Uma paróquia não precisa possuir um brasão, mas se o seu administrador resolve adotar um, há um código a ser seguido: a heráldica.
Para encerrar esta série de postagens, recobro o mote que lhe deu origem: a concessão do título de basílica menor à Igreja Matriz de Nossa Senhora da Guia de Acari há exatamente trinta dias. Deixarei, pois, uma proposta de brasão novo para essa paróquia. Antes, como já é do meu feitio, tecerei algumas considerações à guisa de contextualização.
A primeira soará um tanto estranha, mas julgo necessária: uma paróquia não precisa possuir um brasão. O Código de Direito Canônico (Cân. 535, § 3) dispõe que "[t]enha cada paróquia um selo próprio; as certidões relativas ao estado canónico dos fiéis, tal como todos os atos que possam ter valor jurídico, sejam assinados pelo próprio pároco ou seu delegado, e munidos com o selo paroquial" (grifos meus). De selo (sigillum em latim) pode servir qualquer emblema que identifique a paróquia: um carimbo, um logotipo, uma marca, um brasão etc. No Brasil, tem-se vulgarizado a opção do brasão. Como entusiasta, acho ótimo, mas infelizmente se vê uma quantidade grande de "insignoides", ou seja, emblemas que parecem brasões, mas não o são, porque não estão ordenados segundo o código heráldico. É imperioso que o clero se instrua mais nesta matéria: se escolhe o brasão, há um código a ser seguido, que, como tal, se constitui de regras, as quais, à sua vez, têm caráter restritivo. Se esse caráter não condiz com o que se quer, pode-se optar por qualquer outra espécie de emblema, sem que isso implique em lapso ou mácula alguma.
Segundo, o que é uma basílica menor? Segundo o decreto Domus ecclesiæ, da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos (publicado no n.º 82 das Acta Apostolicæ Sedis, 1990, p. 436), dentre outras condições para obter esse título:
Ecclesia in universa diœcesi quadam celebritate gaudeat, verbi gratia quia ædificata est et Deo dicata occasione cujusdam peculiaris eventus historici-religiosi, aut in ea asservatur corpus vel insignis reliquia alicujus Sancti aut quædam sacra imago modo particulari colitur. Perpendenda quoque erunt ecclesiæ valor seu momentum historicum ejusque artis decus. (1)
Com efeito, a paróquia de Nossa Senhora da Guia de Acari é a segunda mais antiga do Seridó, depois da de Sant'Ana de Caicó, da qual foi desmembrada. Como expus na postagem de 08/03, é um caso insólito, pois a elevação do povoado a vila, ainda pelo Conselho Geral da Província, antecedeu a da capela a freguesia, aquela em 1833 e esta em 1835. Em ambas, foi fundamental a ação do padre Tomás Pereira de Araújo.
|
Basílica de Nossa Senhora da Guia, Acari (imagem disponível no perfil da paróquia no Facebook). |
Nascido em 1809 da estirpe que desbravou a ribeira do Acauã, fundou Acari e no século seguinte gerou os irmãos Eugênio e Heitor de Araújo Sales, arcebispos eméritos do Rio de Janeiro e de Natal, foi ordenado presbítero em 1832 após se ter formado no Seminário de Olinda. De volta a Acari no mesmo ano, tornou-se o capelão de Nossa Senhora da Guia. Em 1834, foi eleito deputado à primeira legislatura da Assembleia Legislativa Provincial, reeleito para as legislaturas de 1838-39, 1840-41, 1848-49 e 1860-61. Graças à sua atuação parlamentar, aprovou-se a ereção da capela e confirmou-se a do povoado. Ainda em 1835, foi nomeado vigário encarregado da nova freguesia, colado desde 1839 até 1870. Então e por três anos encarregou-se da freguesia de Nossa Senhora das Mercês de Cuité, mas em seguida reassumiu o cargo de vigário colado de Acari, no qual permaneceu até 1893, quando se retirou por motivo de doença e veio falecer.
