16/02/24

DUAS MOSTRAS DE ARMARIA ECLESIÁSTICA: D. VANTHUY NETO

O elogio é agradável, mas a crítica construtiva é edificante.

Dando continuidade à postagem antecedente, passo a resenhar o emblema de Dom Vanthuy Neto. Como farei críticas negativas, cabe interpor uma advertência: os apontamentos seguintes têm caráter estritamente técnico, a partir do entendimento de que a heráldica é um sistema semiótico. Portanto, nada têm a ver com as qualidades pastorais de Dom Vanthuy nem com as qualidades artísticas de quem desenhou o emblema.

Emblema de Dom Vanthuy Neto, bispo diocesano de São Gabriel da Cachoeira (imagem disponível na Wikimedia Commons).
Emblema de Dom Raimundo Vanthuy Neto, bispo diocesano de São Gabriel da Cachoeira (imagem disponível na Wikimedia Commons).

Raimundo Vanthuy Neto nasceu em 1973 em Pau dos Ferros, Rio Grande do Norte. Formou-se no Seminário Arquidiocesano São José (Manaus, 1991-97) e na então Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção (São Paulo, 1998-2000), hoje Campus Ipiranga da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde obteve o mestrado em Teologia. Foi ordenado presbítero em 2001 e incardinado na diocese de Roraima. Administrou as paróquias de Nossa Senhora Consolata (2001-04) e do Cristo Redentor (2005-13), em Boa Vista. Dirigiu o então Instituto de Teologia, Pastoral e Ensino Superior da Amazônia (2014-17), hoje Faculdade Católica do Amazonas. Voltou a Roraima, onde foi vigário da área missionária do Cantá (2018) e reitor do Santuário de Nossa Senhora Aparecida e do Seminário Propedêutico (2020-23). Serviu, ainda, de chanceler à cúria diocesana e de auditor ao Sínodo dos Bispos para a Amazônia (Vaticano, 2019). Foi ordenado bispo em 4 de fevereiro deste ano em Boa Vista.

Dom Vanthuy Neto (imagem disponível no perfil da Diocese de Roraima no Instagram).
Dom Vanthuy Neto (imagem disponível no perfil da Diocese de Roraima no Instagram).

O emblema de Dom Vanthuy foi desenhado pelo artista sacro Guto Godoy e apresentado pela Diocese de Roraima no seu website em 29 de dezembro de 2023. Particularmente, aprecio o artefato. A heráldica atual está cheia de estilos fortemente pessoais. Contudo, um brasão não é um objeto concreto, seja pintado, esculpido ou bordado. Assim, repito que os próximos parágrafos não visam a atacar ninguém.

Para começar, cumpre anotar que a Igreja respondeu de forma lacônica a uma mudança que merecia um tratamento mais extenso. Ora, quando o clero constituía um estamento da sociedade, não era necessária norma eclesiástica em matéria heráldica, porque geralmente se davam as altas dignidades a clérigos de extração nobre. Estes usavam, então, as armas das suas linhagens. Basta conferir os nomes e brasões dos papas na Idade Moderna: Alessandro de' Medici (Leão XI), Camillo Borghese (Paulo V), Alessandro Ludovisi (Gregório XV), Maffeo Barberini (Urbano VIII)...

À medida que essa prática cessava, cada vez mais as armas devocionais ganharam lugar, porém se passou longo tempo até que em 1969 a Secretaria de Estado da Santa Sé emitiu a Instructio circa vestes, titulos et insignia generis Cardinalium, Episcoporum et Prælatorum ordine minorum ('Instrução acerca das vestes, títulos e brasões de armas dos cardeais, bispos e prelados menores'), cujo incipit é Ut sive sollicite e está publicada no n.º 61 dos Acta Apostolicæ Sedis (p. 334). No que tange a heráldica, instrui-se o seguinte:

Sive Patribus Cardinalibus, sive Episcopis conceditur, ut generis insigne adhibere possint.
Hujus vero insignis aspectus ad normam artis exarandorum insignium delineandus erit, idemque simplex atque perspicuus sit oportet. Ab hujusmodi autem insigni sive baculi pastoralis sive infulæ effigies tollantur.

