30/03/24

SÍNTESE DO BRASÃO EM VERSO

A ciência heráldica não seria como é sem a vasta e ótima obra do P.e Ménestrier.

O melhor tratado de armaria em português até o século XIX está no terceiro livro dos Elementos da história (1766), traduzidos por Pedro de Sousa de Castelo Branco. Os originais são Les éléments de l'histoire (1758), escritos por Pierre Le Lorrain, abade de Vallemont. Este, à sua vez, bebeu das fontes lavradas pelo Padre Claude-François Ménestrier. Como são muitas e fartas, rara será a boa obra nesse campo que não deixar ver influência direta ou indireta de tamanho mestre.

Com efeito, poucas lições bastam para perceber que o P.e Ménestrier era profundamente vocacionado para o magistério. Isso precisamente o afastava da postura magistral dominante no seu tempo, ainda apegada à explicação mítica. Ao buscar aprender mais e ensinar melhor, ele se impunha um rigor que só se difundiria depois, a partir do iluminismo.

Nascido em Lyon, França, em 1631, e tendo-se formado no colégio jesuíta dessa cidade, o P.e Ménestrier publicou a sua primeira obra sobre heráldica em 1659: Le véritable art du blason. Tinha então treze anos de profissão na Companhia de Jesus. A derradeira saiu em 1695, um decênio antes da sua morte em Paris, onde morava desde 1670: La nouvelle méthode raisonnée du blason. Entre uma e a outra medeiam 36 anos, durante os quais revisou e refundiu, ora resumindo ora ampliando a matéria, de tal maneira que o leitor de La nouvelle méthode se sente ante um professor experiente e zeloso.

Quem, pois, quiser percorrer a obra do P.e Ménestrier sobre a armaria também terá de passar por: L'art du blason justifié (1661), Abrégé méthodique des principes héraldiques (1661), Le véritable art du blason et la pratique des armoiries depuis leur institution (1671), Le véritable art du blason et l'origine des armoiries (1671), Le véritable art du blason ou l'usage des armoiries (1673), Les recherches du blason (1673), Origine des armoiries (1680), Origine des ornements des armoiries (1680), Le blason de la noblesse (1683), La méthode du blason (1689), La science de la noblesse (1691) e Le jeu de cartes du blason (1696).

Mas a obra do P.e Ménestrier no campo heráldico não é apenas vasta e metódica. Ele a produziu ao mesmo tempo que estudava e escrevia sobre eventos, música, dança, artes plásticas, numismática, história: Traité des tournois, joutes, carrousels et autres spectacles publics (1669), Des représentations en musique anciennes et modernes (1681), Les ballets anciens et modernes selon les règles du théâtre (1682), La philosophie des images (1682), De la chevalerie ancienne et moderne (1683), Les décorations funèbres (1684), L'art des emblèmes (1684), La science et l'art des devises (1686), Histoire du roi Louis le Grand par les médailles, emblèmes, devises, jetons, inscriptions, armoiries et autres monuments publics (1689), La philosophie des images énigmatiques (1694), Histoire civile et consulaire de la ville de Lyon (1696), Bibliothèque curieuse et instructive des divers ouvrages anciens et modernes de littérature et des arts (1704), para citar apenas os trabalhos mais gerais e maduros. Portanto, esse laborioso jesuíta dedicava-se às linguagens artísticas de que a Coroa e a nobreza usavam, abordando-as como ciências auxiliares da história. Isso o faz precursor da semiótica.

O brasão se compõe de esmaltes variamente: / Dois forros, dois metais, cinco cores somente / E os honrosos sinais que seguem a nascença / Distinguem a nobreza e são uma recompensa. / Ouro, vermelho, azul, púrpura, preto, prata, / Verde, veiros, arminho: é, pois, a conta exata.
O brasão se compõe de esmaltes variamente: / Dois forros, dois metais, cinco cores somente / E os honrosos sinais que seguem a nascença / Distinguem a nobreza e são uma recompensa. / Ouro, vermelho, azul, púrpura, preto, prata, / Verde, veiros, arminho: é, pois, a conta exata. (1)

Em particular, La nouvelle méthode raisonnée du blason compendia todo o esforço do P.e Ménestrier em divulgar a heráldica como disciplina. O subtítulo já dá uma ideia disso: Pour l'apprendre d'une manière aisée, réduite en leçons par demandes et par réponses ('Para aprendê-la de modo fácil, reduzido em lições por perguntas e respostas'). Prova o seu sucesso o número de edições: 1701, 1718 (revista, corrigida e aumentada; reimpressa em 1723 e 1728), 1754 (reimpressa em 1761) e 1770 (reimpressa em 1780). É nesse livro que se acha um poema que resume os preceitos da armaria.

Os chefes, faixas, palas, cruzes, bordaduras, / As bandas, barras, aspas, asnas e figuras / Outras e objetos mais pintam-nos o valor, / Sem sobrepor metal a metal, cor a cor.
Os chefes, faixas, palas, cruzes, bordaduras, / As bandas, barras, aspas, asnas e figuras / Outras e objetos mais pintam-nos o valor, / Sem sobrepor metal a metal, cor a cor. (2)

O Abrégé du blason en vers encerra a 28.ª lição. Segue-se à pergunta "Est-ce là tout ce qu'on peut dire du blason ?" ("Isso é tudo que se pode dizer da armaria?"), cuja resposta é "Oui. Ce me semble pour une simple méthode de l'art de blasonner. Et pour vous la rendre encore plus aisée, je veux bien vous reciter en peu de vers, ce que j'ai appris touchant le blason" ("Sim. É o que me parece para um método simples da arte de brasonar. E para torná-la ainda mais fácil para você, quero muito lhe recitar em poucos versos o que ensinei no tocante à armaria"). Esta colocação aponta que nem é preciso ler a composição para perceber que, depois de 27 lições, o incansável professor continua preocupado com o aprendizado do aluno. Assim, o poema é tanto um opúsculo de caráter estético como também um recurso de caráter mnemônico. Ei-lo:

Abrégé du blason en vers
Le blason composé de différents émaux
N'a que quatre couleurs, deux pannes, deux métaux
Et les marques d'honneur qui suivent la naissance
Distinguent la noblesse et sont sa récompense.
Or, argent, sable, azur, gueules, sinople, vair,
Hermine, au naturel et la couleur de chair ;
Chef, pal, bande, sautoir, fasce, barre, bordure,
Chevron, pairle, orle et croix de diverse figure
Et plusieurs autres corps nous peignent la valeur,
Sans métal sur métal, ni couleur sur couleur.
Supports, cimier, boulet, cri de guerre, devise,
Colliers, manteaux, honneurs et marques de l'église
Sont de l'art du blason les pompeux ornements,
Dont les corps sont tirés de tous les éléments :
Les astres, les rochers, fruits, fleurs, arbres et plantes
Et tous les animaux de formes différentes
Servent à distinguer les fiefs et les maisons
Et des communautés composent les blasons.
De leurs termes précis énoncez les figures,
Selon qu'elles auront de diverses postures.
Le blason plein échoit en partage à l'ainé,
Tout autre doit briser comme il est ordonné.

Assim que li esse gracioso poema tive vontade de traduzi-lo! Mas a sua graça está justamente em abreviar a arte heráldica em verso, logo fazê-lo em prosa o despojaria da qualidade estética. Para começar, a tradução poética demanda um exame mais judicioso da forma e do conteúdo.

