29/04/21

OS NOVE DA FAMA

Os Nove da Fama personificam a cavalaria, cuja dimensão estética era a heráldica, daí que os seus brasões abram o Livro do Armeiro-Mor.

Atenção! As armas de todos os Nove da Fama são imaginárias, já que mesmo os personagens históricos viveram antes do surgimento da heráldica.

Do Livro do Armeiro-Mor (1509):

Fólio 1r: Josué, duque.
Fólio 1r: Josué, duque.

Josué, duque: De ouro com uma serpe de verde, armada e lampassada de vermelho.

Fólio 1v: Rei Davi.
Fólio 1v: Rei Davit.

Rei Davi: De azul com uma harpa de ouro.

Fólio 2r: Judas Macabeu.
Fólio 2r: Judas Macabeu.

Judas Macabeu: De ouro com dois corvos voantes de negro, um sobre o outro.

Fólio 2v: O rei Alexandre.
Fólio 2v: El-rei Alexandre.

O rei Alexandre: De vermelho com um leão de ouro, sentado numa cadeira de sua cor, segurando uma alabarda de prata, hasteada de sua cor.

Fólio 3r: Heitor, duque.
Fólio 3r: Heitor, duque.

Heitor, duque: De ouro com um leão de vermelho, segurando um machado de prata, encabado de sua cor.

Fólio 3v: Júlio César.
Fólio 3v: Július César.

Júlio César: De ouro com uma águia de duas cabeças de negro, bicada e membrada de vermelho. São as armas do imperador do Sacro Império (imperator Romanorum), cuja atestação mais antiga remonta a meados do século XIII. Com a águia de uma só cabeça, são atualmente as armas federais da Alemanha.

Fólio 4r: Rei Artur.
Fólio 4r: Rei Artur.

Rei Artur: De azul com três coroas de ouro, alinhadas em pala.

Fólio 4v: Carlos Magno.
Fólio 4v: Carlo Magno.

Carlos Magno: Partido dimidiado, o primeiro de ouro com uma águia de duas cabeças de negro, bicada e membrada de vermelho; o segundo de azul com três flores de lis de ouro. O termo dimidiado é usado na heráldica britânica, mas se mostra mais preciso do que rodeios como meia águia movente do partido. Com efeito, brasona-se por inteiro cada um dos dois brasões e o termo basta para indicar que se há de desenhar cada um como se tivesse sido cindido pela metade. Neste caso, uniram-se as armas do imperador do Sacro Império (imperator Romanorum) e as do rei da França. Ambas remontam ao século XIII.

Fólio 5r: Rei Godofredo de Bulhão.
Fólio 5r: Rei Gudefroe de Bulhom.

Rei Godofredo de Bulhão: De prata com uma cruz potenteia de ouro, cantonada de quatro cruzetas do mesmo. São as armas reais de Jerusalém, que remontam ao reinado de João de Brienne (1210-25).

Fólio 5v: Bertrand du Guesclin.
Fólio 5v: Bertrão de Guesclim.

Bertrand du Guesclin: De vermelho com um leão de ouro; chefe de França. Na verdade, o condestável trazia de prata com uma águia de duas cabeças de negro, bicada e membrada de vermelho, e uma cotica do mesmo brocante sobre tudo.

Na postagem de 18/03, apresentei os Nove da Fama para ilustrar a ascensão dos arautos a oficiais de armas dentro da visão de mundo baixo-medieval, mas isso não explica todo o sucesso dos Nove da Fama, que, como mostrei, chega, de certo modo, até nós, porque são os protagonistas de matérias literárias que seguem rendendo estórias de que ainda gostamos, não mais contadas em milhares de versos, mas por meio da tecnologia do nosso tempo.

Como conjunto, os Nove da Fama parecem ter sido criados por Jacques de Longuyon, que enxertou 102 versos sobre esses personagens nos Vœux du paon ('Votos do pavão', 1310-1312), poema seu que é, à sua vez, uma longa interpolação do Roman d'Alexandre. Com efeito, Glynnis M. Cropp, em artigo de 2002, no qual oferece uma edição desses versos, observa que deixam ver uma composição à parte, embora perfeitamente coesa com o fio da narração: a comparação superestima as qualidades do cavaleiro Porrus, abrandando a violência que se vinha desenrolando através de um interlúdio agradável e útil, e em seguida confirma que não é Porrus, mas Alexandre o verdadeiro herói do romance. É que os Nove da Fama foram mais que bravos guerreiros, eles foram poderosos líderes, daí que no Livro do Armeiro-Mor àqueles que não possuíram títulos monárquicos se tenha dado o de "duque", cujo sentido não é o nobiliário, mas o etimológico: do latim dux, ducis 'general'.

Na configuração primitiva, a sequência dos Nove da Fama era mais teológica que cronológica: primeiro os três heróis pagãos (Heitor, Alexandre o Grande, Júlio César), depois os judeus (Josué, Davi, Judas Macabeu) e por último os cristãos (Artur, Carlos Magno e Godofredo de Bulhão), ou seja, sob a perspectiva da salvação, partia-se do referente mais longínquo para se chegar ao mais próximo ao leitor/ouvinte. No entanto, do século XV em diante assumiu-se uma perspectiva mais histórica, sob a qual se escreveram obras que reúnem uma crônica breve de cada um dos Nove. Foi uma dessas obras que serviu de fonte a João do Cró para a elaboração do primeiro capítulo do Livro do Armeiro-Mor: Le triumphe des Neuf Preux, impresso em 1487. Eis as gravuras de um exemplar conservado na Bibliothèque nationale de France:

Fólio 35r: Josué, roi.
Fólio 35r: Josué, roi.

Fólio 57r: David.
Fólio 57r: David.

Fólio 113: Judas Maccabëus.
Fólio 113: Judas Maccabëus.

Fólio 139r: Alixandre.
Fólio 139r: Alixandre.

Fólio 255r: Hector.
Fólio 255r: Hector.

Fólio 323r: Julius César.
Fólio 323r: Julius César.

Fólio 423r: Arthus.
Fólio 423r: Arthus.

Fólio 459r: Charlemagne.
Fólio 459r: Charlemagne.

Fólio 489r: Godefroi de Billon.
Fólio 489r: Godefroi de Billon.

Fólio 531r: Bertrand.
Fólio 531r: Bertrand.