Em vernáculo:

Defere-se tanto aos padres cardeais como aos bispos que possam empregar brasão de armas.
A forma desse brasão deverá ser desenhada segundo a norma da arte de ordenar brasões. Cumpre, ainda, que o mesmo seja simples e distinto. Deste modo, tirem-se do brasão as imagens tanto do báculo pastoral como da mitra.

Apesar da brevidade, é justo reconhecer a precisão do texto. Assim, as armas de um prelado são constituídas de um escudo, que lhe serve de campo, e de certos ornamentos externos. O escudo não é deferido para o prelado pôr aí o que quiser e como quiser, mas deve ser "simples e distinto" e obedecer à "norma da arte de ordenar brasões". Tirados o báculo e a mitra dos ornamentos externos, ficam a cruz processional e o galero.

À luz dessas instruções, é objetivo apontar que no emblema do novo bispo se errou ao se trocar a cruz processional pelo báculo. Até pouco tempo atrás, o brasão era conceituado marca de nobreza. Como tal, servia à vanglória do seu titular e o clero não se excetuava disso. Daí que em 1915 o papa Bento XV tenha vedado os títulos e as insígnias nobiliárias aos patriarcas, arcebispos e bispos, salvo os anexos às suas sés (1), e em 1951 a estes Pio XII tenha acabado por estender a mesma vedação (2). Conclui-se, portanto, que o espírito dessas mudanças é despojar as armas prelatícias de honras seculares e, tanto quanto possível, de objetos litúrgicos, de modo a deixar o essencial para assinalar a posição do armígero na hierarquia eclesiástica.

Passando ao escudo, é bom que não se tenha dividido o campo, mas conto aí o excessivo número de oito figuras diferentes: uma cruz alta, de cujo pé brotam galhos de árvore, chantada num rio e acompanhada de um lírio entre os traços da letra M à destra, abaixo da travessa, e de outra cruz alta entre uma manjedoura e uma hóstia carregada de uma cruz, igualmente abaixo da travessa, o todo à sinistra, acima do rio. Nitidamente, o novo bispo tinha muito a dizer e o artista pouca ciência heráldica, tanto que não vejo como brasonar a pintura.

Com efeito, a citada notícia da diocese informa que a inspiração da cruz ramificada se acha no Salmo 1 (13) e no livro do profeta Jeremias (17, 8). A água tem três cores porque cada uma refere a um rio na vida de Dom Vanthuy: o Apodi, fonte do seu batismo; o Branco, fonte da sua vocação; o Negro, destino do seu ministério episcopal. Os símbolos marianos aludem ao sim da Santa Virgem como exemplo de resposta à missão. A manjedoura, a cruz e a hóstia indicam a espiritualidade do Prado, à qual o bispo de São Gabriel da Cachoeira se vincula. Diz, ainda, que as cores vermelha e negra lembram as pinturas corporais dos povos indígenas.

É muito normal que uma pessoa desconhecedora da heráldica almeje, ao assumir armas, mostrar de onde veio, aonde vai, o que faz, mas é aí que cabe ao bom heraldista orientá-la a meditar sobre o que julga mais significativo à luz do código heráldico. Assim, a emblemática pradosiana teria bastado, afinal já contém uma cruz.

Exercício heráldico a partir do emblema de Dom Vanthuy Neto: partido ondado de vermelho e negro com uma manjedoura, uma cruz de cujo pé brotam ramos de árvore e uma custódia com a sua hóstia, tudo de prata e bem ordenado.
Exercício heráldico a partir do emblema de Dom Vanthuy Neto: partido ondado de vermelho e negro com uma manjedoura, uma cruz de cujo pé brotam ramos de árvore e uma custódia com a sua hóstia, tudo de prata e bem ordenado.

Como mero exercício, eu teria recomendado a posição ordinária de três figuras na armaria: duas no alto e uma no baixo. Quanto à iluminura, negro sobre vermelho infringe a regra dos esmaltes, mas podem ficar lado a lado. Dando, então, à linha de partição forma ondada, far-se-ia referência à água sem sobrepesar o ordenamento. Em suma: partido ondado de vermelho e negro com uma manjedoura, uma cruz de cujo pé brotam ramos de árvore e uma custódia com a sua hóstia, tudo de prata e bem ordenado.