Suportes, coronéis, timbres, mantos, troféus, / Motes, gritos, cordões, colares e chapéus / Do brasão d'armas são pomposos ornamentos, / Ao qual figuras dão todos os elementos.
Suportes, coronéis, timbres, mantos, troféus, / Motes, gritos, cordões, colares e chapéus / Do brasão d'armas são pomposos ornamentos, / Ao qual figuras dão todos os elementos. (3)

O Abrégé compõe-se de 22 versos alexandrinos, o metro clássico da poesia francesa. As rimas estão emparelhadas, o que dá onze dísticos. O conteúdo evolui através de oito unidades: 1-4, a natureza do brasão; 5-6, os esmaltes; 7-8, as peças; 9-10, a regra de iluminura; 11-14, os ornamentos externos; 15-18, as figuras; 19-20, o brasonamento; 21-22, a diferença.

O que se vê no céu, na terra os vegetais, / Bichos, o ser humano, os corpos naturais / Servem p'ra distinguir linhagens e solares / E o domínio marcar com signos sigilares. / Com justeza enunciai o termo da figura, / Assim como estiver numa ou noutra postura.
O que se vê no céu, na terra os vegetais, / Bichos, o ser humano, os corpos naturais / Servem p'ra distinguir linhagens e solares / E o domínio marcar com signos sigilares. / Com justeza enunciai o termo da figura, / Assim como estiver numa ou noutra postura. (4)

Essa análise é primordial para a tradução, porque o alexandrino não é um verso fácil para a língua portuguesa. Cumpria, porém, não perder de vista a finalidade didática do poema, de modo que optar por outro metro, como o nosso clássico decassílabo, podia levar a uma indesejável refundição do conteúdo, especialmente das enumerações, pois onde o P.e Ménestrier dispôs de doze sílabas para arrolar vários monossílabos e oxítonos, eu disporia de dez para vários paroxítonos. Eis o resultado:

Síntese do brasão em verso
O brasão se compõe de esmaltes variamente:
Dois forros, dois metais, cinco cores somente
E os honrosos sinais que seguem a nascença
Distinguem a nobreza e são uma recompensa.
Ouro, vermelho, azul, púrpura, preto, prata,
Verde, veiros, arminho: é, pois, a conta exata.
Os chefes, faixas, palas, cruzes, bordaduras,
As bandas, barras, aspas, asnas e figuras
Outras e objetos mais pintam-nos o valor,
Sem sobrepor metal a metal, cor a cor.
Suportes, coronéis, timbres, mantos, troféus,
Motes, gritos, cordões, colares e chapéus 
Do brasão d'armas são pomposos ornamentos,
Ao qual figuras dão todos os elementos:
O que se vê no céu, na terra os vegetais,
Bichos, o ser humano, os corpos naturais
Servem p'ra distinguir linhagens e solares
E o domínio marcar com signos sigilares.
Com justeza enunciai o termo da figura,
Assim como estiver numa ou noutra postura.
Direitas ao irmão mais velho as armas cabem;
Diferençá-las-ão os outros, todos o sabem.

Naturalmente, algumas parelhas foram mais difíceis. Em especial, não achei jeito de compor dois alexandrinos clássicos ao traduzir os versos 7 e 8, porque a maioria das peças tem nomes dissílabos paroxítonos em português. Coloquei, então, acentos na 4.ª, 8.ª e 12.ª sílabas, de modo que o verso ficasse ao menos trímetro. Em compensação, aproveitei as aliterações: chefes, faixas; bandas, barras, aspas, asnas. Igualmente em 5 e 6: púrpura, preto, prata; verde, veiros.

Direitas ao irmão mais velho as armas cabem; / Diferençá-las-ão os outros, todos o sabem.
Direitas ao irmão mais velho as armas cabem; / Diferençá-las-ão os outros, todos o sabem. (5)

A propósito, o P.e Ménestrier negava veementemente a púrpura entre os esmaltes, mas como essa discussão é estranha à armaria portuguesa, adaptei o conteúdo à realidade lusófona. Com o mesmo espírito, preferi os vernáculos direito e diferença aos galicismos pleno e brisura, mas daí a caberem no dodecassílabo... Lancei mão ao hipérbato: Direitas ao irmão mais velho as armas cabem; / Diferençá-las-ão os outros, todos o sabem.

Mantive, enfim, a concepção do brasão como marca de nobreza e honra, a qual o P.e Ménestrier defendia com igual afinco e, na verdade, era geral e própria da época. Acho que desta feita o texto se equilibra entre o destinatário hodierno e o pensamento do século XVII.

Notas
(1) Em sentido horário ilustram os esmaltes as armas dos Meneses, Castros, Pereiras, Ataídes, Vasconcelos, Andrades, Esteves de Lopo Esteves, Barretos e Alvarengas.
(2) Em sentido horário ilustram as peças as armas dos Corte-Reais, antigas dos Limas, Silveiras, Almadas, Martins de Diogo Martins, Bejas, antigas da Casa de Bragança, Aranhas e Coelhos.
(3) Ilustram os ornamentos externos as grandes armas do Império.
(4) Em sentido horário ilustram as figuras as armas dos Carvalhos, Coelhos de Nicolau Coelho, Pinheiros, Figueiredos, Vila-Lobos, Cabrais, Aguiares, Serpas e Mouras.
(5) 
Em sentido horário ilustram as diferenças e quebras as armas da Família Real entre 1734 e 1750: Dom João V, rei de Portugal; Dona Maria Ana, rainha de Portugal; Dom José, príncipe do Brasil; Dona Maria Francisca, princesa da Beira; Dom Pedro, duque de Beja; também as armas do duque de Aveiro; as antigas da Casa de Bragança, de que usava o duque do Cadaval; as dos Sousas, de que usava o duque de Lafões; e as dos Noronhas, de que usava o marquês de Angeja.

16/02/24

DUAS MOSTRAS DE ARMARIA ECLESIÁSTICA: D. VANTHUY NETO

O elogio é agradável, mas a crítica construtiva é edificante.

Dando continuidade à postagem antecedente, passo a resenhar o emblema de Dom Vanthuy Neto. Como farei críticas negativas, cabe interpor uma advertência: os apontamentos seguintes têm caráter estritamente técnico, a partir do entendimento de que a heráldica é um sistema semiótico. Portanto, nada têm a ver com as qualidades pastorais de Dom Vanthuy nem com as qualidades artísticas de quem desenhou o emblema.

Emblema de Dom Vanthuy Neto, bispo diocesano de São Gabriel da Cachoeira (imagem disponível na Wikimedia Commons).
Emblema de Dom Raimundo Vanthuy Neto, bispo diocesano de São Gabriel da Cachoeira (imagem disponível na Wikimedia Commons).

Raimundo Vanthuy Neto nasceu em 1973 em Pau dos Ferros, Rio Grande do Norte. Formou-se no Seminário Arquidiocesano São José (Manaus, 1991-97) e na então Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção (São Paulo, 1998-2000), hoje Campus Ipiranga da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde obteve o mestrado em Teologia. Foi ordenado presbítero em 2001 e incardinado na diocese de Roraima. Administrou as paróquias de Nossa Senhora Consolata (2001-04) e do Cristo Redentor (2005-13), em Boa Vista. Dirigiu o então Instituto de Teologia, Pastoral e Ensino Superior da Amazônia (2014-17), hoje Faculdade Católica do Amazonas. Voltou a Roraima, onde foi vigário da área missionária do Cantá (2018) e reitor do Santuário de Nossa Senhora Aparecida e do Seminário Propedêutico (2020-23). Serviu, ainda, de chanceler à cúria diocesana e de auditor ao Sínodo dos Bispos para a Amazônia (Vaticano, 2019). Foi ordenado bispo em 4 de fevereiro deste ano em Boa Vista.