A semelhança com as iluminuras do Livro do Armeiro-Mor é absolutamente evidente, inclusive as armas atribuídas a Bertrand du Guesclin. Apenas divergências nos esmaltes de alguns brasões aqui e ali, o que de resto era habitual então, sobretudo em se tratando de armas imaginárias. Na verdade, o iluminador do incunábulo devia de ser pouco versado em heráldica, já que pôs metal sobre metal nas armas de Alexandre o Grande e de Heitor. Além disso, vale a pena ler o prólogo:

Très Noble et très Chrestien Charles, VIII de ce nom, par la grâce de Dieu Roi de France, je, qui pour ma petitesse ne veuil présumer moi nommer, connoissant qu'entre les autres très grandes et nobles vertus dont Dieu, nostre créateur, vous aourne, vous désirez oïr, narrer et réciter les vertueuses proesses dont aucuns rois terriens ont esté grandement décorés en ce présent monde, vous notifie qu'en ceste nuit en dormant, les yeux clos et l'entendement ouvert et esveillé, se sont présentés à moi neuf personnages de diverses sortes. Et néanmoins, contendants, comme il me semble, tous à une fin, desquels les trois premiers et plus anciens en apparence estoient juifs de grande et singulière présentation, desquels le premier se nommoit Josué, homme de grande stature. Le second, David, qui portoit en chief couronne d'or fin. Le tiers avoit nom Judas Maccabëus, puissant et robuste de corps. Les autres trois personnages qui les premiers suivoient estoient payens et sembloient bien de grande autorité, de belle stature estoient, mais fel et austère regard avoient. Le premier desquels estoit Alexandre le Grand, couronne portant en teste et sceptre en la main, et se maintenoit comme empereur. Le second estoit grand et élevé, de beau corsage, tenant la main à son espée, et se nommoit Hector de Troie. Et le tiers estoit en armes, un manteau de pourpre dessous son bras sénestre et estoit nommé Julius César. Des trois derreniers commençai à spéculer et remirer les personnages, qui à merveilles estoient vénérables, magnifiques et de mout honneste représentation, dont le premier portoit couronne d'or mout riche en son chief et se nommoit Arthus, qui portoit escu de gueules à trois couronnes d'or. Le second estoit beau, haut et élevé, longue barbe, couronne impériale sur sa teste portoit et s'y avoit afulé un manteau de deux couleurs, parties d'azur et d'or, sur l'une desquelles, c'est à savoir, sur la dextre, avoit un aigle de sable à deux testes et l'autre chargé de fleurs-de-lis d'or, et se nommoit Charles le Grand. Et le tiers et derrenier des neuf estoit mout honneste, simple et courtois, couronnes d'espines portoit et se nommoit Godefroi de Buillon, qui portoit escu d'argent à une croix d'or potencée. Ces trois derreniers estoient chrestiens. Tous lesquels personnages conduisoit une dame qui en son maintien et vesture sembloit bien de grande révérence et autorité, portant entre ses mains une riche couronne de laurier. Et comme à demi effrayé je lui demandasse son nom et la cause de sa venue, attendu que les neuf autres dessus dits ne sonnoient mot, elle doucement me respondit qu'elle avoit nom Triumphe, laquelle demandoit avoir chascun d'iceux vassaux ensemble sa couronne de laurier, mais pource qu'à sa nativité lui avoit esté donné un don fatal, qui estoit tel que jamais ne seroit donné à homme, sinon au plus vaillant et au plus preux des autres. Et pource que tous les présents se disoient et nommoient preux, elle vouloit savoir lequel l'estoit le plus des autres, auquel elle peüst estre donné avec sa couronne. Et pour ceste cause estoit venue devers moi ensemble eux, pour et afin que je meisse par escrit les faits particuliers d'un chascun d'eux.

Em português:

Nobilíssimo e Cristianíssimo Carlos, VIII deste nome, pela graça de Deus Rei da França, eu, que pela minha pequenez não quero presumir de me nomear, sabendo que entre as muito grandes e nobres virtudes com que Deus, nosso criador, o adorna, Vossa Majestade deseja ouvir, narrar e recitar as virtuosas proezas com que alguns reis terrenos foram grandemente condecorados no presente mundo, notifico-lhe que nesta noite dormindo, fechados os olhos, aberto e desperto o entendimento, apresentaram-se a mim nove personagens de diversas formas. Não obstante, concorrentes, como me parece, todos a um fim, dos quais os três primeiros e mais antigos na aparência eram judeus de grande e singular presença, dos quais o primeiro se chamava Josué, homem de grande estatura. O segundo, Davi, trazia na cabeça uma coroa de ouro fino. O nome do terceiro era Judas Macabeu, poderoso e robusto de corpo. Os outros três personagens que seguiam os primeiros eram pagãos e pareciam também de grande autoridade, eram de bela estatura, mas tinham um olhar fero e austero. O primeiro deles era Alexandre o Grande, trazendo uma coroa na cabeça e um cetro na mão, portava-se como imperador. O segundo era grande e erguido, de belo tronco, tendo a mão na sua espada, chamava-se Heitor de Troia. E o terceiro estava armado, um manto púrpura debaixo do seu braço esquerdo e era chamado Júlio César. Dos três últimos comecei a observar e reparar nos personagens, que eram maravilhosamente veneráveis, magníficos e de muito decente representação, o primeiro dos quais trazia uma coroa de ouro muito rica na sua cabeça e se chamava Artur, que trazia um escudo de vermelho com três coroas de ouro. O segundo era belo, alto e erguido, barba longa, coroa imperial sobre a sua cabeça e vestira-se com um manto de duas cores, partido de azul e ouro, sobre uma, a saber, a da direita, tinha uma águia de negro de duas cabeças, e a outra carregada de flores de lis de ouro, e chamava-se Carlos o Grande. O terceiro e derradeiro dos nove era muito decente, singelo e cortês, trazia coroas de espinhos e chamava-se Godofredo de Bulhão, que trazia um escudo de prata com uma cruz potenteia de ouro. Estes três últimos eram cristãos. Todos esses personagens conduzia uma dama que no seu porte e vestimenta parecia também de grande reverência e autoridade, trazendo entre as suas mãos uma rica coroa de louros. E como meio assustado lhe perguntasse o seu nome e a causa da sua vinda, dado que os outros nove supraditos não diziam palavra, ela docemente me respondeu que o seu nome era Triunfo, a qual cada um daqueles vassalos pleiteava ter junto com a sua coroa de louros, mas porquanto à sua natividade lhe foi dado um dom fatal, nunca seria dado a homem algum, a não ser ao mais valente e ao mais prezado que os demais. E porquanto todos os presentes se diziam e se chamavam prezados, ela queria saber qual era o mais prezado que os demais, ao qual pudesse ser dada com a sua coroa. E por esta causa viera até mim junto com eles, para e a fim de que eu pusesse por escrito os feitos particulares de cada um deles.

Fica claro que o fato de os Nove da Fama terem sido líderes excelentes tornou as suas histórias mais que deleitosas para os nobres, para os quais a cavalaria era cada vez menos prática e mais discurso, porque eram cada vez menos guerreiros e mais cortesãos: eram também instrutivas para os soberanos, que nelas apreendiam exemplos de bons governantes e audazes conquistadores. Ademais, o número nove, além de acomodar três tríades, permitia a adição de um personagem a mais para completar a década, como Bertrand du Guesclin, que aparece nessa posição desde as baladas de Eustache Deschamps (1346-1404/05). Trocando em miúdos, as histórias dos Nove da Fama podiam destinar-se à glorificação de um príncipe ou senhor, não só pelo relato das suas façanhas à guisa de décimo prezado, mas também pela dedicatória da obra.