|
Nave da Basílica de Nossa Senhora da Guia de Acari (imagem disponível no perfil da paróquia no Facebook). |
A devoção a Nossa Senhora da Guia na ribeira do Acauã remonta ao começo do século XVIII. Em 1737, o sargento-mor Manuel Esteves de Andrade construiu, à instância de sua mãe, uma capela, dedicada sob essa invocação no ano seguinte. Após a sua ereção canônica, serviu de igreja matriz até 1863, quando o Pe. Tomás Pereira de Araújo concluiu a edificação da atual basílica. Acabados todos os retoques do interior, a imagem de Nossa Senhora da Guia foi finalmente traslada para a nova matriz a 5 de agosto de 1867, em meio a memoráveis festejos. Rededicou-se, então, a matriz primitiva sob o título de Nossa Senhora do Rosário. Hoje esta se acha tombada pelo IPHAN.
|
Detalhe da imagem de Nossa Senhora da Guia, venerada na basílica de Acari (imagem disponível no perfil da paróquia no Facebook). |
A guia a que essa advocação refere é uma estrela. Como disse na postagem anterior, é um símbolo mariano antiquíssimo: aparece acima da cabeça da Virgem com o Menino numa pintura que remonta ao século III, conservada nas Catacumbas de Priscila, em Roma. Sobre a sua cabeça e/ou o ombro direito, tornou-se convencional na iconografia bizantina. Além disso, entre as invocações da ladainha lauretana conta-se "Stella matutina", ou seja, "Estrela da manhã", a que reflete a luz do sol e, por isso, é o corpo celeste mais brilhante ao amanhecer e ao entardecer, tal como Maria Santíssima excele a todas as criaturas em virtude da encarnação do Verbo, que é a verdadeira luz (João, 1, 9). Também por nos servir de guia (João, 14, 6), como celebrado no primeiro verso e título do hino Ave Maris Stella ('Ave, Estrela do Mar'), do século IX, e confirmado pela exortação apostólica Evangelii nuntiandi (1975), de São Paulo VI, e pela Evangelii gaudium (2013), do papa Francisco: a "Estrela da (Nova) Evangelização".
|
Brasão da paróquia de Nossa Senhora da Guia de Acari (imagem disponível no perfil da paróquia no Facebook). |
A paróquia de Nossa Senhora da Guia de Acari traz um brasão perfeitamente correto: de azul com uma asna de prata, acompanhada do monograma MI de ouro, coroado do mesmo, uma estrela de prata e o cristograma ΧΡ de ouro; sob o escudo, uma cruz processional. Apenas no desenho usado pela paróquia vê-se um erro de execução, por certo muito comum: dois matizes para o mesmo esmalte, neste caso o brilhante e o fosco para o ouro, o branco e o cinza para a prata. Como expliquei na postagem de 22/03, cada artista pode definir a sua própria paleta, mas deve aplicá-la de forma coerente, evitando de dar matizes diferentes a figuras iluminadas do mesmo esmalte.
Ainda que corretíssimo do ponto de vista formal, o conceito parece-me criticável. Primeiro, o monograma MI — que consiste na letra M (de Maria) atravessada por um I (de Iesus ou Jesus) na horizontal e rematado por uma cruz latina — é distintivo da Medalha Milagrosa, portanto está mais intimamente ligado ao título de Nossa Senhora das Graças. O monograma mariano menos marcado é o MA, ou seja, um M e um A entrelaçados, de variável caligrafia ou tipografia. Depois, o artista procurou desenhar exatamente a estrela que a imagem sacra carrega, o que não é de boa heráldica. A figura heráldica não precisa reproduzir nenhum objeto concreto, porque por natureza é estilizada. Além disso, a estrela que distingue a padroeira já é um símbolo mariano, de modo que o acúmulo do monograma causa uma "redundância simbólica". Suspeito de que o emprego dessas duas figuras foi demandado pela asna, uma peça que dificilmente assenta bem com três figuras diferentes.
|
Proposta de brasão para a paróquia de Nossa Senhora da Guia de Acari: de azul com uma estrela de oito raios de prata, acompanhada de um pano de muralha do mesmo, firmado nos flancos e num pé ondado de azul e prata e, em chefe, de três açucenas de prata, com o estame e os carpelos de ouro; sob o escudo, uma umbela basilical e duas chaves passadas em aspa; divisa: Ave Maris Stella, escrita de negro em listel de prata. |
Assim, segue a minha proposta: de azul com uma estrela de oito raios de prata, acompanhada de um pano de muralha do mesmo, firmado nos flancos e num pé ondado de azul e prata e, em chefe, de três açucenas de prata, com o estame e os carpelos de ouro; sob o escudo, uma umbela basilical e duas chaves passadas em aspa; divisa: Ave Maris Stella, escrita de negro em listel de prata. Passo a justificá-la.
