois de muito estudo e diligência, em um dos antigos escritos do nosso cartório do Pará, que também os papéis são bronzes em que se perpetuam as mais plausíveis e ilustres memórias.
Foram, pois, as armas da cidade de Belém do Grão-Pará um escudo grande esquartelado, de uma parte do qual, em campo azul, se via um castelo de prata e nele um escudo de ouro com as quinas de Portugal, pendente de um trancelim de pedraria. Em cima do castelo, de ambos os lados, saíam dous braços, um oferecendo um cesto de flores, com a inscrição por baixo Vereat æternum; em outro, um cesto de frutas, com a inscrição Tutius latent; do outro lado, em campo de prata, um sol retrógrado, correndo do poente para o nascente, e a inscrição Rectior cum retrogradus, e logo outra, Nequaquam minima est, com um boi e uma mula por baixo, olhando para o mesmo sol.

Não é vilipendioso, mas perfeitamente técnico julgar que essas armas exemplificam uma heráldica decadente, pois se nota a função precípua de identificar muito desvirtuada por uma demasia de referentes. Se é preciso fazer uma exegese para entender um brasão, bom não há de ser. E por "bom" quero dizer 'acorde à arte heráldica'. Efetivamente, duas exegeses desse brasonamento sobressaem. A primeira é do professor e pintor Teodoro Braga e abre o livro A fundação da cidade de Nossa Senhora de Belém do Pará (1908):

Brasão d'armas da cidade de Nossa Senhora de Belém do Pará traz:
Esquartelado: no 1.º de azul com dois braços nus, enfrentados de carnação, tendo o da direita um cesto com frutas e a legenda Tutius latet [sic] e o da esquerda um cesto com flores e a legenda Ver est æternum, tudo ao natural; no 2.º de prata com um sol poente de ouro e a legenda Rectior cum retrogradus; no 3.º de azul com um castelo de prata sobre um terraço ao natural, carregado de um colar de pedrarias ao natural, tendo pendente um escudo de prata com cinco escudetes de azul postos em cruz e carregados cada um com cinco besantes do campo; no 4.º de azul com um boi contornado e uma mula, tudo ao natural, e a legenda Nequamquam [sic] minima est.

Esse brasonamento bastante livre foi antecedido por uma obra primorosa que Antônio José de Lemos, intendente municipal, encomendou ao fotógrafo Filipe Augusto Fidanza e que o livreiro Philippe Renouard publicou em Paris em 1902: o Álbum de Belém. Tanto na capa como à primeira página veem-se belos desenhos das armas municipais e, em seguida, um texto sobre elas que começa assim:

Atravessando quase três séculos, passando por sucessivas épocas de organização e de desordem, ileso no largo período monárquico, no período republicano, o brasão d'armas da cidade, adotado nos primeiros tempos coloniais pelo senado municipal, foi mantido por todos os governos até hoje.
Com a evolução do estado e na fase atual, o escudo é mais uma relíquia do passado do que um brasão d'armas. Os desenhos e pinturas, de reprodução em reprodução, conservaram até o presente a peça primitiva, com todos os respectivos emblemas, mas a tradição não a descreve, nem explica os pensamentos que presidiram a sua feitura.
Deste modo o arcaico escudo é também um enigma que se oferece ao historiador e ao arqueólogo.

Perceba, prezado leitor, que o segundo parágrafo contradiz o anterior, pois se todos os governos tivessem usado o brasão, não seria, em 1902, uma relíquia. Será que o conheceríamos se o Pe. Morais não tivesse cascavilhado um cartório à procura dele e se Mendes de Almeida não o tivesse divulgado ao editar o manuscrito desse missionário? Acho que não. Daí a dúvida: a ilustração do álbum foi feita com base nas reproduções que o texto cita ou na interpretação do único testemunho verbal expressamente para essa obra? A isto as fontes acessíveis não permitem responder, mas a cronologia sugere que o brasonamento de Braga pretendeu concertar o texto com essa imagem. Daí que onde o ilustrador do álbum pintou um céu, este tenha brasonado três quartéis de azul; onde aquele pintou paisagens para assentar o castelo e apascentar o gado, este brasonou um terraço ao natural. E assim se veio usando até a atualidade.

Brasão de Belém segundo José Wasth Rodrigues.

A segunda exegese foi feita pelo pintor José Wasth Rodrigues e foi incorporada por Clóvis Ribeiro em Brasões e bandeiras do Brasil (1933), junto com o respectivo desenho:

O que torna o memorial enigmático, o que desnorteia o leitor, a chave, enfim, é a primeira palavra da descrição: "esquartelado". Este termo será muito próprio se o tomarmos no sentido de indicar a existência de quatro grupos de figuras ocupando cada uma um quartel. É impróprio, porém, porque sugere imediatamente o esquartelamento do escudo em quatro partes, o que não acontece. Todos os heraldistas aceitam esta última hipótese como solução e então o brasão se torna incompreensível.
Se estivesse declarado que o escudo é "esquartelado em cruz", seria admissível a solução que geralmente lhe é dada. Mas, como isto não acontece, a divisão poderá ser outra.
Continuando a examinar o texto, notamos, em síntese, o seguinte: "de uma parte do qual, em campo azul, etc." e, mais adiante, "de outro lado, em campo de prata, etc.". Ora, como o autor só nomeia duas partes no escudo, é de se concluir que ele está dividido só em duas, porque se o estivesse em quatro, o autor indicaria as cores de mais duas partes, uma vez que se sentiu obrigado a indicar as de duas. Dedução lógica, já que as cores das diversas figuras estão também declaradas. Sendo, pois, dividido em duas partes, qual será a divisão: partido ou cortado? Pois em barra ou banda não pode ser, desde que de início já está esclarecida a existência de quatro grupos de figuras, cada uma correspondendo a um quartel, duas em cima e duas embaixo.
É partido. Partido, porque diz o memorial: "de uma parte, etc." e "de outro lado, etc.", o que só pode ser entendido por destra e sinistra. Se fosse cortado, não se diria "do outro lado", pois não se pode tomar a palavra "lado" como sendo ponta ou parte inferior do escudo.
Continuando a leitura da descrição de José de Morais, passemos às figuras: à destra, ou primeiro "se vê um castelo de prata e nele um escudo de ouro com as quinas de Portugal pendente de um trancelim de pedraria". Respeitamos a imposição de um escudo de ouro com as quinas de Portugal, pois não sabemos quais as intenções do autor ao dar esse metal ao escudete. "Em cima do castelo, de ambos os lados, saem dois braços: um oferecendo um cesto de flores, com a inscrição por baixo Verent æternum, em outro um cesto de frutas com a inscrição Tutius latent". Foi o que executamos fielmente, fazendo as letras em prata.
Passemos agora para a sinistra, ou segundo: "do outro lado, em campo de prata, um sol retrógrado correndo do poente para o nascente e a inscrição: Rectior cum rectrogradus [sic]". Sendo o campo desta parte em prata, não é admissível que o sol seja em ouro, a não ser que o texto nisso fosse categórico. Como não vem indicada a cor, fizemos o sol de goles, isto é, sombra de sol, sem olhos, sem boca e sem nariz, caminhando para a sua direita, que é o lado do nascente.
"...e logo outra Nequamquam [sic] minima est, com um boi e uma mula por baixo olhando para o mesmo sol". Os animais olham o sol, mais uma prova de que o sol deve estar na mesma divisão e não num outro quartel. Executamos exatamente como manda o texto, fazendo as letras em sable e os animais de sua cor.