Com efeito, o Triumphe des Neuf Preux foi novamente impresso em 1507 e traduzido por Antônio Rodrigues, rei de armas Portugal, para o espanhol em 1530, sob o título de El triunfo de los Nueve Preciados de la Fama. Isso não só prova que dessa obra se tirou o primeiro capítulo do Livro do Armeiro-Mor, mas a epístola em português que o tradutor endereça ao rei Dom João III patenteia as múltiplas funções que as histórias dos Nove da Fama cumpriam nas sociedades quinhentistas:

Mui Alto e mui Poderoso e Sereníssimo Príncipe Dom João, III deste nome, nosso Senhor, pola graça divinal Rei de Portugal e da verdadeira Lusitânia e Reino dos Algarves d'aquém e d'além-Mar em África e dela perpétuo Conquistador, Senhor das partes de Guiné e de todo dourado Oceão, com todas suas terras e ilhas súbditas ao radiante sol, Rei e Senhor dos Reinos de Goa e de Quíloa e do Reino de Malaca e de Maluco, com todas suas ilhas, por quem reina o rico rei de Ormuz e de Cochim e a quem outros muitos reis, por força d'armas lusitânias conquistadas, pagam trebuto, e Senhor de toda a Conquista e Navegação de Etiópia, Arábia, Pérsia e da Índia, verdadeiro possuidor de tôdolos seus requíssimos comércios e aromáticos fruitos etc. Movendo-me aquele dito do filósofo no primeiro da Matafísica, mui Esclarecido Príncipe e Senhor, que tôdolos hómẽes naturalmente desejam saber, e porque as cousas passadas se vereficam nas presentes e são espelho, exempro em que se vem e podem prover as foturas, nas quaes consiste todo entendimento perfeito dos homens, procedente do Altíssimo Deus, e assi porque em sua arte, perito e douto a cada um ser convém, sendo já eu desde minha tenra idade nos estudos exercitado, lendo por livros de diversos e diferentes linguágẽes, como ao bõo rei d'armas pertence, achei ũa obra em linguagem francesa, a qual por certo me paresceu digna de ser lembrada, porque o mais verdadeiramente que pode ser trata em particular as nove vidas dos mui famosos e prezados Nove da Fama, scilicet, três hebreus e três gentios e três cristãos, e assi também escreve a vida do esforçado cavaleiro Beltrão de Guesclim, natural bretão, condestabre que foi de França, na qual se trata das guerras que em seu tempo foram entre ingreses e franceses em Castela em tempo d'el-rei Dom Pedro. E certamente em diversos livros se poderão com grande trabalho achar estas dez vidas defusamente escritas, mas tão verdadeiramente e em tanta abondança no que é necessário e em tão breve estilo e volume tão pequeno copiladas certefico que se nom achem em outra algũa linguagem. E porque esta obra pretende e trata do triunfo da verdadeira política, nobreza, glória das armas, ao que eu por meu ofício tenho grande afeição por lhe dar nova vida, treladá-la em esta mais comum linguagem mui expediente me paresceu, com mais importuno trabalho e vegílias que necessidade de outra ciência, por ser necessário bem oulhar os livros donde estas dez vidas tiradas fôrom. E posto que o autor compoendor desta obra em linguagem francesa se não quisesse nomear, louvando-se em seu proêmio, todavia ele dedicou esta obra a Carlos, rei de França, oitavo deste nome, pedindo-lhe que lhe aprouvesse dar com os de seu Conselho sanção defenitiva, a qual destes nove mais se deve o glorioso treunfo da fama o que nunca até agora foi deciso nem determinado, e por certo não sem causa que pois, muito Sereníssimo Príncipe, toda a deferença destes nove consiste em qual deles mais floreceram as ditas mais soblimadas vertudes, scilicet, manhanimidade e fortaleza, decoradas com justiça, que tanto ao príncipe se requerem e em Vossa Alteza se acham em tão perfeito grao. A Vossa Alteza, por certo, pertence com mais dereito isto determinar e esta tão urgente razão tira e escusa minha baxa rudeza de culpa, por ser tão ousado de lhe ofrecer este meu prove trabalho, crendo que Vossa Alteza quererá mais resguardar a grande nobreza que em esta obra se trata e aos desejos que eu, humilde criado seu, tenho sempre de o servir, que ao meu fraco e humilde serviço, rogando sempre a Deus que em longa e mui próspera vida e acrecentamento sempre de estado queira conservar a Vossa Alteza. Amém. Etc.

Aí está tudo: os Nove da Fama personificam os ideais da cavalaria, que constituíam o código de conduta da nobreza, cuja fonte era o príncipe. Como a heráldica se converteu na dimensão estética desse código, resultava muito natural para as mentes de então que esses nove personagens tiveram brasões, de modo que parecia digníssimo que tais armas abrissem um armorial.

27/04/21

O LIVRO DO ARMEIRO-MOR

O Livro do Armeiro-Mor não é apenas uma obra-prima da iluminura em Portugal, mas também o armorial oficial português mais antigo dentre os preservados.

Damião de Góis, na quarta parte da Crônica do felicíssimo rei Dom Emanuel (1566-67, fl. 112), narra que esse rei:

Mandou ver tôdalas sepulturas do Reino pera delas se notarem as armas e insígnias e letreiros que nelas havia, das quaes armas mandou nos Paços de Sintra pintar tôdolos escudos com suas cores e timbres, em ũa fermosa sala que pera isso mandou fazer, além do que mandou fazer um livro muito bem iluminado, em que estão pintados os mesmos escudos das linhagens da nobreza destes Reinos. E pera se melhor ordenar e dar regimento aos reis d'armas, heraus e porsuivãs, mandou às cortes do emperador Maximiliano, reis de França e Inglaterra Antônio Rodríguez, rei d'armas Portugal, bacharel em leis, pera saber na verdade o modo que nisto estes príncipes tinham, com as quaes informações lhes deu regimento e fez nota do modo em que se hão de fazer as cartas dos ofícios de cada um deles, o que depois de ser ordenado fez em Lisboa, nos Paços da Ribeira, um auto público muito solene, em que deu nome a tôdolos reis d'armas, heraus, porsuivãs destes Reinos, a cada um deles separadamente de sua província.

Da Sala dos Brasões e do Regimento da nobreza dos reis de armas já tratei neste blog, destacando que a própria existência da heráldica gentilícia portuguesa, com tudo o que a distinguiu sob o Antigo Regime, se deve a Dom Manuel I. Agora se demonstra que a regulação estatal da armaria foi ainda mais estruturada do que aparentava, pois abrangeu não só a elaboração do armorial monumental do Paço de Sintra, mas também de códices iluminados. Mais que isto: a Coroa investiu até mesmo na formação dos oficiais de armas.

Ao contrário da citação, digo códices, no plural, porque efetivamente foram dois os armoriais produzidos sob esse reinado, possivelmente três: o chamado Livro antigo dos reis de armas, o conhecido como Livro do armeiro-mor e o intitulado Livro da nobreza e perfeição das armas. É ao terceiro que Damião de Góis refere, pois além de corresponder à Sala de Sintra, era o tombo de luxo à época. Com efeito, a história do Livro do Armeiro-Mor renderia uma novela.