Seja como for, se consegui, ainda que dificultosamente, descrever o emblema de Dom Vanthuy, logo se pode ajustá-lo à arte heráldica. Para tanto, seria necessário abrir mão da cor negra, iluminando as figuras de ouro ou prata. O recurso ao perfil em tantas figuras pareceria abusivo; talvez ficasse razoável apenas aplicado à cruz ramificada, por ser principal e maior.

Sem dúvida, a resenha elogiosa é agradável ao resenhador, ao resenhado e ao leitor, mas por vezes a crítica corretora pode edificar mais, porque além de apontar o erro, mostra possibilidades futuras tanto aos doutos como aos neófitos.

Notas:
(1) Decretum de vetitis nobilitatis familiaris titulis et signis in episcoporum inscriptionibus et armis (Acta Apostolicæ Sedis, 1915, p. 172): "Quapropter Sanctitas Sua hoc edi jussit consistoriale decretum, quo Patriarchæ, Archiepiscopi et Episcopi omnes tam residentiales quam titulares in posterum in suis sigillis et insignibus seu armis, itemque in edictorum inscriptionibus, titulos nobiliares, coronas, signa aliasque notas sæculares, quæ nobilitatem propriæ familiæ vel gentis ostendant, addere penitus prohibentur, nisi forte dignitas aliqua sæcularis ipsi episcopali aut archiepiscopali sedi sit adnexa; aut nisi agatur de ordine equestri S. Joannis Hierosolymitani aut Ssmi Sepulchri" (Decreto que veda títulos e sinais de nobreza familiar nas intitulações e armas dos bispos: "É por isto que Sua Santidade mandou editar o presente decreto, pelo qual todos os patriarcas, arcebispos e bispos, tanto residenciais como titulares, ficam doravante terminantemente proibidos de acrescentar títulos nobiliários, coroas, sinais e outras notas seculares que mostrem a nobreza de sua família ou linhagem nos seus selos e brasões ou armas, igualmente nas intitulações de editos, a não ser que certa dignidade secular esteja acaso anexa à própria sé episcopal ou arquiepiscopal ou se trate da ordem de cavalaria de São João de Jerusalém ou do Santo Sepulcro").
(2) Decretum de vetito civilium nobiliarium titulorum usu in episcoporum inscriptionibus et armis (Acta Apostolicæ Sedis, 1951, p. 480): "Quapropter, præsenti Consistoriali Decreto, idem Ssmus Dominus Noster decernere dignatus est ut Ordinarii omnes in suis sigillis et insignibus seu armis, necnon in epistularum ac edictorum inscriptionibus, titulorum nobiliarium, coronarum aliarumve sæcularium notarum usu in posterum prorsus abstineant, etiam si ipsi episcopali vel archiepiscopali sedi sint adnexa" (Decreto que veda o uso de títulos nobiliários civis nas intitulações e armas dos bispos: "É por isto que pelo presente Decreto Consistorial nosso Santíssimo Senhor se dignou determinar que todos os ordinários se abstenham daqui em diante do uso de títulos nobiliários, coroas ou outras notas seculares nos seus selos e brasões ou armas, como também nas intitulações de cartas e editos, mesmo que estejam anexos à própria sé episcopal ou arquiepiscopal").

14/02/24

DUAS MOSTRAS DE ARMARIA ECLESIÁSTICA: D. ALCIVAN DE ARAÚJO

As eleições episcopais causam tanto entusiasmo como apreensão na comunidade heráldica.

Em 8 de novembro de 2023, a Santa Sé publicou cinco nomeações episcopais para a igreja do Brasil. Em duas delas, o papa Francisco elegeu dois presbíteros potiguares: Monsenhor Vanthuy Neto, natural de Pau dos Ferros, então reitor do Santuário de Nossa Senhora Aparecida e do Seminário Propedêutico, na diocese de Roraima, foi nomeado bispo de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, e Monsenhor Alcivan de Araújo, natural de Cerro Corá, então pároco de Nossa Senhora da Conceição em Jardim do Seridó, diocese de Caicó, foi nomeado bispo titular de Fata e auxiliar da Paraíba.