Em primeiro lugar, esse projeto não demanda senão dois esmaltes: um metal e uma cor. Para iluminar o campo, a cor mariana por excelência: o azul. De fato, é a cor tanto da túnica como do manto de Nossa Senhora da Guia na imagem venerada na basílica de Acari. Quanto às figuras, todas ficam bem de prata. Ainda sobre elas, tenho uma opinião pessoal a respeito de como se deve ordenar um brasão paroquial. Penso que, idealmente, deve apresentar ao menos:
- Por figura principal, uma referência ao orago, preferentemente um dos seus atributos icônicos;
- por figura secundária, uma referência a uma das pessoas da Santíssima Trindade, preferentemente também um atributo icônico;
- também por figura secundária, uma referência ao município, preferentemente a figura principal do seu emblema.
Assim, codifica-se perfeitamente em linguagem heráldica a sentença igreja dedicada a Deus sob o título de tal santo ou santa em tal lugar. Em sentido contrário, um leitor de repertório razoável decodifica-a facilmente.
Efetivamente, no presente projeto a estrela é a referência a Nossa Senhora da Guia, o seu atributo icônico, que já comentei. Em particular, escolhi a de oito raios porque a sua forma circular assenta melhor como figura principal. Quanto ao pano de muralha sobre o pé d'água, representa o açude Gargalheiras, a figura principal do emblema municipal de Acari, cuja elaboração heráldica justifiquei noutra proposta de brasão, a que fiz para o município na postagem de 03/03.
Enfim, os lírios. Selecionei-os para referirem ao Menino Jesus. Frequentemente, ele é figurado segurando um orbe com uma cruz, que na heráldica corresponde à figura denominada mundo, como expliquei na postagem anterior. Porém na imagem de Nossa Senhora da Guia venerada na basílica de Acari, o Menino não traz nenhum atributo icônico. Não obstante, na iconografia ocidental costuma-se assinalar a sua presença com lírios: as representações de São José e Santo Antônio são os exemplos mais notáveis. Com efeito, desde a Antiguidade tardia os Padres da Igreja evocaram metáforas florais para abordar diversas questões cristológicas e mariológicas, como o fez São Pedro Damião (1007-1072) no seu terceiro sermão sobre a Natividade de Nossa Senhora:
Hodie impleta est prophetia illa, quam eximius Prophetarum Isaias, quasi præco factus ad adventum reginæ mundi, magna voce clamabat dicens: "Egredietur virga de radice Jesse, et flos de radice ejus ascendet". Et bene hæc incomparabilis Virgo virga dicitur, quæ per intensionem desiderii ad superna emicuit, non per siccitatem boni operis distortæ nodositatis vitium incurrit. De qua virga redemptor noster, quasi flos ascendit, qui martyribus et confessoribus suis totius orbis campos, velut rosis et liliis decoravit. Singularis namque flos sanctæ Ecclesiæ ipse est, sicut de semetipso in Cantico canticorum loquitur, dicens: "Ego flos campi et lilium convallium". Hoc lilium non in montibus, sed in convallibus nascitur, quia superbis Deus resistens, in humilium cordibus invenitur. Lilium vocatur Christus, lilium dicitur et Mater Christi, sicut in eodem Cantico subinfertur: "Sicut lilium inter spinas, sic amica mea inter filias". Sicut lilium inter spinas, sic beatissima Virgo Maria enituit inter filias, quæ de spinosa propagine Judæorum nata, candescebat munditia virgineæ castitatis in corpore, flammescebat autem ardore geminæ caritatis in mente, fragrabat passim odore boni operis, tendebat ad sublimia intentione continua cordis. (2)
O número de três lírios defini mais por motivação estética do que simbólica: em chefe, figuras que têm mais ou menos as mesmas largura e altura ficam bem repetidas. No entanto, a riqueza simbólica do número três fornece facilmente vários significados: a Trindade Santa, o tríduo pascal, as virtudes teologais etc.