Mas quem era o armeiro-mor? A primeira revelação dessa novela é que a palavra armeiro pode induzir à suposição de que o livro é conhecido por tal título porque brasões são ditos armas, a arte dos brasões é dita armaria e a própria coleção de brasões é dita armorial. Ledo engano: esse ofício da Casa Real nada tinha a ver com a heráldica. O armeiro-mor encarregava-se do armamento do país: a regulação do mister de armeiro, a fiscalização da fabricação de armas, o controle dos arsenais etc. Por que se lhe confiou, então, um armorial? Porque o seu ofício abarcava certa dimensão cerimonial: guardava o armamento pessoal do rei, bem como os vexilos régios. Com efeito, Antônio Caetano de Sousa, no primeiro tomo da sua História genealógica da Casa Real portuguesa (1735, p. 194), dá os aditamentos que se fizeram ao regimento do armeiro-mor, dentre o quais o seguinte:

Ordenamos que o livro que mandamos fazer das armas dos fidalgos de nossos Reinos o traga sempre o dito nosso armador-mor em uma das arcas em que andarem as armas de nossa pessoa para que, cada vez que o quisermos ver ou cumprir de ser visto por algum caso, no-lo possa mostrar e dar.

Daí que não tarde a segunda revelação: ainda que se tenha tornado celebérrimo na comunidade heráldica, dentro e fora do mundo lusófono, após a sua entrada no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, permaneceu sob os cuidados de Álvaro da Costa, investido no cargo de armeiro-mor em 1511, desde que lhe foi entregue, depois passou à guarda dos descendentes dele (viscondes de Mesquitela desde 1754, condes desde 1818 e duques de Albuquerque desde 1886) até o fim do século XIX. Ou seja, por quase quatro centênios ficou longe não só da vista do público, mas também da dos próprios oficiais de armas e estudiosos. Anselmo Braamcamp Freire, no primeiro tomo dos Brasões da Sala de Sintra (1921), conta como se salvou o códice de um destino incerto:

Também concorri um pouco para que precioso livro das armas se não perdesse, e de façanhas destas ninguém levará a mal gabar-me.
Estava eu um dia num grande armazém de leilões e vendas na Avenida da Liberdade, quando apareceu o marquês da Foz, também frequentador da casa e grande comprador de objetos valiosos. Conversamos um bocado e de repente pregunta-me o Foz se eu conhecia um livro em pergaminho com brasões iluminados. O coração estremeceu-me logo, mas, não dando nada a conhecer, fui puxando e ouvindo, e já persuadido de que se tratava do Livro do Armeiro-Mor, adquiri a certeza quando o marquês se me referiu a outro precioso manuscrito, um livro de horas, revelando haverem-lhe sido ambos oferecidos.
Não podia haver dúvidas. O duque de Albuquerque, armeiro-mor, tinha o livro na sua mão e havia morrido pouco antes; eram, pois, os herdeiros que tratavam de fazer dinheiro das duas preciosidades, ambas minhas conhecidas. Amicus Foz, sed magis amica heraldica: corri ao Terreiro do Paço, subi ao Ministério do Reino, falei ao ministro, então António Cândido Ribeiro da Costa, e preveni-o.
Este, ou outra pessoa, mandou pedir o livro da parte d'el-Rei aos herdeiros do falecido armeiro-mor e salvou-se a preciosidade. Posteriormente, por uma carta de 25 de junho de 1899, do atual conde de Mesquitela, um daqueles herdeiros, soube com exatidão como teve lugar a entrega do precioso códice. Foi o conde de São Mamede, secretário d'el-Rei, e não o ministro do Reino, quem, em nome de Dom Carlos e da sua parte, manifestou o desejo de consultar o livro, desejo imediatamente satisfeito. Não obstante, acrescentava eu em 1899 era para a Torre do Tombo que o livro precisava ir, não só por ser lá o seu lugar, mas também por a forma como ele saíra da mão dos herdeiros do penúltimo conde de Mesquitela assim o exigir.
Na Torre do Tombo já ele se encontra, tendo sido para lá remetido em setembro de 1912, segundo lacónica informação do atual diretor.

Portanto, o Livro do Armeiro-Mor não foi elaborado para constituir um grande tombo estatal, mas para servir de armorial privado ao rei, o que, de resto, materializa a virada do sistema heráldico clássico para o moderno que, precisamente, as Ordenações manuelinas consolidaram: de identificador individual, acessíveis a qualquer um, o brasão converteu-se em marcador de fidalguia e honra, ao tempo que a Coroa, erigindo-se em fonte de toda a nobreza, por ele controlava quem integrava esse estamento e quem ingressava nele. Não à toa quem assina a autoria do livro é o oficial de armas principal, rei de armas Portugal.

Com efeito, a autoria é o capítulo polêmico da novela. O autor identifica-se ao melhor estilo heráldico: reproduz o seu brasão e assina Rei d'Armas Portugal. Assim, descobrindo-se quem exercia esse cargo à data registrada — 15 de agosto de 1509 — conhecer-se-ia o nome do autor. O problema é que os documentos não batem: cartas de brasão apontam que pelo menos desde 1508 até 1559 esse ofício pertenceu a Antônio Rodrigues, mas não são as suas as armas que figuram no prólogo do Livro do Armeiro-Mor. Harvy L. Sharrer, em artigo de 2015, cita um relato de Francisco Coelho, rei de armas Índia, sobre a "viagem de estudos" à qual Dom Manuel enviou os oficiais de armas e Damião de Góis menciona:

[...] mandando primeiro três oficiais d'armas, chamados Antônio Rodrigues, que era rei de armas Portugal, e Martim Vaz, arauto, e João do Cró, passavante (a estes últimos dous lhe foram dadas armas de nobreza, como consta dos livros delas), os quais foram às cortes de alguns reis de Europa, a saber, do imperador, d'el-rei de França, de Inglaterra e de Castela, pera que muito na verdade se informassem e certificassem de todos os reis de armas daqueles reis e príncipes, de seus estatutos, costumes antigos, e da ordem e maneira em que na paz e na guerra serviam seus ofícios, de que lhe deu apontamentos, os quais reis de armas gastaram alguns anos nas cortes destes príncipes, e pelo que viram e pela boa informação que de tudo trouxeram, e também pelo que se achou que se usava de muito antigo no Reino, ordenou el-Rei novo regimento aos reis de armas, o qual se guarda no Tesouro da Casa Real, donde estão as cotas dos mesmos reis de armas, que vestem nos atos reais.

Como indica esse pesquisador no mesmo trabalho, o códice 1118atribuído a Antônio Soares de Albergaria e conservado na Biblioteca Nacional de Portugal, traz ao fólio 129r as armas de "João de Cró, rei d'armas: campo azul, três faixas d'ouro; cheve (sic) vermelho com águia de prata estendida". O brasão que se vê junto à assinatura do prólogo do Livro do Armeiro-Mor é cortado, o primeiro de vermelho com uma águia de prata, bicada e armada de negro; o segundo faixado de ouro e azul de oito peças. Não há dúvida de que uma reprodução e a outra consistem do mesmo brasão, divergente a mais recente por equívocos habituais. Ainda segundo o mesmo pesquisador, essa assinatura coincide com a de João do Cró em cartas de brasão que sabidamente foi ele quem passou. Até mesmo a incoerência de ter encontrado uma carta de brasão passada por Antônio Rodrigues aos 15 de março de 1508 Sharrer procura solver hipotetizandocom base numa carta datada de 6 de junho desse ano, que talvez este se achasse convalescente, de modo que João do Cró assumiu a elaboração do armorial e o assinou.