Dom Vanthuy Neto (imagem disponível no perfil da Diocese de Roraima no Instagram).
Dom Vanthuy Neto (imagem disponível no perfil da Diocese de Roraima no Instagram).

O emblema de Dom Vanthuy foi desenhado pelo artista sacro Guto Godoy e apresentado pela Diocese de Roraima no seu website em 29 de dezembro de 2023. Particularmente, aprecio o artefato. A heráldica atual está cheia de estilos fortemente pessoais. Contudo, um brasão não é um objeto concreto, seja pintado, esculpido ou bordado. Assim, repito que os próximos parágrafos não visam a atacar ninguém.

Para começar, cumpre anotar que a Igreja respondeu de forma lacônica a uma mudança que merecia um tratamento mais extenso. Ora, quando o clero constituía um estamento da sociedade, não era necessária norma eclesiástica em matéria heráldica, porque geralmente se davam as altas dignidades a clérigos de extração nobre. Estes usavam, então, as armas das suas linhagens. Basta conferir os nomes e brasões dos papas na Idade Moderna: Alessandro de' Medici (Leão XI), Camillo Borghese (Paulo V), Alessandro Ludovisi (Gregório XV), Maffeo Barberini (Urbano VIII)...

À medida que essa prática cessava, cada vez mais as armas devocionais ganharam lugar, porém se passou longo tempo até que em 1969 a Secretaria de Estado da Santa Sé emitiu a Instructio circa vestes, titulos et insignia generis Cardinalium, Episcoporum et Prælatorum ordine minorum ('Instrução acerca das vestes, títulos e brasões de armas dos cardeais, bispos e prelados menores'), cujo incipit é Ut sive sollicite e está publicada no n.º 61 dos Acta Apostolicæ Sedis (p. 334). No que tange a heráldica, instrui-se o seguinte:

Sive Patribus Cardinalibus, sive Episcopis conceditur, ut generis insigne adhibere possint.
Hujus vero insignis aspectus ad normam artis exarandorum insignium delineandus erit, idemque simplex atque perspicuus sit oportet. Ab hujusmodi autem insigni sive baculi pastoralis sive infulæ effigies tollantur.

Em vernáculo:

Defere-se tanto aos padres cardeais como aos bispos que possam empregar brasão de armas.
A forma desse brasão deverá ser desenhada segundo a norma da arte de ordenar brasões. Cumpre, ainda, que o mesmo seja simples e distinto. Deste modo, tirem-se do brasão as imagens tanto do báculo pastoral como da mitra.

Apesar da brevidade, é justo reconhecer a precisão do texto. Assim, as armas de um prelado são constituídas de um escudo, que lhe serve de campo, e de certos ornamentos externos. O escudo não é deferido para o prelado pôr aí o que quiser e como quiser, mas deve ser "simples e distinto" e obedecer à "norma da arte de ordenar brasões". Tirados o báculo e a mitra dos ornamentos externos, ficam a cruz processional e o galero.

À luz dessas instruções, é objetivo apontar que no emblema do novo bispo se errou ao se trocar a cruz processional pelo báculo. Até pouco tempo atrás, o brasão era conceituado marca de nobreza. Como tal, servia à vanglória do seu titular e o clero não se excetuava disso. Daí que em 1915 o papa Bento XV tenha vedado os títulos e as insígnias nobiliárias aos patriarcas, arcebispos e bispos, salvo os anexos às suas sés (1), e em 1951 a estes Pio XII tenha acabado por estender a mesma vedação (2). Conclui-se, portanto, que o espírito dessas mudanças é despojar as armas prelatícias de honras seculares e, tanto quanto possível, de objetos litúrgicos, de modo a deixar o essencial para assinalar a posição do armígero na hierarquia eclesiástica.

Passando ao escudo, é bom que não se tenha dividido o campo, mas conto aí o excessivo número de oito figuras diferentes: uma cruz alta, de cujo pé brotam galhos de árvore, chantada num rio e acompanhada de um lírio entre os traços da letra M à destra, abaixo da travessa, e de outra cruz alta entre uma manjedoura e uma hóstia carregada de uma cruz, igualmente abaixo da travessa, o todo à sinistra, acima do rio. Nitidamente, o novo bispo tinha muito a dizer e o artista pouca ciência heráldica, tanto que não vejo como brasonar a pintura.

Com efeito, a citada notícia da diocese informa que a inspiração da cruz ramificada se acha no Salmo 1 (13) e no livro do profeta Jeremias (17, 8). A água tem três cores porque cada uma refere a um rio na vida de Dom Vanthuy: o Apodi, fonte do seu batismo; o Branco, fonte da sua vocação; o Negro, destino do seu ministério episcopal. Os símbolos marianos aludem ao sim da Santa Virgem como exemplo de resposta à missão. A manjedoura, a cruz e a hóstia indicam a espiritualidade do Prado, à qual o bispo de São Gabriel da Cachoeira se vincula. Diz, ainda, que as cores vermelha e negra lembram as pinturas corporais dos povos indígenas.

É muito normal que uma pessoa desconhecedora da heráldica almeje, ao assumir armas, mostrar de onde veio, aonde vai, o que faz, mas é aí que cabe ao bom heraldista orientá-la a meditar sobre o que julga mais significativo à luz do código heráldico. Assim, a emblemática pradosiana teria bastado, afinal já contém uma cruz.

Exercício heráldico a partir do emblema de Dom Vanthuy Neto: partido ondado de vermelho e negro com uma manjedoura, uma cruz de cujo pé brotam ramos de árvore e uma custódia com a sua hóstia, tudo de prata e bem ordenado.
Exercício heráldico a partir do emblema de Dom Vanthuy Neto: partido ondado de vermelho e negro com uma manjedoura, uma cruz de cujo pé brotam ramos de árvore e uma custódia com a sua hóstia, tudo de prata e bem ordenado.

Como mero exercício, eu teria recomendado a posição ordinária de três figuras na armaria: duas no alto e uma no baixo. Quanto à iluminura, negro sobre vermelho infringe a regra dos esmaltes, mas podem ficar lado a lado. Dando, então, à linha de partição forma ondada, far-se-ia referência à água sem sobrepesar o ordenamento. Em suma: partido ondado de vermelho e negro com uma manjedoura, uma cruz de cujo pé brotam ramos de árvore e uma custódia com a sua hóstia, tudo de prata e bem ordenado.

Seja como for, se consegui, ainda que dificultosamente, descrever o emblema de Dom Vanthuy, logo se pode ajustá-lo à arte heráldica. Para tanto, seria necessário abrir mão da cor negra, iluminando as figuras de ouro ou prata. O recurso ao perfil em tantas figuras pareceria abusivo; talvez ficasse razoável apenas aplicado à cruz ramificada, por ser principal e maior.

Sem dúvida, a resenha elogiosa é agradável ao resenhador, ao resenhado e ao leitor, mas por vezes a crítica corretora pode edificar mais, porque além de apontar o erro, mostra possibilidades futuras tanto aos doutos como aos neófitos.