Para acabar, um aspecto muito interessante deste projeto são os ornamentos externos. O decreto Domus ecclesiæ, que citei no início da postagem, afirma que pelo título de basílica menor "vinculum peculiare cum Ecclesia romana et Summo Pontifice significatur" ("se exprime um vínculo peculiar com a igreja romana e o Sumo Pontífice"), daí que "signum pontificium, id est, 'claves decussatæ', adhiberi poterit in vexillis, in supellectile, in sigillo Basilicæ" ("se poderá deferir o sinal pontifício, isto é, as 'chaves decussadas', nas bandeiras, na mobília, no selo da basílica"). Portanto, fica mais que claro por que se sobrepõe o escudo de uma basílica menor às chaves passadas em aspa que assinalam a dignidade pontifícia, presentes no emblema da Santa Sé e nas armas do papa.
Já a umbela, é mais um desses itens da heráldica eclesiástica que não está codificado, mas deve o seu uso à tradição. Como a cruz processional e o báculo, corresponde a um objeto real: era o guarda-sol do papa, amarelo e vermelho por serem as cores da Santa Sé até 1808. Cada basílica maior possuía uma para acolher o pontífice quando a visitava, daí que tenha evoluído em dois sentidos. Por um lado, tornou-se o sinal visível de que a igreja tem o título de basílica, pois até hoje se ostenta ao lado do altar-mor, inclusive fica meio fechada e só é desfraldada durante visita papal. Por outro, tornou-se uma figura emblemática: o conjunto das chaves decussadas com a umbela já figurava no vexilo da Santa Igreja Romana (ou simplesmente gonfalão da Igreja) sob o pontificado de Bonifácio VIII (1294-1303), daí que quem o levava, isto é, o vexilífero da Santa Igreja Romana (ou simplesmente gonfaloneiro da Igreja), gozava do privilégio de acrescentá-lo às suas armas, carregando uma pala de vermelho. Ainda hoje o faz o camerlengo da Santa Igreja Romana durante a vacância da Sé Apostólica, mas na forma de ornamentos externos, sob o escudo.
Notas:
(1) "Goze a igreja de certo renome no conjunto da diocese, por exemplo porque foi construída e dedicada a Deus na ocasião de certo evento histórico-religioso particular ou nela se guarda o corpo ou uma relíquia insigne de algum santo ou se venera de modo particular certa imagem sacra. Há-se de examinar também o valor da igreja, ou seja, a sua importância histórica e decoração artística." (tradução minha)
(2) "Hoje se cumpriu aquela profecia, que Isaías, o mais assinalado dos profetas, de certo modo feito arauto para o advento da rainha do mundo, em alta voz clamava, dizendo: 'Um broto vai surgir do tronco seco de Jessé; das velhas raízes um ramo brotará'. É justo que essa incomparável Virgem seja chamada de talo, que pela intensidade do anseio se elevou ao mais alto, e não por sequidão de boas obras se abateu o vício de distorcida nodosidade. Desse talo surgiu o nosso redentor como se fosse uma flor, que com os mártires e confessores ornou os campos do mundo todo como com rosas e lírios. De fato, ele é a flor singular da santa Igreja, tal como fala de si mesmo no Cântico dos Cânticos, dizendo: 'Eu sou a flor do campo e o lírio dos vales'. Esse lírio não nasce nos montes, mas nos vales, porque Deus, que se opõe aos soberbos, se acha nos corações dos humildes. Cristo é chamado de lírio, também a Mãe de Cristo, como se acrescenta no mesmo Cântico: 'Como o lírio entre espinhos, assim é minha amada, entre as moças'. Assim como o lírio entre os espinhos, a bem-aventurada Virgem Maria brilhou entre as moças, a qual, nascida do espinhoso rebento dos judeus, alvejava pela pureza da virgínea castidade no corpo, flamejava pelo ardor de parelha caridade na mente, cheirava por toda a parte a boas obras, visava ao alto com contínuo esforço de coração." (tradução minha)