Diante de dados tão pouco dúbios, por que desde Braamcamp Freire até Manuel Artur Norton se disputa tanto sobre a autoria do Livro do Armeiro-Mor, um atribuindo-a a Antônio Rodrigues, o outro ao irmão deste, João Rodrigues? É que talvez João do Cró fosse, na verdade, Jean du Cros, ou seja, um arauto oriundo de terras francófonas. Já em comunicação de 1933, António Machado de Faria observava:

Suspeitamos que sob os olhos de Braamcamp passaram as descrições das armas de João du Cros, de António Rodrigues e de Martim Vaz em qualquer dos manuscritos do padre Soares de Albergaria, mas que talvez uma injustificada ideia patriótica o levasse a fingir ignorá-las a fim de poder dar a um português a glória de iluminador do códice, porque, como já dissemos no nosso estudo sobre este heraldista, Braamcamp não pode ter desconhecido o índice manuscrito das obras heráldicas e genealógicas da Biblioteca Nacional, onde aquelas armas vêm apontadas.

A revelação final da novela é que, por mais primoroso que seja, o estilo do Livro do Armeiro-Mor não é o heráldico clássico. Como observa Laurent Hablot em artigo de 2018, a heráldica compartilha diversas características essenciais com a arte românica:

La composition par superposition des plans — partant du fond de l'image vers le premier plan  ; l'horror vacui qui conduit à emplir les cadres ; l'usage de couleurs absolues, sans dégradé ni ombre ; la stylisation des figures donnant la priorité à l'idée sur la forme ; le gout pour les arrangements géométriques ; la hiérarchisation du contenu dans le contenant sont autant de grandes caractéristiques qui se retrouvent dans toutes les productions picturales des années 1150-1200 telles que les peintures murales ou les miniatures. (1)

Já a iluminura do Livro do Armeiro-Mor é claramente gótica, o que é muito natural, por predominar tal estilo então nesse tipo de arte. Um armorial elaborado por um arauto português em estilo heráldico clássico é o chamado De ministerio armorum, intitulado Livro de arautos pelo seu editor, do qual tratei em postagens anteriores.

O Livro do Armeiro-Mor não foi o primeiro armorial cuja feitura foi promovida pela Coroa. Já a carta de Dom Afonso V, que fez do rei de armas Portugal o oficial de armas principal e publiquei na postagem de 11/01, estabelecia: "E assi tenha, como agora tem, o livro do registro e tombo das ditas armas per mim novamente dadas e per ele ordenadas e das armas de todos os fidalgos antigos e de linha direita". Mas cartas de brasão deixam ver que esse tombo já existia ao menos desde 1471. Além disso, o chamado Livro antigo dos reis de armas também precedeu o Livro do Armeiro-Mor, possivelmente sob o reinado de Dom Manuel I. Em particular, foi dele que Frei Manuel de Santo Antônio e Silva, reformador do Cartório da Nobreza, se serviu principalmente para elaborar o seu Tesouro da nobreza de Portugal a partir de 1783, o armorial oficial até o fim da monarquia. Felizmente, pois tanto o tombo afonsino como o Livro antigo se perderam. Isso torna o Livro do Armeiro-Mor o armorial oficial português mais antigo dentre os preservados.

O Livro do Armeiro-Mor contém 365 brasões, ordenados em cinco capítulos de dimensão bastante desigual:

  • Capítolo primeiro dos Nove da Fama: compreende as armas imaginárias dos Nove da Fama;
  • capítulo seguinte dos brasões: compreende 49 armas, tanto reais como imaginárias, de diversos príncipes cristãos e muçulmanos;
  • capítolo da enlição do emperador d'Alemanha: compreende as armas dos sete príncipes eleitores do Sacro Império;
  • capítolo da sacra d'el-rei de França: compreende as armas dos doze pares de França;
  • capítulo da nobreza e geração de Purtugal: compreende as armas do rei de Portugal, da rainha, do príncipe, de títulos, fidalgos e linhagens nobres do Reino, perfazendo 287. Dá-las-ei em 24 postagens:
    • II: Duques de Bragança e Coimbra, marquês de Vila Real e condes de Penela, Odemira, Valença, Marialva, Monsanto e Atouguia;
    • III: Eça, Meneses, Castro, Cunha, Sousa, Pereira, Vasconcelos, Melo, Silva e Albuquerque;
    • IV: Freire de Andrade, Almeida, Diogo de Almeida, Pedro da Silva, Manuel, Moniz de Lusignan, Lima, Távora, Henriques e Mendonça;
    • V: Albergaria, Almada, Azevedo, Castelo Branco, Baião Resende, Abreu, Brito, Moniz, Moura e Lobo;
    • VI: Sá, Lemos, Ribeiro, Cabral, Cerveira, Miranda, Silveira, Falcão, Goios e Góis;
    • VII: Sampaio, Malafaia, Tavares, Pimentel, Sequeira, Costa, Lago, Corte Real, Meira e Aboim;
    • VIII: Pessanha, Teixeira, Pedrosa, Bairros, Mascarenhas, Mota, Vieira, Bethencourt, Aguiar e Faria;
    • IX: Borges, Pacheco, Soutomaior, Serpa, Barreto, Arca, Nogueira, Pinto, Coelho e Queirós;
    • X: Sem, Guivar, Duarte Brandão, Gama, Vasco da Gama, Fonseca, Ferreira, Magalhães, Fogaça e Valente;
    • XI: Boto, Lobato, Gorizo, Caldeira, Tinoco, Barbudo, Barbuda, Beja, Valadares e Larzedo;
    • XII: Galvão, Nóbrega, Barbosa, Godinho, Barbato, Aranha, Gouveia, Francisco de Beja, Jácome e Vogado;
    • XIII: Diogo Rodrigues Botilher, Maia, Serrão, Pedroso, Mexia, Grã, Pestana, Vila Lobos e Pedro de Alcáçova;
    • XIV: Gabriel Gonçalves, Gil vant Vistet, Afonso Garcês, Rolão d'Aussi, Xira, Pina, Pedro Lourenço de Guimarães, Matos, Dornelas e Cerqueira;
    • XV: Martim Leme, Antônio Leme, Vilhegas, Pedro Rodrigues, Figueira de Chaves, Veiga, Pau, Taveira, Ortiz e Azinhal;
    • XVI: Paim, Porras, Viveiro e João Lopes de Leão;
    • XVII: Frazão, Teive, Alcoforado, Homem, Dantas, Godim, Barradas, Leitão, Varejola, João Álvares Colaço, João Afonso de Santarém, Fernão Gomes da Mina, Vila Nova, Barba Longa, Privado, João da Fazenda, Gomide, Chacim, Taborda e Paiva;
    • XVIII: Filipe, Filgueira, Amaral, Casal, Velho, Lordelo, Peixoto, Novais, Carvoeiro, Gatacho, Borrego, Vale, Barroso, Fafes, Ulveira, Carregueiro, João Garcês, Gonçalo Pires Bandeira, Calça e Rabelo;
    • XIX: Portocarreiro, Azambuja, Paio Rodrigues, Matela, Botelho, Correia, Barbedo, Freitas, Carvalho, Negro, Pinheiro de Andrade, Pinheiro, Campos, Gil vant Ouvistet, Albernaz, Cardoso, Perdigão, Vinhal e Alpoim;
    • XX: Carvalhal, Búzio, Magalhanes, Maracote, Fróis, Lobeira, Frielas, Antão Gonçalves, Fuseiro, Morais, Unha, Alma, Martim Rodrigues, Refoios, Barbança, Moreira, Nicolau Coelho, Teive, Cordovil e Boteto;
    • XXI: Alvelos, Avelar, Chaves, Beça, Montarroio, Farinha, Cotrim, Figueiredo, Oliveira, Cogominho, Carreteiro, Marinho, Brandão, Sodré, Machado, Sardinha, Diogo Fernandes, João Lopes e André Rodrigues;
    • XXII: Jorge Afonso, Lobia, Guedes, Franca, Gramaxo, Castanheda, Trigueiros, Barboso, Revaldo, Outiz, Bulhão, Azeredo, Travaços, Leis, Quintal, Canto, Lagarto, Picanço, Feio e Rodrigo Esteves;
    • XXIII: Correão, Rocha, Rego, Galhardo, Drago, Corbacho, Camelo, Tourinho, Diogo Cão, Lanções, Araújo, Monteiro, Gavião, Carrilho, Arrais, Barros, João Fernandes do Arco, Fagundes, Caiado de Gamboa e Dom João Lobo;
    • XXIV: Severim, Presno, Dom Henrique de Coimbra, Luís Álvares de Aveio, Estêvão Martins, Riba Fria e Diogo de Torres.