Notas:
(1) Decretum de vetitis nobilitatis familiaris titulis et signis in episcoporum inscriptionibus et armis (Acta Apostolicæ Sedis, 1915, p. 172): "Quapropter Sanctitas Sua hoc edi jussit consistoriale decretum, quo Patriarchæ, Archiepiscopi et Episcopi omnes tam residentiales quam titulares in posterum in suis sigillis et insignibus seu armis, itemque in edictorum inscriptionibus, titulos nobiliares, coronas, signa aliasque notas sæculares, quæ nobilitatem propriæ familiæ vel gentis ostendant, addere penitus prohibentur, nisi forte dignitas aliqua sæcularis ipsi episcopali aut archiepiscopali sedi sit adnexa; aut nisi agatur de ordine equestri S. Joannis Hierosolymitani aut Ssmi Sepulchri" (Decreto que veda títulos e sinais de nobreza familiar nas intitulações e armas dos bispos: "É por isto que Sua Santidade mandou editar o presente decreto, pelo qual todos os patriarcas, arcebispos e bispos, tanto residenciais como titulares, ficam doravante terminantemente proibidos de acrescentar títulos nobiliários, coroas, sinais e outras notas seculares que mostrem a nobreza de sua família ou linhagem nos seus selos e brasões ou armas, igualmente nas intitulações de editos, a não ser que certa dignidade secular esteja acaso anexa à própria sé episcopal ou arquiepiscopal ou se trate da ordem de cavalaria de São João de Jerusalém ou do Santo Sepulcro").
(2) Decretum de vetito civilium nobiliarium titulorum usu in episcoporum inscriptionibus et armis (Acta Apostolicæ Sedis, 1951, p. 480): "Quapropter, præsenti Consistoriali Decreto, idem Ssmus Dominus Noster decernere dignatus est ut Ordinarii omnes in suis sigillis et insignibus seu armis, necnon in epistularum ac edictorum inscriptionibus, titulorum nobiliarium, coronarum aliarumve sæcularium notarum usu in posterum prorsus abstineant, etiam si ipsi episcopali vel archiepiscopali sedi sint adnexa" (Decreto que veda o uso de títulos nobiliários civis nas intitulações e armas dos bispos: "É por isto que pelo presente Decreto Consistorial nosso Santíssimo Senhor se dignou determinar que todos os ordinários se abstenham daqui em diante do uso de títulos nobiliários, coroas ou outras notas seculares nos seus selos e brasões ou armas, como também nas intitulações de cartas e editos, mesmo que estejam anexos à própria sé episcopal ou arquiepiscopal").

14/02/24

DUAS MOSTRAS DE ARMARIA ECLESIÁSTICA: D. ALCIVAN DE ARAÚJO

As eleições episcopais causam tanto entusiasmo como apreensão na comunidade heráldica.

Em 8 de novembro de 2023, a Santa Sé publicou cinco nomeações episcopais para a igreja do Brasil. Em duas delas, o papa Francisco elegeu dois presbíteros potiguares: Monsenhor Vanthuy Neto, natural de Pau dos Ferros, então reitor do Santuário de Nossa Senhora Aparecida e do Seminário Propedêutico, na diocese de Roraima, foi nomeado bispo de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, e Monsenhor Alcivan de Araújo, natural de Cerro Corá, então pároco de Nossa Senhora da Conceição em Jardim do Seridó, diocese de Caicó, foi nomeado bispo titular de Fata e auxiliar da Paraíba.

Armas de Dom Alcivan Tadeus Gomes de Araújo, bispo titular de Fata e auxiliar da Paraíba: esquartelado: o primeiro de prata com uma aspa de azul, carregada de cinco besantes de ouro (Araújo); o segundo de azul com um pelicano em sua piedade de ouro, ferido de vermelho no peito (Gomes); o terceiro de azul com uma concha aberta de prata, carregada de uma pérola do mesmo; o quarto de prata com uma estrela de azul de seis raios; divisa: Pasce oves meas; insígnias de bispo diocesano.
Armas de Dom Alcivan Tadeus Gomes de Araújo, bispo titular de Fata e auxiliar da Paraíba: esquartelado: o primeiro de prata com uma aspa de azul, carregada de cinco besantes de ouro (Araújo); o segundo de azul com um pelicano em sua piedade de ouro, ferido de vermelho no peito (Gomes); o terceiro de azul com uma concha aberta de prata, carregada de uma pérola do mesmo; o quarto de prata com uma estrela de azul de seis raios; divisa: Pasce oves meas; insígnias de bispo diocesano.

A eleição de novos bispos sempre chama a atenção da comunidade heráldica, porque, lembrando a instrução Ut sive sollicite (Acta Apostolicæ Sedis, 1969, p. 334), "sive Patribus Cardinalibus, sive Episcopis conceditur, ut generis insigne adhibere possint" ("defere-se tanto aos padres cardeais como aos bispos que possam empregar brasão de armas", tradução minha). Causa também apreensão, porque na armaria eclesiástica hodierna há de tudo: do excelente ao inaceitável. Os emblemas assumidos por Dom Vanthuy Neto e por Dom Alcivan de Araújo demonstram essa amplitude. Comecemos pelo brasão excelente.

Dom Alcivan de Araújo (imagem disponível no perfil da Diocese de Caicó no Instagram).
Dom Alcivan de Araújo (imagem disponível no perfil da Diocese de Caicó no Instagram).

Alcivan Tadeus Gomes de Araújo nasceu em 1972 em Cerro Corá, Rio Grande do Norte. Formou-se no Seminário Diocesano Santo Cura d'Ars (Caicó, 1990), no Seminário Arquidiocesano São José (Rio de Janeiro, 1991-96) e na Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma, 2012), onde obteve o mestrado em Direito Canônico. Foi ordenado presbítero em 1997 e incardinado na diocese de Caicó. Administrou as paróquias de Sant'Ana e da Imaculada Conceição em Currais Novos (1997), a então Área Pastoral Autônoma de Nossa Senhora do Patrocínio em São Fernando (1998), as paróquias de São Francisco em Lagoa Nova (1999-2002), de São Sebastião em Parelhas (2003-09), de Nossa Senhora dos Remédios em Cruzeta (2012), de Sant'Ana em Caicó (2015-22) e de Nossa Senhora da Conceição em Jardim do Seridó (2023). Foi reitor do Seminário Santo Cura d'Ars (1998) e desempenhou diversas funções na cúria diocesana e a vice-presidência do Tribunal Eclesiástico Interdiocesano de Natal. Foi ordenado bispo em 2 de fevereiro deste ano, Solenidade da Apresentação do Senhor, na Catedral de Sant'Ana, Caicó.

Desenho das armas de Dom Alcivan de Araújo feito pela Officina Insignium (imagem disponível no perfil do armígero no Instagram).
Desenho das armas de Dom Alcivan de Araújo feito pela Officina Insignium (imagem disponível no perfil do armígero no Instagram).

Dom Alcivan apresentou o seu brasão de armas em 19 de dezembro de 2023 pelos seus perfis nas redes sociais. Traz esquartelado: no primeiro as armas dos Araújos, que são em campo de prata uma aspa de azul, carregada de cinco besantes de ouro; no segundo, as armas dos Gomes, que são em campo de azul um pelicano em sua piedade de ouro, ferido de vermelho no peito; o terceiro de azul com uma concha aberta de prata, carregada de uma pérola do mesmo; o quarto de prata com uma estrela de azul de seis raios; divisa: Pasce oves meas; insígnias de bispo diocesano.