A meu ver, a leitura de Wasth Rodrigues mostra-se muito mais coerente com o texto do Pe. Morais. Mas mesmo tendo solvido sagazmente a questão da palavra esquartelado, que pode dever-se a deficiência do autor em matéria heráldica, e tendo evitado os elementos espúrios — uma torre, em vez de um castelo, sobre um terrado e as legendas em filactérios — não resistiu a levar os animais a um pasto verdejante.

Brasão colonial de Belém.
Brasão colonial de Belém.

Como interpretar, então, "com um boi e uma mula por baixo"? Considerando o espaço do partido, parece-me fácil, ao menos da perspectiva heráldica: um sobre o outro. Mas é forçoso reconhecer que faz falta um desenho mais próximo à criação do brasão.

Na verdade, todo o conjunto à sinistra é enigmático: como fica um sol "retrógrado"? Pelo que pesquisei, o movimento dos planetas no céu é que, em certos momentos, retrograda, mas também os equinócios ao longo da eclíptica, em virtude da inclinação da Terra, ainda que leve aproximadamente 26 mil anos. Isso pode explicar a legenda Rectior cum retrogradus, isto é, 'Mais direito quando retrógrado': referência à posição "mais direita" do sol ao cruzar o equador celeste? Seja como for, em heráldica o sol — que ordinariamente tem rosto humano — ou está nascente, quando movente do ângulo destro do chefe, ou poente, quando movente do sinistro. Ainda assim, não se trata nem de um caso nem do outro, já que o texto especifica: "correndo do poente para o nascente". Daí que no meu desenho o tenha deslocado para a sinistra, o poente heráldico.

O elemento menos obscuro dessa parte do escudo é a legenda Nequaquam minima est, que foi tirada do Evangelho segundo São Mateus (2, 5-6): "[...] Sic enim scriptum est per prophetam: 'Et tu, Bethlehem terra Judæ, nequaquam minima es in principibus Judæ; ex te enim exiet dux, qui reget populum meum Israel'" ("[...] pois assim escreveu o profeta: 'E tu, Belém, terra de Judá, de modo algum és a menor entre as principais cidades de Judá, porque de ti sairá um príncipe que será o pastor do meu povo, Israel'"; grifos meus). Talvez queira dizer que Belém não seria de modo algum a menor entre as principais cidades da América portuguesa.

Em contrapartida, as legendas do primeiro partido não só precisam ser decifradas, mas também corrigidas, porque não existe em latim a palavra vereat. No desenho de Wasth Rodrigues consta verent, mas tampouco faz sentido: verare é um verbo arcaico e conjugado assim significa 'digam a verdade eterno'. A correção de Teodoro Braga é mais coerente não só na gramática, mas também em relação ao cesto de flores: Ver est æternum 'A primavera é eterna'. O texto completo, verbal e visual, parece dizer que a natureza tropical floresce eternamente, mas as suas riquezas (o cesto de frutas) ficam mais seguras escondidas (Tutius latent).

Enfim, com base neste estudo, brasono as armas coloniais de Belém como segue: partido, o primeiro de azul com um castelo de prata, de cujas ameias pende um trancelim de pedrarias ao natural, o qual sustém um escudete de ouro, carregado de cinco escudetes de azul, sobrecarregados de cinco besantes de prata e postos em cruz; o todo acompanhado em chefe de dois braços, um movente do flanco do escudo, segurando um cesto de flores, e o outro movente da partição, segurando um cesto de frutas, tudo ao natural; o conjunto da destra encima a legenda Ver est æternum e o da sinistra, Tutius latent, ambas em letras de prata; o segundo de prata com um boi e uma mula passantes ao natural, um sobre a outra, encimados da legenda Nequaquam minima est em letras de negro e acompanhados em chefe de um sol sinistrado de vermelho, o qual encima a legenda Rectior cum retrogradus, também de negro.

28/12/21

OS BRASÕES DO BRASIL COLONIAL: SÃO LUÍS (II)

O brasão colonial de São Luís é tão atrelado ao momento da sua feitura que foi apropriado criar outro e, num caso raro, o moderno superou o antigo.

Não deve ter sido difícil para os artesãos contratados esculpir uma pomba com um ramo de oliveira no bico sobre as portas e a casa de câmara e cadeia de Salvador, como testemunha o historiador Rocha Pita, que citei na postagem de 20/12, pois até uma criança consegue desenhar figuras tão singelas. Já o brasão colonial de São Luís, nem o escultor mais habilidoso saberia reproduzi-lo sem que lhe fosse fornecido um modelo. O próprio José Wasth Rodrigues, ao ilustrar Brasões e bandeiras do Brasil (1933), de Clóvis Ribeiro, errou ao partir o escudete da destra não com as três flores de lis de França moderno e as armas dos Estados Gerais das Províncias Unidas, mas com o semeado de França antigo e as armas do Reino dos Países Baixos, que se constituiu em 1815.

A isso soma-se a confissão do Pe. José de Morais na citação da postagem anterior: como não achou reprodução do brasão sobre o qual pretendia discorrer, teve de apelar ao procurador-geral das missões do Grão-Pará e Maranhão em Lisboa para buscar aí alguma notícia sobre ele. E acrescenta que, ainda assim, tal tarefa não foi fácil. Tudo sugere que essas armas foram pouco usadas ou mesmo nunca se usaram. De fato, a Coroa manteve-se tão alheia à heráldica municipal durante o Antigo Regime que essa alienação não só atrofiou o desenvolvimento dessa dimensão da armaria portuguesa, mas também fez com que vários concelhos, em meio à carência de símbolos, se apropriassem das armas reais. Segundo Miguel Metelo de Seixas na sua tese de doutorado (2011):

É possível que pela apropriação das insígnias régias os municípios pretendessem exprimir a relação privilegiada que mantinham com a Coroa, de cuja autoridade relevavam diretamente. Aplicando a mesma lógica aos concelhos que dependiam de determinado poder senhorial, verifica-se que estes adotaram por vezes as insígnias dos respetivos senhores, quer se tratasse de armas de família, de ordens militares, de ordens religiosas ou mesmo de empresas. De resto, era comum a figuração dos sinais identificativos do rei ou dos senhores nos principais símbolos da administração e da justiça locais: o pelourinho e a carta de foral. A transposição dessas insígnias para outras manifestações, como estandartes, selos e pedras de armas, pareceria natural. Mesmo que nessa passagem o sentido original da presença das insígnias régias ou senhoriais sofresse uma transmutação de peso: no pelourinho como na carta de foral, elas representavam a autoridade em cujo nome se exercia a justiça ou se promulgava o documento, ao passo que as demais manifestações deveriam ser propriamente identificativas do concelho.