Com a exceção daqueles timbrados com coroa e mitra e alguns outros, os escudos estão ao balão, isto é, figuram inclinados, pendentes de correias que saem dos elmos. Não há timbres (cimeiras) no Livro do Armeiro-Mor. Na verdade, os ornamentos externos não tinham, em geral, passado pela codificação que veio regulá-los. Até o fólio 116, cada brasão figura numa página. Talvez aí esteja um diferencial que contribuiu com a qualidade da obra: não tendo de reduzir tanto o tamanho do desenho, mas dispondo de uma superfície de 403 × 315 mm, o artista pôde desenvolver um trabalho de grande beleza.

Enfim, o meu próximo projeto neste modesto blog será dar a conhecer o Livro do Armeiro-Mor mostrando a digitalização que o Arquivo Nacional da Torre do Tombo levou a cabo, transcrevendo os textos com ortografia atual, brasonando as armas e tecendo um breve comentário aqui e acolá. A começar pelo prólogo:

Prólogo do Livro do Armeiro-Mor.
Prólogo do Livro do Armeiro-Mor.

Livro das armas que o muito Alto, muito Excelente e muito Poderoso Príncepe el-Rei Dom Manuel I, nosso Senhor, per graça de Deus Rei de Portugal e dos Algarves d'aquém e d'além-Mar em África e Senhor de Guiné e da Conquista, Navegaçom e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e da Índia, mandou a mi, Rei d'Armas Portugal, Juiz da Nobreza, que composesse e ordenasse e nele assentasse tôdalas armas dos reis e príncepes cristãos e assi judeus, mouros e gentios, donde primeiramente decende e começou a nobreza. E assi assentasse e posesse tôdalas armas dos nobres destes Reinos e Senhorios, cada ũas em seu lugar própio e ordem, como fôrom dadas antigamente a cada um. E pera elo me mandou dar juramento sobre os Santos Avangelhos per Pero de Lemos, seu capelão, e Afonso Mexia, escrivão da sua Câmara, que bem e verdadeiramente a cada um guardasse sua justiça, assi no lugar e antiguidade como todo al, e o assinasse de meu própio sinal e armas.

Feito em Lisboa, a 15 dias de agosto de 1509 anos.

Nota:
(1) "A composição por sobreposição dos planos — partindo do fundo da  imagem para o primeiro plano —; o horror vacui que conduz a preencher os quadros; o uso de cores absolutas, sem gradação nem sombra; a estilização das figuras, dando prioridade à ideia sobre a forma; o gosto pelos arranjos geométricos; a hierarquização do conteúdo no continente são tantas grandes características que se encontram em todas as produções pictóricas dos anos 1150-1200, como as pinturas murais ou as miniaturas." (tradução minha)

25/04/21

PROPOSTA DE BRASÃO PARA A PARÓQUIA DE NOSSA SENHORA DA GUIA DE ACARI

Uma paróquia não precisa possuir um brasão, mas se o seu administrador resolve adotar um, há um código a ser seguido: a heráldica.

Para encerrar esta série de postagens, recobro o mote que lhe deu origem: a concessão do título de basílica menor à Igreja Matriz de Nossa Senhora da Guia de Acari há exatamente trinta dias. Deixarei, pois, uma proposta de brasão novo para essa paróquia. Antes, como já é do meu feitio, tecerei algumas considerações à guisa de contextualização.

A primeira soará um tanto estranha, mas julgo necessária: uma paróquia não precisa possuir um brasão. O Código de Direito Canônico (Cân. 535, § 3) dispõe que "[t]enha cada paróquia um selo próprio; as certidões relativas ao estado canónico dos fiéis, tal como todos os atos que possam ter valor jurídico, sejam assinados pelo próprio pároco ou seu delegado, e munidos com o selo paroquial" (grifos meus). De selo (sigillum em latim) pode servir qualquer emblema que identifique a paróquia: um carimbo, um logotipo, uma marca, um brasão etc. No Brasil, tem-se vulgarizado a opção do brasão. Como entusiasta, acho ótimo, mas infelizmente se vê uma quantidade grande de "insignoides", ou seja, emblemas que parecem brasões, mas não o são, porque não estão ordenados segundo o código heráldico. É imperioso que o clero se instrua mais nesta matéria: se escolhe o brasão, há um código a ser seguido, que, como tal, se constitui de regras, as quais, à sua vez, têm caráter restritivo. Se esse caráter não condiz com o que se quer, pode-se optar por qualquer outra espécie de emblema, sem que isso implique em lapso ou mácula alguma.

Segundo, o que é uma basílica menor? Segundo o decreto Domus ecclesiæ, da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos (publicado no n.º 82 das Acta Apostolicæ Sedis, 1990, p. 436), dentre outras condições para obter esse título:

Ecclesia in universa diœcesi quadam celebritate gaudeat, verbi gratia quia ædificata est et Deo dicata occasione cujusdam peculiaris eventus historici-religiosi, aut in ea asservatur corpus vel insignis reliquia alicujus Sancti aut quædam sacra imago modo particulari colitur. Perpendenda quoque erunt ecclesiæ valor seu momentum historicum ejusque artis decus. (1)

Com efeito, a paróquia de Nossa Senhora da Guia de Acari é a segunda mais antiga do Seridó, depois da de Sant'Ana de Caicó, da qual foi desmembrada. Como expus na postagem de 08/03é um caso insólito, pois a elevação do povoado a vila, ainda pelo Conselho Geral da Província, antecedeu a da capela a freguesia, aquela em 1833 e esta em 1835. Em ambas, foi fundamental a ação do padre Tomás Pereira de Araújo.

Basílica de Nossa Senhora da Guia, Acari (imagem disponível no perfil da paróquia no Facebook).
Basílica de Nossa Senhora da Guia, Acari (imagem disponível no perfil da paróquia no Facebook).