Armas de Dom Alcivan Tadeus Gomes de Araújo, bispo titular de Fata e auxiliar da Paraíba: esquartelado: o primeiro de prata com uma aspa de azul, carregada de cinco besantes de ouro (Araújo); o segundo de azul com um pelicano em sua piedade de ouro, ferido de vermelho no peito (Gomes); o terceiro de azul com uma concha aberta de prata, carregada de uma pérola do mesmo; o quarto de prata com uma estrela de azul de seis raios; divisa: Pasce oves meas; insígnias de bispo diocesano.
Armas de Dom Alcivan Tadeus Gomes de Araújo, bispo titular de Fata e auxiliar da Paraíba: esquartelado: o primeiro de prata com uma aspa de azul, carregada de cinco besantes de ouro (Araújo); o segundo de azul com um pelicano em sua piedade de ouro, ferido de vermelho no peito (Gomes); o terceiro de azul com uma concha aberta de prata, carregada de uma pérola do mesmo; o quarto de prata com uma estrela de azul de seis raios; divisa: Pasce oves meas; insígnias de bispo diocesano.

A eleição de novos bispos sempre chama a atenção da comunidade heráldica, porque, lembrando a instrução Ut sive sollicite (Acta Apostolicæ Sedis, 1969, p. 334), "sive Patribus Cardinalibus, sive Episcopis conceditur, ut generis insigne adhibere possint" ("defere-se tanto aos padres cardeais como aos bispos que possam empregar brasão de armas", tradução minha). Causa também apreensão, porque na armaria eclesiástica hodierna há de tudo: do excelente ao inaceitável. Os emblemas assumidos por Dom Vanthuy Neto e por Dom Alcivan de Araújo demonstram essa amplitude. Comecemos pelo brasão excelente.

Dom Alcivan de Araújo (imagem disponível no perfil da Diocese de Caicó no Instagram).
Dom Alcivan de Araújo (imagem disponível no perfil da Diocese de Caicó no Instagram).

Alcivan Tadeus Gomes de Araújo nasceu em 1972 em Cerro Corá, Rio Grande do Norte. Formou-se no Seminário Diocesano Santo Cura d'Ars (Caicó, 1990), no Seminário Arquidiocesano São José (Rio de Janeiro, 1991-96) e na Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma, 2012), onde obteve o mestrado em Direito Canônico. Foi ordenado presbítero em 1997 e incardinado na diocese de Caicó. Administrou as paróquias de Sant'Ana e da Imaculada Conceição em Currais Novos (1997), a então Área Pastoral Autônoma de Nossa Senhora do Patrocínio em São Fernando (1998), as paróquias de São Francisco em Lagoa Nova (1999-2002), de São Sebastião em Parelhas (2003-09), de Nossa Senhora dos Remédios em Cruzeta (2012), de Sant'Ana em Caicó (2015-22) e de Nossa Senhora da Conceição em Jardim do Seridó (2023). Foi reitor do Seminário Santo Cura d'Ars (1998) e desempenhou diversas funções na cúria diocesana e a vice-presidência do Tribunal Eclesiástico Interdiocesano de Natal. Foi ordenado bispo em 2 de fevereiro deste ano, Solenidade da Apresentação do Senhor, na Catedral de Sant'Ana, Caicó.

Desenho das armas de Dom Alcivan de Araújo feito pela Officina Insignium (imagem disponível no perfil do armígero no Instagram).
Desenho das armas de Dom Alcivan de Araújo feito pela Officina Insignium (imagem disponível no perfil do armígero no Instagram).

Dom Alcivan apresentou o seu brasão de armas em 19 de dezembro de 2023 pelos seus perfis nas redes sociais. Traz esquartelado: no primeiro as armas dos Araújos, que são em campo de prata uma aspa de azul, carregada de cinco besantes de ouro; no segundo, as armas dos Gomes, que são em campo de azul um pelicano em sua piedade de ouro, ferido de vermelho no peito; o terceiro de azul com uma concha aberta de prata, carregada de uma pérola do mesmo; o quarto de prata com uma estrela de azul de seis raios; divisa: Pasce oves meas; insígnias de bispo diocesano.