Ao fim da ordenação, no discurso aos presentes e espectadores, o novo bispo revelou a história desse brasão. Aconteceu no dia em que o núncio apostólico lhe comunicou a eleição ao episcopado: 23 de outubro de 2023. Estava no Santuário de Nossa Senhora do Rosário (Caicó), onde pregara durante a quarta noite da novena. O P.e Gleiber Dantas, tendo percebido certos sinais na homilia, o interpelou: "Você foi nomeado bispo. Deixe que o brasão eu preparo". E assim o fez, mas não sozinho: foi engenhado, ordenado e desenhado a várias mãos, pois também se envolveram o Irmão Martinho, oblato do Mosteiro de São Bento de Olinda, e Jalison Vítor, da Officina Insignium. Ainda que longo, vale a pena ler o comentário do irmão, que o P.e Gleiber leu em vídeo, publicado no Instagram:

Tomando para si o lema Pasce oves meas ('Apascenta as minhas ovelhas'), o novo bispo reconhece que o Senhor Jesus quis reunir para si um povo que caminha para o Pai nas estradas do mundo rumo ao céu à semelhança de um rebanho conduzido pelos mesmos pastores que foram escolhidos pelo Redentor na sucessão apostólica, conforme lemos no primeiro Prefácio dos Apóstolos. Esse rebanho é a igreja una, santa, católica e apostólica, na qual Deus estabeleceu em primeiro lugar alguns como apóstolos, em segundo como profetas e em terceiro os que ensinam; depois os milagres, os dons de cura, de socorrer, de governar e de falar diversas línguas, como lemos na Primeira Epístola aos Coríntios (12, 28). Com essa imagem do corpo místico de Jesus, dada pelo apóstolo Paulo, a igreja é constituída em sinodalidade, porém para que cada membro desse único e mesmo corpo conheça Jesus e o reconheça como cabeça e princípio, tendo no sucessor de Pedro o fundamento visível da sua unidade, é preciso que o Evangelho seja anunciado a todas as pessoas. No brasão da família Araújo, vê-se a difusão da Boa Nova, tendo o próprio Jesus como o central besante de ouro, a partir do qual se espargem os besantes dos evangelistas Mateus, Marcos, Lucas e João a toda a humanidade. Tendo dito que sejamos misericordiosos como o Pai celeste é misericordioso em Lucas (6, 36), a missão de santificar, ensinar e governar de quem Deus chamou para a sucessão dos apóstolos só é possível ser realizada como tarefa diaconal de quem aprendeu a servir como o Senhor fez no lava-pés, para que fizéssemos como nos mandou, conforme lemos em João (13, 15), a ponto de dar a vida como o pelicano presente no brasão da família Gomes, símbolo eucarístico por excelência. Assim, o pastor às vezes pôr-se-á à frente para indicar a estrada e sustentar a esperança do povo, outras vezes manter-se-á simplesmente no meio de todos com a sua proximidade simples e misericordiosa e em certas circunstâncias deverá caminhar atrás do povo para ajudar aqueles que se atrasaram e, sobretudo, porque o próprio rebanho possui o olfato para encontrar novas estradas, como diz o papa Francisco na Evangelii gaudium (31). Se a pérola e a concha são postas como clara alusão à Virgem Maria e a sua mãe, Santa Ana, padroeira da diocese de Caicó, em cujo seio foram gerados na fé o novo bispo e sua sagrada vocação, este quartel do seu brasão episcopal impõe-lhe a tarefa pastoral de buscar no coração de homens e mulheres, já evangelizados ou não, a pérola preciosa, certo de que pérolas são produzidas somente em conchas que foram feridas, como o bom pastor que veio procurar e salvar o que estava perdido, como lemos em Lucas (19, 10). Não fosse suficiente escutar que lhe basta a graça de Deus, porque é na fraqueza que a força do Evangelho se realiza plenamente, além de confortado para não temer insultos, dificuldades, perseguições e angústias, conforme Paulo escreveu na Segunda Epístola aos Coríntios (12, 9), o novo bispo tem na Virgem Maria uma proteção que o orienta, ou seja, que lhe aponta o oriente espiritual da história: o Cristo nascente, que nos veio visitar, como lemos em Lucas (1, 78). Ela, que os navegantes chamaram de Stella Maris, é a primeira estrela do sertão, a Estrela d'Alva do povo seridoense, cuja têmpera o novo bispo carrega em seu ser de filho e neto de vaqueiros do sertão do Seridó e que ele encontra junto ao povo paraibano, venerada como Nossa Senhora das Neves, a Imaculada Conceição, que marcou os últimos meses de seu paroquiato ao ser chamado pelo papa Francisco para ser bispo.

Tenho mais uma ou duas palavras a acrescentar. Primeiro, de uma perspectiva histórica.

De 11 a 25/04 de 2021, escrevi uma série de apontamentos sobre armaria eclesiástica. Abordei primeiro as armas pessoais, demonstrando que no Brasil passaram por três períodos, conforme a sua natureza: armas gentilícias, armas gentilício-devocionais e armas devocionais. Em resumo, até o Império os clérigos assumiam as armas correspondentes aos seus sobrenomes, depois começaram a adotar figuras sacras, que atualmente predominam. Inclusive, posso agora corroborar isso com o caso dos bispos de Olinda: de todos que governaram a diocese desde 1677, o primeiro que assumiu armas completamente devocionais foi Dom Manuel do Rego Medeiros em 1865. (1)

Portanto, Dom Alcivan voltou ao segundo momento, quando se combinavam armas gentilícias e devocionais. Talvez tenham aberto precedente as armas das ordens religiosas, de que alguns professos fizeram uso, como Dom Frei José Fialho, sexto bispo de Olinda (1725-38) e sétimo arcebispo de Salvador (1738-41): trazia num escudo partido as armas da Abadia de Alcobaça e as dos Fialhos. Depois, houve duas espécies de combinação: uma preserva o ordenamento das armas gentilícias inalterado e a outra cria um ordenamento novo. Exemplo da primeira são as armas de Dom Frei Tomás da Encarnação Costa e Lima, décimo bispo de Olinda (1774-84), que sobre um escudo partido de Lima antigo e Costa pôs um escudete com a Virgem Maria e o Arcanjo Gabriel. Exemplo da segunda são as armas de Dom Hélder Câmara, sexto arcebispo de Olinda e Recife (1964-85), que trazia em campo de vermelho uma torre aberta e coberta de prata, cruzada de ouro, entre dois lobos trepantes do mesmo, portanto as armas dos Câmaras com algumas diferenças. (2)

Dom Alcivan recebendo o báculo dos quatro bispos viventes que se sucederam na sé caicoense: Dom Heitor de Araújo Sales (quarto bispo, arcebispo emérito de Natal), Dom Jaime Vieira da Rocha (quinto bispo, arcebispo emérito de Natal), Dom Frei Manuel Delson Pedreira da Cruz (sexto bispo, arcebispo da Paraíba) e Dom Antônio Carlos Cruz Santos (sétimo bispo); observem-se as ínfulas armoriadas (imagem disponível no perfil da Diocese de Caicó no Instagram).
Dom Alcivan recebendo o báculo dos quatro bispos viventes que se sucederam na sé caicoense: Dom Heitor de Araújo Sales (quarto bispo, arcebispo emérito de Natal), Dom Jaime Vieira da Rocha (quinto bispo, arcebispo emérito de Natal), Dom Frei Manuel Delson Pedreira da Cruz (sexto bispo, arcebispo da Paraíba) e Dom Antônio Carlos Cruz Santos (sétimo bispo); observem-se as ínfulas armoriadas (imagem disponível no perfil da Diocese de Caicó no Instagram).