Pessoalmente, hipotetizo que esta era a situação geral da América portuguesa em matéria de heráldica municipal. É certo que ainda estamos na metade desta série, mas os testemunhos que se contradizem quanto à origem de certo brasão, ainda que os coetâneos a acreditassem ao rei ou a um oficial régio, como no caso de Salvador; a falta de testemunhos coetâneos, como no caso do Rio de Janeiro; um testemunho que confessa pouco ou nulo uso das armas que noticia, como no caso de São Luís; e, acrescento agora, o testemunho da câmara de São Paulo, que ostentava as armas reais no seu estandarte e preservou um exemplar do século XVIII, guardado hoje no Museu Paulista; tudo me faz, por enquanto, tender a tal hipótese.

Proposta de brasão para São Luís em Armorial maranhense, de Antônio Lopes (Geografia e história, 1926).
Proposta de brasão para São Luís em Armorial maranhense, de Antônio Lopes (Geografia e história, 1926).

Seja como for, não convinha a São Luís manter as suas armas coloniais, pois se tinham muito sentido sob o domínio português, no Brasil independente dizer e mostrar que o direito de Portugal pesou mais que as forças da França e da Holanda tem pouco sentido como símbolo. Esse razoamento presidiu à criação das armas hodiernas dessa cidade graças ao artigo Armorial maranhense, que Antônio Lopes, professor, jornalista e inspetor-geral da Instrução Pública, deu a lume no primeiro número (1926) da Geografia e história, a revista do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão, do qual ele mesmo era sócio fundador:

Qual o brasão a adotar para São Luís? As suas armas antigas: eis a mais pronta resposta, que representa uma economia de esforço. Complicadas ou não, são as que lhe deram, há séculos, os seus habitantes.
Uma objeção pode surgir ao alvitre, solidamente baseada no fato de não ser o antigo escudo tradição consagrada pelo uso, pois, como declara José de Morais, nunca o usaram. Para estar de acordo com esta maneira de pensar, cumpre adotar novo brasão.
Desde que se começa a cogitar de novas armas aparece, porém, a dificuldade de aproveitar os símbolos das antigas: coroa, espada, balança, armas de Holanda, de Portugal, lises de França, letras, epígrafe. Basta a enumeração para desanimar.
Busquem-se, então, novos elementos, resolvendo em primeiro lugar a questão da forma.
Não sendo aconselhável a do brasão estadual, pode lançar-se mão de outra, que permita representar nas armas da cidade a posição da ilha, em que está situada, em relação ao território do Estado, inscrevendo num escudo, por exemplo, francês, antigo ou moderno, em chefe, um escudete.
Traçada a forma do escudo, seria de bom aviso orná-la descrevendo os fatos dominantes da história da cidade: fundação; restauração definitiva e consequente integração na unidade brasileira; lutas e sacrifícios do povo pelas suas garantias, representadas no episódio do Bequimão, o mais notável da vida municipal; irradiação intelectual numa fase da vida nacional.
Seria tudo isso representado colocando-se nas armas: no escudete, parte superior, em ouro, as três naus da expedição francesa com flores de lis nas velas, e na parte inferior, as quinas de Portugal, em azul; no escudo, algo que afirme a democrática aspiração de liberdade (a simples palavras libertas ou a data MDCLXXXV do desenlace da luta popular contra o monopólio) e o valor da inteligência (três abelhas de ouro, que são também, em heráldica, os símbolos da esperança, ou a figura de Palas Ateneia, protetora de Atenas, ou ainda melhor sete estrelas de ouro representando as figuras primaciais do movimento conhecido na história da literatura brasileira pela denominação Grupo Maranhense, a saber: Gonçalves Dias, João Lisboa, Odorico Mendes, Gomes de Sousa, Sotero dos Reis, Antônio Henriques Leal e Belarmino de Matos).

Com efeito, em abril do mesmo ano a câmara de São Luís passara uma lei, a de número 362, autorizando a intendência a adotar um brasão para o município, o que esta levou a cabo por decreto em 31 de dezembro. Não encontro os textos dessas normas, mas a comparação do desenho que acompanha a proposta de Antônio Lopes com o que a prefeitura usa deixa ver poucos ajustes: as estrelas foram postas como o aglomerado das Plêiades, a data foi movida do campo para um listel e as naves francesas deram lugar a flores de lis.

Brasão de São Luís (desenho usado pela prefeitura, disponível na Wikimedia Commons).
Brasão de São Luís (desenho usado pela prefeitura, disponível na Wikimedia Commons).

Na verdade, digo que a prefeitura usa esse desenho (daqueles que se já foram bonitos um dia, estão muito estragados pelas redigitalizações) porque figura na bandeira municipal. O executivo ludovicense ainda é adepto da má prática da marca de gestão, ao passo que o legislativo converteu as armas municipais numa marca de forma tão infeliz que nem vale a pena comentar os evidentes equívocos. Tudo isso é uma pena, porque essas armas superam as suas antecessoras coloniais sob qualquer aspecto e merecem uma boa nota no conjunto da armaria nacional.

Proposta de adequação para o brasão de São Luís: de azul com sete estrelas de prata, postas como as Plêiades, acompanhadas de um escudete partido de França moderno e Portugal antigo, firmado em chefe.
Proposta de adequação para o brasão de São Luís: de azul com sete estrelas de prata, postas como as Plêiades, e um escudete partido de França moderno e Portugal antigo, firmado em chefe.

Assim, atrevo-me a acabar esta postagem fazendo uma proposta de adequação para o brasão de São Luís: de azul com sete estrelas de prata, postas como as Plêiades, e um escudete partido de França moderno e Portugal antigo, firmado em chefe. Embora a troca das naves pelas flores de lis tenha sido bastante interessante, o campo de verde e o alinhamento em barra ficaram muito estranhos. Entendo que o escudete queira evocar conjuntamente a França Equinocial e a conquista portuguesa, então o expediente mais adequado da perspectiva heráldica é parti-lo, o primeiro de azul com três flores de lis de ouro, que é de França moderno (em contraposição ao semeado das mesmas lises, que é de França antigo), e o segundo de prata com cinco escudetes de azul, carregados de cinco besantes do campo e postos em cruz, que é de Portugal antigo (em contraposição a isto mesmo com a bordadura de vermelho, carregada de sete castelos de ouro, que é de Portugal moderno). Que a cor do primeiro partido do escudete repita a do campo não é defeituoso, presumindo que por isto se tenha escolhido o verde.

26/12/21

OS BRASÕES DO BRASIL COLONIAL: SÃO LUÍS (I)

O brasão colonial de São Luís testemunha uma heráldica distante da clássica, em que mais do que identificador o brasão é uma mensagem sobre o poder.

Tanto o brasão colonial de São Luís como o de Belém estão descritos na mesma crônica, a História da Companhia de Jesus na extinta província do Maranhão e Pará, escrita pelo padre José de Morais em 1759 e editada pelo jurista Cândido Mendes de Almeida em 1860. Faz todo o sentido.