Ao fim da ordenação, no discurso aos presentes e espectadores, o novo bispo revelou a história desse brasão. Aconteceu no dia em que o núncio apostólico lhe comunicou a eleição ao episcopado: 23 de outubro de 2023. Estava no Santuário de Nossa Senhora do Rosário (Caicó), onde pregara durante a quarta noite da novena. O P.e Gleiber Dantas, tendo percebido certos sinais na homilia, o interpelou: "Você foi nomeado bispo. Deixe que o brasão eu preparo". E assim o fez, mas não sozinho: foi engenhado, ordenado e desenhado a várias mãos, pois também se envolveram o Irmão Martinho, oblato do Mosteiro de São Bento de Olinda, e Jalison Vítor, da Officina Insignium. Ainda que longo, vale a pena ler o comentário do irmão, que o P.e Gleiber leu em vídeo, publicado no Instagram:

Tomando para si o lema Pasce oves meas ('Apascenta as minhas ovelhas'), o novo bispo reconhece que o Senhor Jesus quis reunir para si um povo que caminha para o Pai nas estradas do mundo rumo ao céu à semelhança de um rebanho conduzido pelos mesmos pastores que foram escolhidos pelo Redentor na sucessão apostólica, conforme lemos no primeiro Prefácio dos Apóstolos. Esse rebanho é a igreja una, santa, católica e apostólica, na qual Deus estabeleceu em primeiro lugar alguns como apóstolos, em segundo como profetas e em terceiro os que ensinam; depois os milagres, os dons de cura, de socorrer, de governar e de falar diversas línguas, como lemos na Primeira Epístola aos Coríntios (12, 28). Com essa imagem do corpo místico de Jesus, dada pelo apóstolo Paulo, a igreja é constituída em sinodalidade, porém para que cada membro desse único e mesmo corpo conheça Jesus e o reconheça como cabeça e princípio, tendo no sucessor de Pedro o fundamento visível da sua unidade, é preciso que o Evangelho seja anunciado a todas as pessoas. No brasão da família Araújo, vê-se a difusão da Boa Nova, tendo o próprio Jesus como o central besante de ouro, a partir do qual se espargem os besantes dos evangelistas Mateus, Marcos, Lucas e João a toda a humanidade. Tendo dito que sejamos misericordiosos como o Pai celeste é misericordioso em Lucas (6, 36), a missão de santificar, ensinar e governar de quem Deus chamou para a sucessão dos apóstolos só é possível ser realizada como tarefa diaconal de quem aprendeu a servir como o Senhor fez no lava-pés, para que fizéssemos como nos mandou, conforme lemos em João (13, 15), a ponto de dar a vida como o pelicano presente no brasão da família Gomes, símbolo eucarístico por excelência. Assim, o pastor às vezes pôr-se-á à frente para indicar a estrada e sustentar a esperança do povo, outras vezes manter-se-á simplesmente no meio de todos com a sua proximidade simples e misericordiosa e em certas circunstâncias deverá caminhar atrás do povo para ajudar aqueles que se atrasaram e, sobretudo, porque o próprio rebanho possui o olfato para encontrar novas estradas, como diz o papa Francisco na Evangelii gaudium (31). Se a pérola e a concha são postas como clara alusão à Virgem Maria e a sua mãe, Santa Ana, padroeira da diocese de Caicó, em cujo seio foram gerados na fé o novo bispo e sua sagrada vocação, este quartel do seu brasão episcopal impõe-lhe a tarefa pastoral de buscar no coração de homens e mulheres, já evangelizados ou não, a pérola preciosa, certo de que pérolas são produzidas somente em conchas que foram feridas, como o bom pastor que veio procurar e salvar o que estava perdido, como lemos em Lucas (19, 10). Não fosse suficiente escutar que lhe basta a graça de Deus, porque é na fraqueza que a força do Evangelho se realiza plenamente, além de confortado para não temer insultos, dificuldades, perseguições e angústias, conforme Paulo escreveu na Segunda Epístola aos Coríntios (12, 9), o novo bispo tem na Virgem Maria uma proteção que o orienta, ou seja, que lhe aponta o oriente espiritual da história: o Cristo nascente, que nos veio visitar, como lemos em Lucas (1, 78). Ela, que os navegantes chamaram de Stella Maris, é a primeira estrela do sertão, a Estrela d'Alva do povo seridoense, cuja têmpera o novo bispo carrega em seu ser de filho e neto de vaqueiros do sertão do Seridó e que ele encontra junto ao povo paraibano, venerada como Nossa Senhora das Neves, a Imaculada Conceição, que marcou os últimos meses de seu paroquiato ao ser chamado pelo papa Francisco para ser bispo.

Tenho mais uma ou duas palavras a acrescentar. Primeiro, de uma perspectiva histórica.