As armas de Dom Alcivan são, pois, da primeira espécie. Optou-se pela esquarteladura, o que costuma inspirar reserva no armista, por causa da alta frequência dos chamados falsos esquartelados: aqueles ordenados apenas para acomodar várias figuras. Como eu disse na postagem de 21/08/2021, divide-se o campo para compor aí um só brasão mediante a junção de diferentes armas e isso tem poucas exceções: a partição pura, as figuras repetidas e as sobrepostas. O escudo de Dom Alcivan compõe-se de dois quartéis gentilícios e dois devocionais, logo não é um falso esquartelado.

À sua vez, armas gentilícias comportam a preocupação com a justeza genealógica. Nunca é excessivo repisar que não há brasões de famílias, mas sim linhagens armoriadas. Assim, ter certo sobrenome não basta para fazer jus a um brasão; é preciso entroncar-se com a linhagem à qual pertence o brasão. Apesar disso, cabe reconhecer que a armaria portuguesa foi operada com pouco rigor genealógico, especialmente durante os séculos XVIII e XIX e principalmente entre os prelados, que podiam assumir armas sem se sujeitar ao Juízo da Nobreza. Seja como for, a prática pouco rigorosa no passado não justifica que se faça igual no presente.

Isso tampouco atinge o brasão de Dom Alcivan. A linhagem dos Araújos na região do Seridó é bem conhecida: com duas quebras de varonia na terceira e quarta gerações, o bispo titular de Fata descende de Tomás de Araújo Pereira, que saiu do Minho para o Brasil e chegou à ribeira do Acauã na terceira década do século XVIII. Levando em conta que o solar dos Araújos está num lugar desse nome na parte galega do Lima, é improvável que o dito colono não fosse fidalgo dessa linhagem. (3)

Um tanto diferente é o caso dos Gomes. O tronco da geração é o trisavô de Dom Alcivan, José Gomes de Melo, que veio de Picuí, na Paraíba, para Currais Novos por volta de 1860. Mas mesmo que se ascendesse mais, Gomes é um patronímico. Isso quer dizer que há muitas linhagens desse nome sem parentesco, cada uma descendente de um filho de Gome (4). Além disso, não se sabe sequer a qual dessas linhagens pertencem as armas que Antônio de Vilas Boas e Sampaio brasona sem declarar os esmaltes na Nobiliarquia portuguesa (1676) e Frei Manuel de Santo Antônio e Silva registra no Tesouro da nobreza de Portugal (1783), o que não o impediu de as dar a muitos suplicantes desse sobrenome enquanto exerceu a reforma do Cartório da Nobreza (1745-90). (5)

No entanto, uma feliz coincidência supera essa problemática: o pelicano em sua piedade, que os Gomes trazem por armas, é igualmente uma figura sacra. Acreditava-se que essa ave era capaz de ferir o próprio peito para saciar com o seu sangue a fome dos filhotes. Daí a penúltima estrofe do hino eucarístico Adoro te devote, de Santo Tomás de Aquino: "Pie pelicane, Jesu Domine, | me immundum munda tuo sanguine" ("Piedoso pelicano, Senhor Jesus, | limpa a mim, sujo, com o teu sangue").

Passando aos quartéis devocionais, de certo modo também têm natureza heráldica, porque são elementos centrais de outros brasões: a concha com uma pérola está no coração das armas da diocese de Caicó e a estrela, no das armas da arquidiocese da Paraíba, como o leitor pode conferir na postagem de 23/04/21.

Armas da diocese de Caicó: de azul com uma cruz veirada de vermelho e prata, carregada de uma concha aberta deste metal, sobrecarregada de uma pérola do mesmo; timbre: mitra; sob o escudo, uma cruz processional e um báculo passados em aspa.
Armas da diocese de Caicó: de azul com uma cruz veirada de vermelho e prata, carregada de uma concha aberta deste metal, sobrecarregada de uma pérola do mesmo; timbre: mitra; sob o escudo, uma cruz processional e um báculo passados em aspa.

Convém lembrar que, como atributo icônico de Sant'Ana, a concha com uma pérola foi provavelmente inventada pelo Irmão Paulo Lachenmayer, O.S.B., ao criar brasão para a então diocese de Feira de Santana, em 1962: assim como a ostra gera a pérola após ser ferida por um grão de areia, Sant'Ana concebeu e deu à luz sua especiosíssima filha em meio ao sofrimento da infertilidade, segundo o Protoevangelho de Tiago.

Armas da arquidiocese da Paraíba: de azul, semeado de flocos de neve de prata, com uma cruz chã do mesmo, carregada de uma estrela de seis raios do campo; timbre: mitra; sob o escudo, uma cruz arquiepiscopal e um báculo passados em aspa.
Armas da arquidiocese da Paraíba: de azul, semeado de flocos de neve de prata, com uma cruz chã do mesmo, carregada de uma estrela de seis raios do campo; timbre: mitra; sob o escudo, uma cruz arquiepiscopal e um báculo passados em aspa.

Quanto à estrela, é um símbolo mariano antiquíssimo: aparece acima da cabeça da Virgem com o Menino numa pintura que remonta ao século III, conservada nas Catacumbas de Priscila, em Roma. Sobre a sua cabeça e/ou o ombro direito, tornou-se convencional na iconografia bizantina. Além disso, entre as invocações da ladainha lauretana conta-se "Stella matutina", ou seja, "Estrela da manhã", a que reflete a luz do sol e, por isso, é o corpo celeste mais brilhante ao amanhecer e ao entardecer, tal como Maria Santíssima excele a todas as criaturas em virtude da encarnação do Verbo, que é a verdadeira luz (João, 1, 9). Também por nos servir de guia (João, 14, 6), como celebrado no primeiro verso e título do hino Ave, Maris Stella ('Ave, Estrela do Mar'), do século IX, e confirmado pela exortação apostólica Evangelii nuntiandi (1975), de São Paulo VI, e pela Evangelii gaudium (2013), do papa Francisco: a "Estrela da (Nova) Evangelização".

Dom Alcivan as saudações da delegação da paróquia de São Francisco, em João Pessoa, após a sua ordenação episcopal; observe-se a reprodução do seu brasão no backdrop (imagem disponível no perfil da paróquia no Instagram).
Dom Alcivan recebendo as saudações da delegação da paróquia de São Francisco, em João Pessoa, após a sua ordenação episcopal; observe-se a reprodução do seu brasão no backdrop (imagem disponível no perfil da paróquia no Instagram).

Até aqui, todo o razoado conclui que o brasão de Dom Alcivan é tecnicamente impecável, mas a heráldica também é uma arte visual. Depois de pintadas, espera-se que boas armas mostrem qualidades estéticas. Nas do bispo auxiliar da Paraíba, o olhar crítico facilmente as acha: não se podiam mudar os esmaltes dos quartéis gentilícios, mas sim aqueles dos devocionais. Acertadamente, puseram-se as armas dos Araújos no primeiro e as dos Gomes no segundo e inverteram-se os esmaltes dos contrários: o terceiro campo de azul com uma figura de prata e o quarto de prata com uma figura de azul. Abstraindo-se as gotas de sangue do pelicano, toda a iluminura do escudo reduz-se aos dois metais e à cor azul. Como reza a máxima, em heráldica menos é mais.