Primeiro, faz muito sentido que uma mesma obra refira aos brasões dessas duas cidades porque ambas encabeçaram as circunscrições que abrangeram a porção setentrional da América portuguesa. O estado do Maranhão foi criado em 1621 e estendia-se do cabo de São Roque para cima. Em 1655, foi renomeado como estado do Maranhão e Grão-Pará e, em virtude da vinculação da capitania do Ceará ao estado do Brasil pela mesma época, o limite foi deslocado até o delta do Parnaíba. Em 1751, com a transferência da capital de São Luís para Belém, inverteu-se a denominação: estado do Grão-Pará e Maranhão. Em 1772, o governo-geral de São Luís foi restabelecido pela cisão do território em dois estados: o do Maranhão e Piauí a leste e o do Grão-Pará e Rio Negro a oeste. O primeiro chegou ao fim em 1811, quando o governo do Piauí se tornou autônomo, mas o segundo persistiu até a criação do reino do Brasil em 1815, formalmente até a promulgação da Constituição portuguesa de 1822.

Segundo, faz sentido que servindo de sede a um governo-geral e de sé a um bispado, tenha cada uma dessas cidades assumido um dos poucos brasões do Brasil colonial. Na verdade, Brasil colonial é mera convenção historiográfica, pois o Maranhão e o Grão-Pará não tinham nenhuma ligação administrativa com o estado do Brasil. As próprias dioceses de São Luís (1677) e Belém (1720) não foram sufragâneas da arquidiocese de Salvador, mas sim da arquidiocese de Lisboa, depois patriarcado, até 1828. Fazendo mais uma comparação com a América espanhola, assim como os vice-reis da Nova Espanha, do Peru, da Nova Granada e do Rio da Prata respondiam diretamente ao Conselho das Índias, os governadores-gerais do Maranhão e do Grão-Pará faziam-no à Secretaria de Estado, depois à dos Negócios da Marinha e Ultramar, assim como o do Brasil. O que difere a América portuguesa é a sua unificação e elevação a reino pouco menos de sete anos antes da sua separação e independência.

Com efeito, a conquista do Maranhão seguiu diretamente os acontecimentos que garantiram o domínio português desde Sergipe até o Rio Grande: a eliminação do corso francês e a sujeição da resistência indígena, às quais venho referindo desde a postagem de 23/04 e ao longo da série sobre os brasões do Brasil holandês. Assim, como os portugueses só tinham assegurado a costa até Natal ao findar o século XVI, ao norte os franceses continuaram as suas atividades com a amizade de certos povos tupis de tal modo que, enquanto a presença portuguesa no Ceará mal se sustentava (leia-se a postagem de 22/11), empreenderam o estabelecimento de uma colônia — a França Equinocial — no lugar onde já havia uma feitoria desde 1594. Sob o comando de Daniel de la Touche, senhor de La Ravardière, levantaram aí uma fortaleza, que nomearam São Luís (Saint-Louis), onde hoje fica o Palácio dos Leões, sede do governo maranhense, e aos 8 de setembro de 1612 chantaram uma cruz para marcar a soberania de Sua Majestade Cristianíssima.

No entanto, assim como a França Antártica, o empreendimento topou com uma forte reação desde cedo, já em outubro de 1614. A expedição foi capitaneada por Jerônimo de Albuquerque, o mesmo que fundara Natal em 1599, ante quem em novembro de 1615 La Ravardière capitulou. Embora se venha comemorando a fundação de São Luís em 8 de setembro desde o começo do século passado, o município constituiu-se, a rigor, em 1619, quando se instalou a sua câmara. Conservou o nome da fortaleza francesa não mais em homenagem a Luís XIII, mas a Luís IX (1214-70), canonizado em 1297 e seu padroeiro.

Não se sabe a data em que se instalou a câmara de São Luís porque a documentação primitiva se perdeu durante a invasão holandesa. Os holandeses tomaram essa cidade em novembro de 1641 sob o comando do almirante Jan Lichthart, mas o seu domínio foi tão breve quanto o francês, pois enfrentaram tal oposição dos colonos que em fevereiro de 1644, portanto mais de um ano antes da Insurreição Pernambucana, tiveram de evacuar a ilha.

Brasão colonial de São Luís.
Brasão colonial de São Luís.

O brasão colonial de São Luís é, precisamente, uma apologia à vitória portuguesa sobre os invasores francês e holandês. Com efeito, a padroeira da cidade é Nossa Senhora da Vitória. Eis a descrição dessas armas segundo o citado Pe. José de Morais (p. 182-183):

Quero rematar este livro com a breve notícia das armas da cidade de São Luís do Maranhão, a quem a injúria do que devia ser o maior cuidado de seus moradores deu não pequeno trabalho ao nosso padre procurador-geral em Corte, Bento da Fonseca, para lhas descobrir em seus livros, pelas não terem primeiro gravadas nos mármores para eterna lembrança dos vindouros.
São, pois, as armas próprias desta cidade, cabeça em outro tempo do estado, um escudo coroado, no campo do qual se vê um braço armado de uma espada, de cuja mão, como de Astreia, pendem umas balanças a que servem de conchas dous escudos menores. Em um, que pesa menos, se vê as flores de lis e armas de Holanda, com estas letras: Vis; no outro, que pesa mais, se vê as armas de Portugal com as mesmas letras, Jus, e por baixo logo a epígrafe que diz Præponderat, porque pesou mais o jus, ou a justiça das armas de Portugal, que o vis, ou força das de França e Holanda, com imortal desempenho do valor português e não menor glória da valentia daqueles ilustres moradores do Maranhão.

De entrada, o leitor atento terá percebido que, sendo único esse testemunho, não é possível reproduzir essas armas sem tomar uma dose grande de liberdade poética, porque, como é característico desse gênero textual, o autor se cinge a descrever as figuras em linguagem chã, negligenciando pormenores como a disposição e os esmaltes. Assim, no máximo podem-se supor algumas coisas:

  • Como ordinariamente tudo se volta para a destra, pode-se supor que o braço fique movente do flanco sinistro;
  • mas para preencher todo o campo, pode-se supor que a espada fique levantada;
  • se as armas da França e da Holanda dividem o mesmo escudete, pode-se supor que este esteja partido dessas armas, ou melhor, das armas reais francesas e daquelas dos Estados Gerais das Províncias Unidas, tal como se ordenavam no século XVII;
  • levando em conta as cores dos escudetes, pode-se supor que o campo seja de metal (prata?);
  • e levando em conta o gosto da época, pode-se supor que o braço, a espada e a balança tenham as suas cores naturais, isto é, carnação, a cor do aço e a do bronze ou latão;
  • as letras podem ter qualquer cor, mas o negro é, sem dúvida, a menos marcada.

A propósito, a oração latina que as palavras formam contém um erro: o verbo præponderare quer dizer 'pesar mais' e é regido pelo caso ablativo. Como vis é o nominativo singular, o certo é Vi jus præponderat, ou seja, 'O direito pesa mais que a força'. Em suma, o meu "brasonamento interpretativo" fica assim: de prata com um braço movente do flanco sinistro, segurando uma espada levantada e uma balança, tudo ao natural; à balança servem de pratos dois escudetes, o da destra, que pesa menos, partido de França moderno e das armas das Províncias Unidas, e o da sinistra, que pesa mais, carregado das armas de Portugal; o escudete da destra encima a palavra Vi, o da sinistra a palavra Jus e o todo a palavra Præponderat, todas em letras de negro; timbre: coroa real antiga. Em tempo, timbrei o escudo com coroa porque assim consta na descrição do Pe. José de Morais ("um escudo coroado"), real porque a titular das armas é uma cidade e antiga porque é raríssimo o uso da coroa fechada na heráldica municipal portuguesa do Antigo Regime.