De 11 a 25/04 de 2021, escrevi uma série de apontamentos sobre armaria eclesiástica. Abordei primeiro as armas pessoais, demonstrando que no Brasil passaram por três períodos, conforme a sua natureza: armas gentilícias, armas gentilício-devocionais e armas devocionais. Em resumo, até o Império os clérigos assumiam as armas correspondentes aos seus sobrenomes, depois começaram a adotar figuras sacras, que atualmente predominam. Inclusive, posso agora corroborar isso com o caso dos bispos de Olinda: de todos que governaram a diocese desde 1677, o primeiro que assumiu armas completamente devocionais foi Dom Manuel do Rego Medeiros em 1865. (1)

Portanto, Dom Alcivan voltou ao segundo momento, quando se combinavam armas gentilícias e devocionais. Talvez tenham aberto precedente as armas das ordens religiosas, de que alguns professos fizeram uso, como Dom Frei José Fialho, sexto bispo de Olinda (1725-38) e sétimo arcebispo de Salvador (1738-41): trazia num escudo partido as armas da Abadia de Alcobaça e as dos Fialhos. Depois, houve duas espécies de combinação: uma preserva o ordenamento das armas gentilícias inalterado e a outra cria um ordenamento novo. Exemplo da primeira são as armas de Dom Frei Tomás da Encarnação Costa e Lima, décimo bispo de Olinda (1774-84), que sobre um escudo partido de Lima antigo e Costa pôs um escudete com a Virgem Maria e o Arcanjo Gabriel. Exemplo da segunda são as armas de Dom Hélder Câmara, sexto arcebispo de Olinda e Recife (1964-85), que trazia em campo de vermelho uma torre aberta e coberta de prata, cruzada de ouro, entre dois lobos trepantes do mesmo, portanto as armas dos Câmaras com algumas diferenças. (2)

Dom Alcivan recebendo o báculo dos quatro bispos viventes que se sucederam na sé caicoense: Dom Heitor de Araújo Sales (quarto bispo, arcebispo emérito de Natal), Dom Jaime Vieira da Rocha (quinto bispo, arcebispo emérito de Natal), Dom Frei Manuel Delson Pedreira da Cruz (sexto bispo, arcebispo da Paraíba) e Dom Antônio Carlos Cruz Santos (sétimo bispo); observem-se as ínfulas armoriadas (imagem disponível no perfil da Diocese de Caicó no Instagram).
Dom Alcivan recebendo o báculo dos quatro bispos viventes que se sucederam na sé caicoense: Dom Heitor de Araújo Sales (quarto bispo, arcebispo emérito de Natal), Dom Jaime Vieira da Rocha (quinto bispo, arcebispo emérito de Natal), Dom Frei Manuel Delson Pedreira da Cruz (sexto bispo, arcebispo da Paraíba) e Dom Antônio Carlos Cruz Santos (sétimo bispo); observem-se as ínfulas armoriadas (imagem disponível no perfil da Diocese de Caicó no Instagram).

As armas de Dom Alcivan são, pois, da primeira espécie. Optou-se pela esquarteladura, o que costuma inspirar reserva no armista, por causa da alta frequência dos chamados falsos esquartelados: aqueles ordenados apenas para acomodar várias figuras. Como eu disse na postagem de 21/08/2021, divide-se o campo para compor aí um só brasão mediante a junção de diferentes armas e isso tem poucas exceções: a partição pura, as figuras repetidas e as sobrepostas. O escudo de Dom Alcivan compõe-se de dois quartéis gentilícios e dois devocionais, logo não é um falso esquartelado.

À sua vez, armas gentilícias comportam a preocupação com a justeza genealógica. Nunca é excessivo repisar que não há brasões de famílias, mas sim linhagens armoriadas. Assim, ter certo sobrenome não basta para fazer jus a um brasão; é preciso entroncar-se com a linhagem à qual pertence o brasão. Apesar disso, cabe reconhecer que a armaria portuguesa foi operada com pouco rigor genealógico, especialmente durante os séculos XVIII e XIX e principalmente entre os prelados, que podiam assumir armas sem se sujeitar ao Juízo da Nobreza. Seja como for, a prática pouco rigorosa no passado não justifica que se faça igual no presente.