Para acabar, se a eleição de novos bispos inquieta a comunidade heráldica, as escolhas felizes deixam a esperança de infundirem no clero maior curiosidade sobre o código heráldico: o que é, como funciona. A semiótica constitui, afinal, uma parte importante da religião.

Notas:
(1) Dom Manuel do Rego Medeiros trazia em campo de azul uma cruz recruzetada de pé ancorado, acompanhada de quatro estrelas acantonadas e de uma cruz de Jerusalém em ponta, tudo de prata.
(2) As armas dos Câmaras são de negro com uma torre de prata entre dois lobos trepantes de ouro, tudo assente sobre um monte de verde, firmado em ponta.
(3) Na verdade, Dom Alcivan descende por linha direita masculina de Cipriano Lopes Galvão, outro dos primeiros colonizadores do Seridó, mas seu avô preferiu o sobrenome Araújo.
(4) Gome é um antropônimo de origem germânica cujo uso rareou até desaparecer.
(5) Formalmente, o suplicante recebia mercê do monarca por intermédio do rei de armas Portugal, mas na prática Frei Manuel fazia tudo, como também os escrivães que lhe sucederam.

08/02/24

O PROBLEMA DAS ARMAS DO DUQUE DE CAXIAS

Apesar da magna honorificência sob a monarquia e a república, permanecem várias questões sobre as armas do duque de Caxias.

O brasão do duque de Caxias é, quiçá, o mais conhecido dentre os concedidos pelos imperadores brasileiros, já que o nosso exército faz amplo uso dele em várias insígnias. Contudo, não poucos problemas o envolvem.

Em primeiro lugar, o ordenamento mesmo. As Ordenações do Reino (1603, liv. V, t. XCII) estabeleciam que se podiam trazer "até quatro armas [...], esquarteladas, e mais, não", porém o referido brasão se compõe das armas de seis linhagens dentro de um escudo partido de dois traços e cortado de um, o que dá um quartel para cada uma: no primeiro as dos Silvas, no segundo as dos Fonsecas, no terceiro as antigas dos Limas, no quarto as dos Brandões, no quinto as dos Soromenhos e no sexto as dos Silveiras.

Para entender a composição desse escudo, é preciso ascender à linhagem de Luís Alves de Lima e Silva: filho de Francisco de Lima e Silva e Mariana Cândida de Oliveira Melo, neto de José Joaquim de Lima e Silva e Joana Maria da Fonseca Costa, bisneto de João da Silva da Fonseca Lima e Isabel Josefa Maria Brandão Ivo, filha de Francisco Lourenço Brandão Ivo e Maria Rodrigues Soromenho, neta de Matias Lourenço Brandão Ivo, bisneta de outro Matias Lourenço Brandão Ivo e Isabel da Silveira.

Portanto, as armas dos Silvas e dos Limas vieram ao duque por seu avô paterno e as demais por sua avó paterna: as dos Fonsecas por seu bisavô, as dos Brandões por sua bisavó, as dos Soromenhos por sua terceira avó e as dos Silveiras por sua quinta avó. É, de fato, um exemplo ilustrativo da transmissão heráldica por linha feminina, tão própria da armaria portuguesa.

Quem terá sido o oficial de armas que cometeu tão flagrante infração da norma heráldica pátria? Eis o maior problema: não se sabe quando se passou carta de brasão ao duque de Caxias! A brica por diferença sugere que não são armas assumidas, mas obra do Juízo e Cartório da Nobreza. Como a negligência daqueles que superintenderam esse órgão perdeu a maior parte dos registros, resta recorrer às fontes indiretas.

Armas do duque de Caxias segundo o Arquivo nobiliárquico brasileiro (1918), dos barões de Vasconcelos e Smith de Vasconcelos.
Armas do duque de Caxias segundo o Arquivo nobiliárquico brasileiro (1918), dos barões de Vasconcelos e Smith de Vasconcelos.

Consultando, pois, o Arquivo nobiliárquico brasileiro (1918), a fonte mais extensa e acessível, não se resolve o problema, mas fica aumentado. Para começar, os barões Rodolfo e Jaime Smith de Vasconcelos confundem os brandões da linhagem homônima com flores de lis e as armas dos Silveiras com as dos Ferreiras, além de chamar pereira à árvore dos Soromenhos. (1)

Além disso, os autores também atribuem as armas do duque a José Joaquim de Lima e Silva, visconde de Magé, a Manuel da Fonseca e Silva, barão de Suruí, seus tios, e a José Joaquim de Lima e Silva Sobrinho, conde de Tocantins e seu irmão, mas isso é inaceitável, porque no mínimo cada um deve ter recebido uma diferença pessoal, na forma da brica carregada de figura individual.

A confusão da composição e a falta de datação sugerem que os barões de Vasconcelos e Smith de Vasconcelos acharam essas armas nalguma reprodução muito pequena. Daí concluíram erroneamente que todos os titulados da família as ganharam. Ora, num tempo em que o estado controlava a heráldica gentilícia, não é possível que um brasão confirmado quatro vezes não tenha deixado atestação melhor que alguma miudeza armorejada. (2)

Botão atribuído à libré da Casa do Duque de Caxias e leiloado pelo Escritório de Artes Miguel Salles em 2022.
Botão atribuído à libré da Casa do Duque de Caxias e leiloado pelo Escritório de Artes Miguel Salles em 2022.

Com efeito, em 2022 o Escritório de Artes Miguel Salles leiloou um botão que mostra o brasão do duque. Anuncia que fazia parte da libré de sua casa, isto é, do uniforme que os seus empregados vestiam. Informa, ainda, que procede da coleção de Heloísa e Celso Figueiredo Filho. Tudo merece toda a confiança, mas também não resolve os problemas. De um lado, comprova a composição: Silva, Fonseca, Lima antigo, Brandão, Soromenho e Silveira. Do outro, a brica é azul com uma estrela, cujo esmalte o alto-relevo não permite discernir, e o timbre não é um coronel, mas um elmo com penacho.

O botão armoriado enseja, assim, novas perguntas: ter-se-á desenhado o brasão que aí figura antes da concessão do primeiro título nobiliário a Luís Alves de Lima e Silva? E terá sido ele, de fato, o primeiro que recebeu esse brasão? O serviço que Francisco de Lima e Silva prestou a Dom Pedro I durante todo o seu império, ao ponto de ter participado da Regência Trina após a abdicação, torna perfeitamente plausível que o imperador lhe tenha dado brasão de armas, afinal possuía comenda da Ordem de Avis, herdada de seu pai, quem Dom João VI fizera, ademais, fidalgo-cavaleiro da Casa Real em 1819. Isso explicaria o elmo.