Como esta postagem já se alongou, desdobrarei o tópico em dois para, na próxima, tratar das armas ludovicenses hodiernas.

24/12/21

OS BRASÕES DO BRASIL COLONIAL: RIO DE JANEIRO (II)

O estudo da heráldica municipal brasileira torna-se em certos casos quase arqueológico.

À medida que avancei do emblema de 1896 para as armas hodiernas do Rio de Janeiro, deparei-me com tal vacuidade documental que tive de parar a escrita, voltar à pesquisa e montar um novo quebra-cabeças, cuja solução merece postagem à parte.

Retomando o fio da meada, os emblemas que Clóvis Ribeiro em Brasões e bandeiras do Brasil (1933) toma por brasões do Rio em 1826, 1858 e 1893 podem ser meras combinações da divisa concelhia — o molho de setas — com a figura principal das armas imperiais — a esfera armilar —, de modo que à pergunta "por que a municipalidade ficou em dúvida?", ensejada pelo testemunho de Eduardo Prado, citado na postagem anterior, se responderia "porque em 1896 ela debateu e levou a cabo a oficialização das armas municipais". E como estas não apresentavam sequer um escudo (a não ser que, com boa vontade, se aceite a vela de navio como campo), segue-se que até 1963 o Rio não possuiu verdadeiramente um brasão.

Cabe lembrar que em 1763 essa cidade sucedeu a Salvador como cabeça do estado do Brasil, de 1808 a 1821 serviu de sede à corte da monarquia portuguesa e desde 1822 até 1960 foi a capital nacional, primeiro na condição de município neutro (1834-91), depois distrito federal. Quando este foi transferido para Brasília, o artigo 4.º das disposições transitórias da Constituição de 1946 previa compensar a antiga capital convertendo-a numa cidade-estado: o estado da Guanabara. No entanto, à ditadura militar imperante em 1974 conveio fundir a partir do ano seguinte a Guanabara ao estado do Rio, movendo a capital deste de Niterói para a cidade do Rio.

Várias fontes disponíveis na Internet, dentre as quais um trabalho de Isabella Perrotta (2013), expõem, verbalmente ou por imagens, que o emblema de 1896 perdurou até 1957. Para este ano, dá-se um brasão idêntico ao vigente. Segue-se então que a única particularidade das armas cariocas durante a existência do estado da Guanabara seria a estrela de prata sobreposta à coroa mural. O problema é que em parte alguma se acha ato legal ou infralegal referente a essa versão de 1957. Achei, isto sim, duas peças que, solvendo, ao que parece, o quebra-cabeças, sugerem ter havido, mais uma vez, prejulgamento ante a insuficiência documental.

Brasão do estado da Guanabara (cartão vendido pelo leiloeiro Alberto Lopes em 2020).
Brasão do estado da Guanabara (cartão vendido pelo leiloeiro Alberto Lopes em 2020).

A primeira dessas peças é um "plástico" vendido no ano passado pelo leiloeiro Alberto Lopes. Nele vê-se o emblema de 1896 com o nome Guanabara. A não ser que seja um baita erro, demonstra que tal emblema continuou a ser usado pelo novo estado até 1963. Nesse ano, sim, passou-se uma lei, a de número 384, de 23 de outubro, que "atualiza o brasão de armas do Estado da Guanabara". Mesmo sem constar em nenhuma base ou compilação online, é possível topar com uma citação dela aqui e ali. Por sorte, o mesmo leiloeiro, também no ano passado, vendeu um cartão que traz a reprodução do brasão na frente e o texto da lei no verso, cujo artigo primeiro dispõe o seguinte:

O atual brasão de armas do Estado da Guanabara passará a ter a seguinte composição heráldica: escudo português, em campo azul, cor simbólica da lealdade, esfera armilar manuelina, combinada com as três setas que supliciaram São Sebastião, padroeiro da Cidade, tudo de ouro, tendo ao centro o barrete frígio, símbolo do regime republicano. Justificando a cidade capital, encimando o escudo, a coroa mural de cinco torres de ouro, tendo sobre a torre central uma estrela de prata, pousada sobre o arco inferior da base da coroa, símbolo de unidade federativa. Como suportes, dois golfinhos de prata, um à destra, outro à sinistra, simbolizando cidade marítima. O da destra tem um ramo de louro e o da sinistra, um ramo de carvalho, representando, respectivamente, a vitória e a força.

Pessoalmente, brasonaria assim: de azul com uma esfera armilar de ouro, atravessada por três flechas enfeixadas do mesmo, e um barrete frígio de vermelho, brocante sobre a esfera; timbre: coroa mural de cinco torres de ouro; suportes: dois golfinhos de prata, o da destra sobreposto a um ramo de louro e o da sinistra, a um ramo de carvalho. Não obstante, apesar de misturar brasonamento e comentário simbológico, é notável que um conhecimento suficiente da armaria presidiu à redação da dita lei. A legenda do desenho na frente do cartão reforça essa impressão:

BRASÃO DO ESTADO DA GUANABARA
Atualizado pela Lei n.º 384, de 23 de outubro de 1963, promulgada pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da Assembleia Legislativa, Deputado Raul Brunini, em virtude do projeto do Senhor Deputado General Frederico Trotta, membro titular do Instituto Histórico e Geográfico da Cidade do Rio de Janeiro.
Desenho de Alberto Lima.

Parece inverossímil que o concurso da iniciativa de um deputado intelectual com o serviço de um heraldista se tenha cingido ao acréscimo de uma estrela. O conjunto dos dados mostra ser mais razoável supor que a própria criação do estado ensejou a "atualização" do emblema de 1896, a qual, sob a perícia de Alberto Lima, está mais para correção ou mesmo criação de armas novas. De fato, ele é o autor do desenho oficial, registrado sob o código CP/AL/CX14/P04 no catálogo da sua coleção particular, guardada no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.

Mas nem tudo está solvido, pois a gente guarda a surpresa maior para o final. Após a fusão dos estados, a cidade do Rio, novamente município, depôs a estrela das armas da Guanabara e continuou a usá-las, até hoje, sem jamais regularizar essa modificação nem a titularidade! Em 2004, o vereador Edson Santos propôs um projeto de lei, o de número 2.178, para remediar essa situação, mas não prosperou. Isso mostra a que ponto chega o desleixo do poder público brasileiro nestas questões.

Marca atual da prefeitura do Rio de Janeiro (imagem disponível no portal da instituição).
Marca atual da prefeitura do Rio de Janeiro (imagem disponível no portal da instituição).

Ora, do que adianta honrar o brasão redesenhando-o cada vez que uma gestão recém-eleita adota uma identidade visual nova se uma busca por uma mera resenha com uma reprodução de estilo convencional em fonte da prefeitura ou da câmara municipal dá em coisa alguma? Com efeito, no caso das armas cariocas as reproduções desse estilo que se encontram por aí e na única fonte oficial deixam ver ainda o desenho original de Alberto Lima, cada vez mais enfeado por sucessivas digitalizações.