Nascido em 1809 da estirpe que desbravou a ribeira do Acauã, fundou Acari e no século seguinte gerou os irmãos Eugênio e Heitor de Araújo Sales, arcebispos eméritos do Rio de Janeiro e de Natal, foi ordenado presbítero em 1832 após se ter formado no Seminário de Olinda. De volta a Acari no mesmo ano, tornou-se o capelão de Nossa Senhora da Guia. Em 1834, foi eleito deputado à primeira legislatura da Assembleia Legislativa Provincial, reeleito para as legislaturas de 1838-39, 1840-41, 1848-49 e 1860-61. Graças à sua atuação parlamentar, aprovou-se a ereção da capela e confirmou-se a do povoado. Ainda em 1835, foi nomeado vigário encarregado da nova freguesia, colado desde 1839 até 1870. Então e por três anos encarregou-se da freguesia de Nossa Senhora das Mercês de Cuité, mas em seguida reassumiu o cargo de vigário colado de Acari, no qual permaneceu até 1893, quando se retirou por motivo de doença e veio falecer.

Nave da basílica de Nossa Senhora da Guia de Acari (imagem disponível no perfil da paróquia no Facebook).
Nave da Basílica de Nossa Senhora da Guia de Acari (imagem disponível no perfil da paróquia no Facebook). 

A devoção a Nossa Senhora da Guia na ribeira do Acauã remonta ao começo do século XVIII. Em 1737, o sargento-mor Manuel Esteves de Andrade construiu, à instância de sua mãe, uma capela, dedicada sob essa invocação no ano seguinte. Após a sua ereção canônica, serviu de igreja matriz até 1863, quando o Pe. Tomás Pereira de Araújo concluiu a edificação da atual basílica. Acabados todos os retoques do interior, a imagem de Nossa Senhora da Guia foi finalmente traslada para a nova matriz a 5 de agosto de 1867, em meio a memoráveis festejos. Rededicou-se, então, a matriz primitiva sob o título de Nossa Senhora do Rosário. Hoje esta se acha tombada pelo IPHAN.

Detalhe da imagem de Nossa Senhora da Guia, venerada na basílica de Acari (imagem disponível no perfil da paróquia no Facebook).
Detalhe da imagem de Nossa Senhora da Guia, venerada na basílica de Acari (imagem disponível no perfil da paróquia no Facebook).

A guia a que essa advocação refere é uma estrela. Como disse na postagem anterior, é um símbolo mariano antiquíssimo: aparece acima da cabeça da Virgem com o Menino numa pintura que remonta ao século III, conservada nas Catacumbas de Priscila, em Roma. Sobre a sua cabeça e/ou o ombro direito, tornou-se convencional na iconografia bizantina. Além disso, entre as invocações da ladainha lauretana conta-se "Stella matutina", ou seja, "Estrela da manhã", a que reflete a luz do sol e, por isso, é o corpo celeste mais brilhante ao amanhecer e ao entardecer, tal como Maria Santíssima excele a todas as criaturas em virtude da encarnação do Verbo, que é a verdadeira luz (João, 1, 9). Também por nos servir de guia (João, 14, 6), como celebrado no primeiro verso e título do hino Ave Maris Stella ('Ave, Estrela do Mar'), do século IX, e confirmado pela exortação apostólica Evangelii nuntiandi (1975), de São Paulo VI, e pela Evangelii gaudium (2013), do papa Francisco: a "Estrela da (Nova) Evangelização".

Brasão da paróquia de Nossa Senhora da Guia de Acari (imagem disponível no perfil da paróquia no Facebook).
Brasão da paróquia de Nossa Senhora da Guia de Acari (imagem disponível no perfil da paróquia no Facebook).

A paróquia de Nossa Senhora da Guia de Acari traz um brasão perfeitamente correto: de azul com uma asna de prata, acompanhada do monograma MI de ouro, coroado do mesmo, uma estrela de prata e o cristograma ΧΡ de ouro; sob o escudo, uma cruz processional. Apenas no desenho usado pela paróquia vê-se um erro de execução, por certo muito comum: dois matizes para o mesmo esmalte, neste caso o brilhante e o fosco para o ouro, o branco e o cinza para a prata. Como expliquei na postagem de 22/03, cada artista pode definir a sua própria paleta, mas deve aplicá-la de forma coerente, evitando de dar matizes diferentes a figuras iluminadas do mesmo esmalte.

Ainda que corretíssimo do ponto de vista formal, o conceito parece-me criticável. Primeiro, o monograma MI — que consiste na letra M (de Maria) atravessada por um I (de Iesus ou Jesus) na horizontal e rematado por uma cruz latina — é distintivo da Medalha Milagrosa, portanto está mais intimamente ligado ao título de Nossa Senhora das Graças. O monograma mariano menos marcado é o MA, ou seja, um M e um A entrelaçados, de variável caligrafia ou tipografia. Depois, o artista procurou desenhar exatamente a estrela que a imagem sacra carrega, o que não é de boa heráldica. A figura heráldica não precisa reproduzir nenhum objeto concreto, porque por natureza é estilizada. Além disso, a estrela que distingue a padroeira já é um símbolo mariano, de modo que o acúmulo do monograma causa uma "redundância simbólica". Suspeito de que o emprego dessas duas figuras foi demandado pela asna, uma peça que dificilmente assenta bem com três figuras diferentes.

Proposta de brasão para a paróquia de Nossa Senhora da Guia de Acari: de azul com uma estrela de oito raios de prata, acompanhada de um pano de muralha do mesmo, firmado nos flancos e num pé ondado de azul e prata e, em chefe, de três açucenas de prata, com o estame e os carpelos de ouro; sob o escudo, uma umbela basilical e duas chaves passadas em aspa; divisa: Ave Maris Stella, escrita de negro em listel de prata.
Proposta de brasão para a paróquia de Nossa Senhora da Guia de Acari: de azul com uma estrela de oito raios de prata, acompanhada de um pano de muralha do mesmo, firmado nos flancos e num pé ondado de azul e prata e, em chefe, de três açucenas de prata, com o estame e os carpelos de ouro; sob o escudo, uma umbela basilical e duas chaves passadas em aspa; divisa: Ave Maris Stella, escrita de negro em listel de prata.

Assim, segue a minha proposta: de azul com uma estrela de oito raios de prata, acompanhada de um pano de muralha do mesmo, firmado nos flancos e num pé ondado de azul e prata e, em chefe, de três açucenas de prata, com o estame e os carpelos de ouro; sob o escudo, uma umbela basilical e duas chaves passadas em aspa; divisa: Ave Maris Stella, escrita de negro em listel de prata. Passo a justificá-la.

Em primeiro lugar, esse projeto não demanda senão dois esmaltes: um metal e uma cor. Para iluminar o campo, a cor mariana por excelência: o azul. De fato, é a cor tanto da túnica como do manto de Nossa Senhora da Guia na imagem venerada na basílica de Acari. Quanto às figuras, todas ficam bem de prata. Ainda sobre elas, tenho uma opinião pessoal a respeito de como se deve ordenar um brasão paroquial. Penso que, idealmente, deve apresentar ao menos:

  • Por figura principal, uma referência ao orago, preferentemente um dos seus atributos icônicos;
  • por figura secundária, uma referência a uma das pessoas da Santíssima Trindade, preferentemente também um atributo icônico;
  • também por figura secundária, uma referência ao município, preferentemente a figura principal do seu emblema.