Por certo, um detalhe heráldico indica que o botão foi mesmo fabricado sob o Império. Anselmo Braamcamp Freire, na sua Armaria portuguesa (1908), seguindo o Tesouro da nobreza de Portugal (1783), de Frei Manuel de Santo Antônio e Silva, põe a flor de lis e o crescente dos Soromenhos no chefe. Porém, Antônio de Vilas Boas e Sampaio, na Nobiliarquia portuguesa (1676), brasona-os precisamente como se veem no botão: "Em campo vermelho um soromenho no meio de ũa flor de lis de ouro e de uma meia lua do mesmo". Sabe-se que os oficiais de armas brasileiros dispunham e usavam de um exemplar desse livro.

Armas do duque de Caxias segundo Domício da Gama na Revista Moderna (n.º 27, 1899).
Armas do duque de Caxias segundo Domício da Gama na Revista Moderna (n.º 27, 1899).

Em 1899, o n.º 27 da Revista Moderna publicou um artigo de Domício da Gama sobre a vida do duque de Caxias. Uma das ilustrações é o brasão: o mesmo escudo que está no botão, agora timbrado pelo coronel ducal. À estrela na brica deu-se a cor vermelha, o que infringe a regra dos esmaltes: cor sobre cor. É provável que seja, na verdade, de metal.

Mas se o Exército celebra tanto a memória de Caxias, por que rareiam testemunhos mais antigos das suas armas? Após a Guerra do Paraguai era Manuel Luís Osório, marquês do Herval, quem gozava da reputação de máximo herói, por ter comandado as forças brasileiras na Batalha de Tuiuti (1866). Morto o marquês em outubro de 1879 e o duque em maio de 1880, daquele encomendou-se em 1887 a estátua equestre que a República assentou em 1894 na Praça XV de Novembro, Rio de Janeiro.

O duque começou a ser lembrado mais de quatro decênios após a sua morte: desde 1923 na data do seu nascimento o Ministério da Guerra comemorou a Festa de Caxias e desde 1925 o Dia do Soldado. Em 1941, deu-se à sede nova desse ministério o nome de Palácio Duque de Caxias. Oito anos depois, diante desse edifício ergueu-se o panteão do duque, sobre o qual se reassentou a sua estátua equestre e sob o qual se depositaram os seus restos mortais e os da duquesa. O patronato do Exército, já consagrado, foi reconhecido pelo Decreto n.º 51.429, de 13 de março de 1962. (3, 4)

Armas do duque de Caxias segundo Egon Prates Pinto na Revista Militar Brasileira (n.º 3, 1936).
Armas do duque de Caxias segundo Egon Prates Pinto na Revista Militar Brasileira (n.º 3, 1936).

Voltando ao brasão de armas, em 1936 o mesmo ministério determinou que a Revista Militar Brasileira dedicasse ao duque uma edição comemorativa: a de n.º 3. A matéria heráldico-genealógica é tratada já no primeiro artigo, o texto de Egon Prates Pinto, tenente da Reserva, e a ilustração de Luís Gomes Loureiro, do Gabinete Fotográfico do Estado Maior, ambos do Exército. É daqui em diante que as armas dos Soromenhos aparecem corretas e — na esteira do Arquivo nobiliárquico brasileiro — a diferença como um farpão negro dentro de uma brica de prata, o que parece infringir igualmente a regra de iluminura, pois fica sobre as armas dos Silvas, portanto em campo do mesmo metal. Apesar disso, aponta-se somente uma fonte: um sinete, sobre o qual se diz ter pertencido a Caxias quando marquês e achar-se no acervo numismático do Museu Histórico Nacional. Contudo, como a consulta desse acervo não está completamente disponível na base eletrônica do museu, por enquanto não é possível conferi-lo. Vê-se, isto sim, um sinete do duque no Acervo do Exército Brasileiro, mas este não está armoriado, pois o emblema que imprime é a abreviatura D. de C., encimada do coronel ducal.

Chegamos, enfim, a um beco sem saída. No mínimo, há dois brasões, ainda que compostos da mesma forma: um traz por diferença uma estrela e o outro, um farpão, ambas as figuras dentro de uma brica. Tanto uma como a outra apresentam defeitos: suponho que talvez por imperícia heráldica o ilustrador da Revista Moderna tenha olhado as estrelas vermelhas dos Fonsecas e daí pintado a solitária da mesma cor; quanto ao trabalho de Pinto e Loureiro, não posso julgá-lo sem ver o objeto em que se baseiam.

Selo do duque de Caxias conforme o sinete conservado no Acervo do Exército Brasileiro.
Selo do duque de Caxias conforme o sinete conservado no Acervo do Exército Brasileiro.

Ficam, pois, algumas perguntas: se Pinto tomou o farpão do sinete a que refere e há mesmo aí um coronel de marquês, então esse brasão pertenceu de fato a Caxias, porque nem seus tios nem seu irmão alcançaram tal grau. Mas depois de ascender ao ducado, por que não mandou trocar o coronel no sinete novo, mas inscreveu uma abreviatura? E de quem era o brasão atestado pelo botão, com uma estrela por diferença?

Medalha do Pacificador.
Medalha do Pacificador.

Seja como for, o Exército tornou o desenho de Loureiro praticamente oficial: tem servido à cunhagem da Medalha do Pacificador desde 1953 e figura na bandeira-insígnia e no estandarte "histórico" do duque, conforme as Portarias n.os 1.277 e 1.278, de 21 de agosto de 2019, do Comando do Exército. Na verdade, a cópia excessiva acabou enfeando o original. Como hoje em dia nessa força reina a ignorância heráldica, não surpreende a confusão entre brasão e reprodução.

Notas:
(1) Os erros dos barões de Vasconcelos e Smith de Vasconcelos corroboram algumas observações ao longo desta postagem. Ora, se conhecessem a linhagem de Caxias, não teriam errado a composição das suas armas. Esse desconhecimento demonstra o quanto em 1918 estava esquecida a memória do único duque do Império sem parentesco com a casa imperante.
(2) Dom Pedro II deu a baronia de Caxias a Luís Alves de Lima e Silva e a de Barra Grande a seu pai na mesma data, 18 de julho de 1841, mas este a recusou. Os irmãos mais novos deste, José Joaquim e Manuel, receberam o viscondado de Magé e a baronia de Suruí em 2 de dezembro de 1854. Finalmente, o irmão mais novo de Caxias, José Joaquim Sobrinho, foi feito visconde de Tocantins em 1872 e conde do mesmo título em 1889. No Império do Brasil, as concessões dos títulos nobiliários e dos brasões gentilícios tramitavam e ficavam registradas em repartições diferentes. Além disso, um não implicava no outro. Não obstante, uma parcela substancial dos novos titulados requeria brasão de armas. É improvável que não tenha remanescido nenhum registro de mercê heráldica a um Lima e Silva após 1855, quando Luís Aleixo Boulanger começou a trabalhar junto ao Cartório da Nobreza, assim como o é que todos tenham recebido os seus brasões antes disso.
(3) Essa estátua de Caxias foi inaugurada em 1899 no Largo do Machado. No artigo citado, Pinto diz que as armas ducais no pedestal contêm cinco mosquetas, suponho que pelos cinco brandões. Talvez aí esteja a origem do erro dos barões de Vasconcelos e Smith de Vasconcelos, que teriam, então, convertido as mosquetas em flores de lis. Será, além disso, a origem do farpão por diferença?
(4) O marquês do Herval era louvado pela sua bravura, mas a carreira de Caxias fornecia os valores que os sucessivos regimes necessitavam incutir na tropa: a República Velha, a lealdade; os governos provisório e constitucional da Era Vargas, a unidade nacional; o Estado Novo, a autoridade.