22/12/21

OS BRASÕES DO BRASIL COLONIAL: RIO DE JANEIRO (I)

Se a heráldica é uma ciência, então a sua abordagem histórica precisa partir de testemunhos documentais.

No que respeita à documentação, o brasão colonial do Rio de Janeiro é o contrário daquele de Salvador. Com efeito, seria ideal abordar os dois casos conjuntamente; faço-o em duas postagens por adequação ao blog. Assim, na anterior pus que o testemunho do historiador Rocha Pita sobre o uso das armas soteropolitanas goza de grande autoridade porque ele foi vereador da cidade. Menor crédito merece, todavia, o que diz sobre a origem e o significado dessas armas.

Segundo Rocha Pita, foi o próprio rei quem concedeu armas à cidade da Bahia (assim a chama porque, efetivamente, as demais povoações da capitania eram vilas) e as figuras simbolizam atributos pessoais de Dom João III: amor e serenidade. Se isso não for mito  diga-se, a propósito, bem ao gosto da época , soa muito como um. Ora, o cronista Gabriel Soares narra que quem deu o brasão foi Duarte da Costa ao assumir o governo-geral em 1553. Mesmo admitindo que, no fim das contas, todo oficial da Coroa agia como se intuísse a vontade régia, daí precisamente a expressão "enquanto Sua Majestade não mandar o contrário", o funcionamento mesmo da heráldica municipal portuguesa no Antigo Regime lança dúvidas sobre essas narrativas.

Mais uma vez, terei de remeter o paciente leitor à postagem anterior. Note-se aí que não hesitei em atribuir ao soberano a concessão de todos os brasões hispano-americanos que mencionei. É que não há margem para questionamento, já que para tal fim se passavam reales cédulas e estas estão guardadas em arquivos ou transcritas em compilações. No concernente ao controle estatal, as heráldicas castelhana e portuguesa eram exatamente o inverso uma da outra. Ainda que por toda a parte durante a Idade Moderna o brasão se tenha tornado uma marca de nobreza, somente nalguns países o estado pretendeu controlar a heráldica. Assim, enquanto em Castela a escassa legislação se cingiu ao uso das armas reais (1480) e dos coronéis (1586), em Portugal o sistema todo foi regulado pelas próprias Ordenações do Reino e posto sob a regência do Juízo e Cartório da Nobreza. Isto em matéria de armaria gentilícia.

Na heráldica municipal, enquanto os monarcas castelhanos honraram as capitais dos reinos meridionais, acrescentando a famosa bordadura composta de Castela e Leão às suas armas, pelo menos desde a segunda metade do século XIV e concederam armas novas a concelhos tanto na península como no ultramar desde as conquistas de Granada e da América (1492), a Coroa portuguesa entendia que a assunção e o uso de insígnias fazia parte das prerrogativas que a autonomia municipal garantia. Daí que as concessões documentadas mais antigas sejam tão recentes quanto a monarquia constitucional. Como resume Miguel Metelo de Seixas na sua tese de doutorado (2011):

Havia até então existido, é certo, algumas alusões a armas de concelhos concedidas ou acrescentadas por reis de Portugal. Mas não passavam de relatos mais ou menos míticos, desprovidos de suporte documental; e mesmo que tal existisse, seriam sempre casos esporádicos. A verdade é que, até ao século XIX, a Coroa evitara imiscuir-se num assunto que não considerava do seu foro. As insígnias identificativas dos concelhos — de cuja origem se havia, na maior parte dos casos, perdido a memória —, eram assumidas pelas entidades representadas sem necessidade de confirmação ou de sancionamento por parte do rei e dos seus oficiais competentes em matéria de armaria. Nem o poder central promovia qualquer ingerência no domínio da escolha das armas municipais, nem os concelhos procuravam obter a aprovação da Coroa para os sinais que usavam para sua identificação.

Eis a razão por que houve tão poucos brasões no Brasil colonial e mesmo destes as notícias são obscuras, às vezes insuficientes, como é o caso das pretensas armas do Rio de Janeiro. Talvez o estatuto capitalino que essa cidade acabou ganhando tenha levado à atribuição das armas que passo a analisar.

Com efeito, não foi à toa que pelo breve tempo em que o estado do Brasil teve dois governos-gerais (1572-78), um permaneceu em Salvador e o outro foi instalado no Rio de Janeiro: as histórias das suas fundações são muito semelhantes. Em ambos os casos, à Coroa interessava assegurar o domínio de um grande porto natural, onde cabiam as maiores armadas, por isso fundou uma cidade, o que impunha a jurisdição régia, apesar de o território pertencer a um donatário: neste caso, Pero Lopes de Sousa, segundo capitão de São Vicente. Não obstante, no "rio de Janeiro" essa providência urgiu mais que na baía de Todos os Santos, pois à ferocidade da resistência indígena se somava desde 1555 a empresa francesa de estabelecer aí uma colônia: a França Antártica, cuja fortaleza ficava na ilha que tem hoje o nome do seu pioneiro: Nicolas Villegagnon. Embora o governador-geral Mem de Sá a tivesse conquistado menos de cinco anos depois, os franceses fugiram para as matas e remanesceram entre os tamoios. Uma segunda expedição foi, então, despachada e ao 1.º de março de 1565, na praia onde fica hoje a Fortaleza de São João, Estácio de Sá, capitão dessa expedição e sobrinho do governador-geral, fundou a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. A guerra seguiu até 1567 e ao seu fim o próprio fundador pereceu, assim como o santo padroeiro, de uma flechada. A povoação moveu-se, então, para o morro depois dito do Castelo, do qual resta hoje a Ladeira da Misericórdia.

Insígnia colonial do Rio de Janeiro: três flechas enfeixadas e atadas.
Insígnia colonial do Rio de Janeiro: três flechas enfeixadas e atadas.

Ora, São Sebastião tem um atributo icônico bem estabelecido: um molho de setas, que se veem nas armas da cidade de Ponta Delgada e da Vila de São Sebastião, ambas no arquipélago dos Açores. Segundo Adolfo de Varnhagen, visconde de Porto Seguro, na sua História geral do Brasil antes da sua separação e independência de Portugal (1877, p 303), estas foram, precisamente, as "armas" do Rio de Janeiro:

À colônia desde logo o seu povoador deu a categoria de cidade, denominando-a de São Sebastião [...]. Por armas lhe concedeu um molho de setas, alusivas às que haviam servido ao suplício do santo invocado e, quem sabe, se às apreensões que teria dos que, começando por ele, viriam a cair vítimas de frechadas até o final triunfo da civilização nesta terra. (grifo meu)

Que essa referência não especifique nada é um problema verdadeiramente pequeno ante o fato de que é a mais antiga às armas do Rio de Janeiro. Mesmo considerando a primeira edição da obra (1854), é demasiado vaga e tardia para um brasão que se diz remontar à fundação da cidade.

Combinação da insígnia colonial do Rio de Janeiro com a esfera armilar.
Combinação da insígnia colonial do Rio de Janeiro com a esfera armilar.