Assim, codifica-se perfeitamente em linguagem heráldica a sentença igreja dedicada a Deus sob o título de tal santo ou santa em tal lugar. Em sentido contrário, um leitor de repertório razoável decodifica-a facilmente.

Efetivamente, no presente projeto a estrela é a referência a Nossa Senhora da Guia, o seu atributo icônico, que já comentei. Em particular, escolhi a de oito raios porque a sua forma circular assenta melhor como figura principal. Quanto ao pano de muralha sobre o pé d'água, representa o açude Gargalheiras, a figura principal do emblema municipal de Acari, cuja elaboração heráldica justifiquei noutra proposta de brasão, a que fiz para o município na postagem de 03/03.

Enfim, os lírios. Selecionei-os para referirem ao Menino Jesus. Frequentemente, ele é figurado segurando um orbe com uma cruz, que na heráldica corresponde à figura denominada mundo, como expliquei na postagem anterior. Porém na imagem de Nossa Senhora da Guia venerada na basílica de Acari, o Menino não traz nenhum atributo icônico. Não obstante, na iconografia ocidental costuma-se assinalar a sua presença com lírios: as representações de São José e Santo Antônio são os exemplos mais notáveis. Com efeito, desde a Antiguidade tardia os Padres da Igreja evocaram metáforas florais para abordar diversas questões cristológicas e mariológicas, como o fez São Pedro Damião (1007-1072) no seu terceiro sermão sobre a Natividade de Nossa Senhora:

Hodie impleta est prophetia illa, quam eximius Prophetarum Isaias, quasi præco factus ad adventum reginæ mundi, magna voce clamabat dicens: "Egredietur virga de radice Jesse, et flos de radice ejus ascendet". Et bene hæc incomparabilis Virgo virga dicitur, quæ per intensionem desiderii ad superna emicuit, non per siccitatem boni operis distortæ nodositatis vitium incurrit. De qua virga redemptor noster, quasi flos ascendit, qui martyribus et confessoribus suis totius orbis campos, velut rosis et liliis decoravit. Singularis namque flos sanctæ Ecclesiæ ipse est, sicut de semetipso in Cantico canticorum loquitur, dicens: "Ego flos campi et lilium convallium". Hoc lilium non in montibus, sed in convallibus nascitur, quia superbis Deus resistens, in humilium cordibus invenitur. Lilium vocatur Christus, lilium dicitur et Mater Christi, sicut in eodem Cantico subinfertur: "Sicut lilium inter spinas, sic amica mea inter filias". Sicut lilium inter spinas, sic beatissima Virgo Maria enituit inter filias, quæ de spinosa propagine Judæorum nata, candescebat munditia virgineæ castitatis in corpore, flammescebat autem ardore geminæ caritatis in mente, fragrabat passim odore boni operis, tendebat ad sublimia intentione continua cordis. (2)

O número de três lírios defini mais por motivação estética do que simbólica: em chefe, figuras que têm mais ou menos as mesmas largura e altura ficam bem repetidas. No entanto, a riqueza simbólica do número três fornece facilmente vários significados: a Trindade Santa, o tríduo pascal, as virtudes teologais etc.

Para acabar, um aspecto muito interessante deste projeto são os ornamentos externos. O decreto Domus ecclesiæ, que citei no início da postagem, afirma que pelo título de basílica menor "vinculum peculiare cum Ecclesia romana et Summo Pontifice significatur" ("se exprime um vínculo peculiar com a igreja romana e o Sumo Pontífice"), daí que "signum pontificium, id est, 'claves decussatæ', adhiberi poterit in vexillis, in supellectile, in sigillo Basilicæ" ("se poderá deferir o sinal pontifício, isto é, as 'chaves decussadas', nas bandeiras, na mobília, no selo da basílica"). Portanto, fica mais que claro por que se sobrepõe o escudo de uma basílica menor às chaves passadas em aspa que assinalam a dignidade pontifícia, presentes no emblema da Santa Sé e nas armas do papa.

Já a umbela, é mais um desses itens da heráldica eclesiástica que não está codificado, mas deve o seu uso à tradição. Como a cruz processional e o báculo, corresponde a um objeto real: era o guarda-sol do papa, amarelo e vermelho por serem as cores da Santa Sé até 1808. Cada basílica maior possuía uma para acolher o pontífice quando a visitava, daí que tenha evoluído em dois sentidos. Por um lado, tornou-se o sinal visível de que a igreja tem o título de basílica, pois até hoje se ostenta ao lado do altar-mor, inclusive fica meio fechada e só é desfraldada durante visita papal. Por outro, tornou-se uma figura emblemática: o conjunto das chaves decussadas com a umbela já figurava no vexilo da Santa Igreja Romana (ou simplesmente gonfalão da Igreja) sob o pontificado de Bonifácio VIII (1294-1303), daí que quem o levava, isto é, o vexilífero da Santa Igreja Romana (ou simplesmente gonfaloneiro da Igreja), gozava do privilégio de acrescentá-lo às suas armas, carregando uma pala de vermelho. Ainda hoje o faz o camerlengo da Santa Igreja Romana durante a vacância da Sé Apostólica, mas na forma de ornamentos externos, sob o escudo.

Notas:
(1) "Goze a igreja de certo renome no conjunto da diocese, por exemplo porque foi construída e dedicada a Deus na ocasião de certo evento histórico-religioso particular ou nela se guarda o corpo ou uma relíquia insigne de algum santo ou se venera de modo particular certa imagem sacra. Há-se de examinar também o valor da igreja, ou seja, a sua importância histórica e decoração artística." (tradução minha)
(2) "Hoje se cumpriu aquela profecia, que Isaías, o mais assinalado dos profetas, de certo modo feito arauto para o advento da rainha do mundo, em alta voz clamava, dizendo: 'Um broto vai surgir do tronco seco de Jessé; das velhas raízes um ramo brotará'. É justo que essa incomparável Virgem seja chamada de talo, que pela intensidade do anseio se elevou ao mais alto, e não por sequidão de boas obras se abateu o vício de distorcida nodosidade. Desse talo surgiu o nosso redentor como se fosse uma flor, que com os mártires e confessores ornou os campos do mundo todo como com rosas e lírios. De fato, ele é a flor singular da santa Igreja, tal como fala de si mesmo no Cântico dos Cânticos, dizendo: 'Eu sou a flor do campo e o lírio dos vales'. Esse lírio não nasce nos montes, mas nos vales, porque Deus, que se opõe aos soberbos, se acha nos corações dos humildes. Cristo é chamado de lírio, também a Mãe de Cristo, como se acrescenta no mesmo Cântico: 'Como o lírio entre espinhos, assim é minha amada, entre as moças'. Assim como o lírio entre os espinhos, a bem-aventurada Virgem Maria brilhou entre as moças, a qual, nascida do espinhoso rebento dos judeus, alvejava pela pureza da virgínea castidade no corpo, flamejava pelo ardor de parelha caridade na mente, cheirava por toda a parte a boas obras, visava ao alto com contínuo esforço de coração." (tradução minha)