Para alcançar a segunda referência, saltamos a 1890: trata-se do artigo A bandeira nacional, que Joaquim Norberto de Sousa Silva publicou na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo LIII, parte I, 1890, p. 250: "A esfera que o rei Dom Manuel tomou para o seu brasão d'armas foi dada por armas à cidade do Rio de Janeiro, com as três setas de São Sebastião". Além de não suprir as deficiências da primeira referência, aumenta a problemática, pois apõe mais uma figura: a esfera armilar. E para quem supuser que o visconde de Porto Seguro se enganou ao omiti-la, deixo a terceira referência, contida numa publicação também intitulada A bandeira nacional, esta um livro de Eduardo Prado (1906, p. 16): "Há poucos anos, a municipalidade do Rio de Janeiro, achando alguns desses selos, ficou em dúvida sobre se as armas da cidade eram as setas de São Sebastião ou a esfera armilar. Aquelas eram as da cidade; esta, as do Brasil".

Página 193 de Brasões e bandeiras do Brasil (1930), de Clóvis Ribeiro.
Página 193 de Brasões e bandeiras do Brasil (1930), de Clóvis Ribeiro.

Foi desses selos, suspeito eu, que José Wasth Rodrigues desenhou os emblemas que ilustram a página 193 de Brasões e bandeiras do Brasil (1930), cujo autor, Clóvis Ribeiro, os explica assim: "Anteriormente, o Distrito Federal possuiu outros brasões, adotados respectivamente em 1826, 1858, 1889 e 1893, conforme se vê dos desenhos que reproduzimos fielmente de publicações oficiais da prefeitura carioca. Destes, só o de 1858 é aproveitável, mas todos estão compostos com infração das regras de heráldica". À exceção daqueles de 1889 e 1896, os demais trazem a esfera armilar rematada do molho de setas. Quanto ao de 1889, talvez nem seja do município, mas uma interpretação das armas nacionais recém-assumidas pela República (como argui na postagem de 22/02). O de 1896 é, de fato, o primeiro que foi adotado oficialmente, mediante o Decreto n.º 312, de 1.º de agosto, mas em vez de se assentarem sobre um escudo as figuras — agora a esfera atravessada pelas setas enfeixadas e um barrete frígio sobreposto —, assentaram-se sobre uma vela de navio.

Todos estes dados levam-me a duvidar muito de que o Rio de Janeiro tenha possuído um brasão durante o período colonial e mesmo o imperial. E se isto parecer herético ao improvável leitor, será porque José Wasth Rodrigues desenhou um escudo de vermelho com uma esfera armilar de ouro, atravessada por três flechas enfeixadas do mesmo, para o citado Brasões e bandeiras do Brasil e, desde então, se veio reproduzindo esse desenho sem nenhuma crítica. Contudo, está claríssima a insuficiência documental.

Estandartes da câmara do Rio de Janeiro, segundo Clóvis Ribeiro (Brasões e bandeiras do Brasil, 1933).
Estandartes da câmara do Rio de Janeiro, segundo Clóvis Ribeiro (Brasões e bandeiras do Brasil, 1933).

Na minha opinião, o visconde de Porto Seguro andou muito perto dos fatos, pois se interpretarmos que o molho de setas eram não as armas, mas a insígnia do Rio de Janeiro, resolveremos vários problemas. Com efeito, na mundivisão portuguesa do Antigo Regime fazia muito sentido que um concelho se identificasse pelo atributo icônico do seu orago. A câmara de Olinda, por exemplo, usava o mundo alusivo ao Santíssimo Salvador (leia-se a postagem de 23/04). Na verdade, o estandarte da câmara carioca trouxe o próprio ícone de São Sebastião ao menos desde 1808, salvo durante o primeiro império, quando usou da bandeira nacional, até 1889, tudo segundo o mesmo Clóvis Ribeiro na sua obra citada. Confirmam esta hipótese duas reproduções do molho de setas a modo de divisa: no medalhão que orna o frontispício da Santa Casa da Misericórdia, de 1868, em que figura entre o escudo dessa instituição e o nacional, e no teto do Salão Nobre do Colégio Pedro II, de 1875, em que timbra o escudo nacional.

Gostaria de acabar esta postagem mostrando as armas hodiernas do Rio e dizendo algo sobre ele, mas, mutatis mutandis, a falta de registros verbais e visuais é comparável à que compromete o pretenso brasão colonial, de modo que terei de continuar na próxima postagem.

20/12/21

OS BRASÕES DO BRASIL COLONIAL: SALVADOR

Os raros brasões de que se tem notícia durante o domínio português na América merecem um estudo criterioso das fontes textuais.

Ao fim do século XVI, Santo Domingo (1508), Porto Rico (1511), Cuba (1517), a Cidade do Panamá (1521), a Cidade do México (1523), a Cidade da Guatemala (1532), Lima (1537), Quito (1541), Bogotá (1548), Santiago do Chile (1552), Buenos Aires (1590), Caracas (1591) e várias outras povoações das Índias de Castela já tinham brasões, todos concedidos pelos seus monarcas, como Carlos López-Fanjul de Argüelles compilou em artigo de 2016. Nada mais diferente da América portuguesa, mesmo durante a União Ibérica (1580-1640).

Com efeito, durante todo o domínio português na América, somente um brasão teve um uso bem documentado: o de Salvador. Dois, os de São Luís e Belém, estão descritos numa crônica. Outros dois, os de Cuiabá e Vila Bela da Santíssima Trindade, foram, excepcionalmente, ordenados nos autos das suas fundações. Um sexto, o do Rio de Janeiro, tem sido aceito pela literatura heráldica nacional com insuficiente crítica, a meu ver. Nesta postagem, abordo o primeiro.

Salvador passou pelos três momentos iniciais da colonização. Durante o primeiro, a exploração da costa, Diogo Álvares naufragou diante da barra do rio Vermelho entre 1509 e 1511 e, com o nome de Caramuru, viveu entre os tupinambás, casou com Paraguaçu, filha de um principal, batizada Catarina do Brasil, e morou no sítio onde fica hoje o bairro da Graça, cuja igreja é sucessora do oratório primitivo que fez aí. Durante o segundo, a doação das capitanias hereditárias, Francisco Pereira Coutinho recebeu o lote entre a foz do São Francisco e a baía de Todos os Santos em 1534, tomou posse dele no ano seguinte e levantou um arraial perto do Porto da Barra. Contudo, voltando de Porto Seguro em 1547, naufragou junto à ponta meridional da ilha de Itaparica, onde foi capturado, morto e devorado pelos índios. Finalmente, Tomé de Sousa desembarcou aos 29 de março de 1549 no mesmo Porto da Barra com a missão de fundar uma "povoação grande e forte" e implantar uma administração nova: a cidade do Salvador, cabeça do estado do Brasil, do qual foi o primeiro governador-geral. A Coroa indenizou em 1576 o herdeiro de Francisco Pereira Coutinho pela ocupação da capitania.

Brasão colonial de Salvador: de verde com uma pomba (pousada) de prata, segurando um ramo de oliveira de sua cor com o bico; divisa: Sic illa ad arcam reversa est, escrita de ouro em listel de prata.
Brasão colonial de Salvador: de verde com uma pomba (pousada) de prata, segurando um ramo de oliveira de sua cor com o bico; divisa: Sic illa ad arcam reversa est, escrita de ouro em listel de prata.

O brasão de Salvador é o mais bem documentado do período colonial porque já é citado por Gabriel Soares de Sousa, que era vereador da cidade em 1582 e em 1587, quando se achava em Madrid, datou a dedicatória da sua crônica, editada em 1879 pelo historiador Adolfo de Varnhagen, visconde de Porto Seguro, sob o título de Tratado descritivo do Brasil em 1587. No capítulo quinto, narra o seguinte:

Como Tomé de Sousa acabou o seu tempo de governador, que gastou tão bem gastado neste novo estado do Brasil, requereu a Sua Alteza que o mandasse tornar para o Reino, a cuja petição el-Rei satisfez com mandar por governador a Dom Duarte da Costa, do seu Conselho, ao qual deu a armada conveniente a tal pessoa, em que passou a este estado, com a qual chegou a salvamento à baía de Todos os Santos. Desembarcou na cidade do Salvador, nome que lhe Sua Alteza mandou pôr, e lhe deu por armas uma pomba branca em campo verde, com um rolo à roda branco, com letras de ouro que dizem Sic illa ad arcam reversa est, e a pomba tem três folhas de oliva no bico; onde lhe foi dada posse da governança por Tomé de Sousa, que se logo embarcou na dita armada e se veio para o Reino, onde serviu a el-Rei Dom João e a seu neto, el-Rei Dom Sebastião, de veador. E no mesmo cargo serviu depois à rainha Dona Catarina enquanto viveu. (grifo meu)

Sebastião da Rocha Pita, na sua História da América portuguesa (1730), não só confirma esse ordenamento, mas também acrescenta algumas informações muito relevantes:

30. ARMAS DA CIDADE DA BAHIA. Deu el-Rei Dom João III à cidade da Bahia por armas em campo verde uma pomba branca, com um ramo de oliveira no bico, circulada de uma orla de prata, com estas letras de ouro: Sic illa ad arcam reversa est. Estas armas se veem em ambas as portas da cidade, nas casas da câmara, no seu pendão e nas varas dos seus cidadãos. A pomba é símbolo do amor; a oliveira, sinal de serenidade, atributos que resplendeceram naquele príncipe e prerrogativas em que se esmeram estes vassalos para com os seus monarcas, pois nem as invasões dos inimigos nem outras calamidades do tempo puderam diminuir a constância da sua fidelidade nas execuções da sua obediência. E por estas virtudes mereceram os prezados títulos que logra esta cidade, de muito nobre e sempre leal, e o seu senado, os privilégios todos que tem o da cidade do Porto. Perdoe-se ao autor dilatar-se tanto na pintura da Bahia, por ser pátria sua, e não se ofenda o original de ficar tão pouco fermoso no retrato. (grifo meu)

Além de grande acadêmico do Brasil colonial, Rocha Pita também foi vereador de Salvador, de modo que a informação sobre o uso dessas armas se reveste da maior autoridade. Infelizmente, não se conservou nenhum dos suportes mencionados: as portas foram demolidas no fim do século XVIII; a câmara ainda se reúne no mesmo local (fato raríssimo no Brasil), mas o paço sofreu várias alterações ao longo do tempo; o tecido é o mais frágil de todos. Mesmo assim, é possível que no memorial da câmara se ache algum objeto armoriado do período colonial. Por enquanto, é preciso, trabalhar com essas duas descrições, que falham apenas em não exprimir a disposição da pomba.

Brasão colonial de Salvador: de verde com uma pomba (voando) de prata, segurando um ramo de oliveira de sua cor com o bico; divisa: Sic illa ad arcam reversa est, escrita de ouro em listel de prata.
Brasão colonial de Salvador: de verde com uma pomba (voando) de prata, segurando um ramo de oliveira de sua cor com o bico; divisa: Sic illa ad arcam reversa est, escrita de ouro em listel de prata.

Em geral, a posição ordinária de uma ave na armaria é pousada, ou seja, de perfil, com as asas fechadas, como a mesma pomba nas armas dos papas Inocêncio X e Pio XII, porém não é incomum figurar voando, como preferiu José Wasth Rodrigues em Brasões e bandeiras do Brasil (1933), de Clóvis Ribeiro. Atualmente, aparece estendida. Em tempo, a expressão rolo à roda no texto de Gabriel Soares deixa claro que a orla à qual Rocha Pita refere é uma espécie de listel, como discuti na postagem de 30/11. A legenda quer dizer 'Assim ela voltou à arca' e, assim como a própria imagem de uma pomba com um ramo de oliveira no bico, foi tirada do livro do Gênese (8, 8-11).

Brasão de Salvador: de azul com uma pomba estendida de prata, membrada de vermelho, segurando um ramo de oliveira de verde com o bico; timbre: coroa mural de cinco torres de prata; suportes: dois golfinhos de ouro; divisa: Sic illa ad arcam reversa est, escrita de prata em listel de azul (desenho usado pela câmara municipal).
Brasão de Salvador: de azul com uma pomba estendida de prata, membrada de vermelho, segurando um ramo de oliveira de verde com o bico; timbre: coroa mural de cinco torres de prata; suportes: dois golfinhos de ouro; divisa: Sic illa ad arcam reversa est, escrita de prata em listel de azul (desenho usado pela câmara municipal).

O ordenamento vigente das armas de Salvador foi estabelecido pela Lei n.º 1.495, de 24 de julho de 1963:

§ 1.º O brasão, nos termos do trabalho elaborado pelo Instituto Genealógico da Bahia e aprovado pelo Primeiro Congresso de História da Bahia, combinado com o depoimento do cronista Gabriel Soares e do historiador Rocha Pita, será o seguinte: escudo português – em campo verde, uma pomba de prata estendida com um ramo de oliva verde no bico, unhada e sacada [sic] de vermelho; coroa – mural de prata com cinco torres; divisa – legenda de prata em uma fita verde; suporte – dois delfins de ouro assentes nas extremidades do listel.

Não obstante, no ano seguinte, outra lei, a de número 1.585, alterou o esmalte do campo para azul. Considerando a citação das fontes, não parece fácil explicar essa alteração, mas o citado visconde de Porto Seguro já o descreve assim na sua História geral do Brasil antes da sua separação e independência de Portugal (1877, p. 242). Talvez a lei de 1963 tenha parecido excessivamente fiel aos testemunhos históricos e a de 64 tenha revertido ao azul, que deve remontar pelo menos ao século XIX. De fato, essa cor contrasta com o ramo de oliveira. 

Note-se, enfim, a dificuldade em empregar a linguagem heráldica: o termo sancada aparece como "sacada" e numa terceira lei, a 7.086/2006, como "saneada". Sancado é o mesmo que membrado, isto é, exprime que os tarsos e dedos da ave têm esmalte diferente do corpo, mas, na verdade, quando se diz sancado ou membrado não é preciso acrescentar unhado ou armado, já que raramente as unhas ou garras têm esmalte diferente dos tarsos e dedos, por ficarem diminutas na reprodução do brasão. Pessoalmente, brasono as armas de Salvador assim: de azul com uma pomba estendida de prata, membrada de vermelho, segurando um ramo de oliveira de verde com o bico; timbre: coroa mural de cinco torres de prata; suportes: dois golfinhos de ouro; divisa: Sic illa ad arcam reversa est, escrita de prata em listel de azul.