Isso tampouco atinge o brasão de Dom Alcivan. A linhagem dos Araújos na região do Seridó é bem conhecida: com duas quebras de varonia na terceira e quarta gerações, o bispo titular de Fata descende de Tomás de Araújo Pereira, que saiu do Minho para o Brasil e chegou à ribeira do Acauã na terceira década do século XVIII. Levando em conta que o solar dos Araújos está num lugar desse nome na parte galega do Lima, é improvável que o dito colono não fosse fidalgo dessa linhagem. (3)

Um tanto diferente é o caso dos Gomes. O tronco da geração é o trisavô de Dom Alcivan, José Gomes de Melo, que veio de Picuí, na Paraíba, para Currais Novos por volta de 1860. Mas mesmo que se ascendesse mais, Gomes é um patronímico. Isso quer dizer que há muitas linhagens desse nome sem parentesco, cada uma descendente de um filho de Gome (4). Além disso, não se sabe sequer a qual dessas linhagens pertencem as armas que Antônio de Vilas Boas e Sampaio brasona sem declarar os esmaltes na Nobiliarquia portuguesa (1676) e Frei Manuel de Santo Antônio e Silva registra no Tesouro da nobreza de Portugal (1783), o que não o impediu de as dar a muitos suplicantes desse sobrenome enquanto exerceu a reforma do Cartório da Nobreza (1745-90). (5)

No entanto, uma feliz coincidência supera essa problemática: o pelicano em sua piedade, que os Gomes trazem por armas, é igualmente uma figura sacra. Acreditava-se que essa ave era capaz de ferir o próprio peito para saciar com o seu sangue a fome dos filhotes. Daí a penúltima estrofe do hino eucarístico Adoro te devote, de Santo Tomás de Aquino: "Pie pelicane, Jesu Domine, | me immundum munda tuo sanguine" ("Piedoso pelicano, Senhor Jesus, | limpa a mim, sujo, com o teu sangue").

Passando aos quartéis devocionais, de certo modo também têm natureza heráldica, porque são elementos centrais de outros brasões: a concha com uma pérola está no coração das armas da diocese de Caicó e a estrela, no das armas da arquidiocese da Paraíba, como o leitor pode conferir na postagem de 23/04/21.

Armas da diocese de Caicó: de azul com uma cruz veirada de vermelho e prata, carregada de uma concha aberta deste metal, sobrecarregada de uma pérola do mesmo; timbre: mitra; sob o escudo, uma cruz processional e um báculo passados em aspa.
Armas da diocese de Caicó: de azul com uma cruz veirada de vermelho e prata, carregada de uma concha aberta deste metal, sobrecarregada de uma pérola do mesmo; timbre: mitra; sob o escudo, uma cruz processional e um báculo passados em aspa.

Convém lembrar que, como atributo icônico de Sant'Ana, a concha com uma pérola foi provavelmente inventada pelo Irmão Paulo Lachenmayer, O.S.B., ao criar brasão para a então diocese de Feira de Santana, em 1962: assim como a ostra gera a pérola após ser ferida por um grão de areia, Sant'Ana concebeu e deu à luz sua especiosíssima filha em meio ao sofrimento da infertilidade, segundo o Protoevangelho de Tiago.

Armas da arquidiocese da Paraíba: de azul, semeado de flocos de neve de prata, com uma cruz chã do mesmo, carregada de uma estrela de seis raios do campo; timbre: mitra; sob o escudo, uma cruz arquiepiscopal e um báculo passados em aspa.
Armas da arquidiocese da Paraíba: de azul, semeado de flocos de neve de prata, com uma cruz chã do mesmo, carregada de uma estrela de seis raios do campo; timbre: mitra; sob o escudo, uma cruz arquiepiscopal e um báculo passados em aspa.

Quanto à estrela, é um símbolo mariano antiquíssimo: aparece acima da cabeça da Virgem com o Menino numa pintura que remonta ao século III, conservada nas Catacumbas de Priscila, em Roma. Sobre a sua cabeça e/ou o ombro direito, tornou-se convencional na iconografia bizantina. Além disso, entre as invocações da ladainha lauretana conta-se "Stella matutina", ou seja, "Estrela da manhã", a que reflete a luz do sol e, por isso, é o corpo celeste mais brilhante ao amanhecer e ao entardecer, tal como Maria Santíssima excele a todas as criaturas em virtude da encarnação do Verbo, que é a verdadeira luz (João, 1, 9). Também por nos servir de guia (João, 14, 6), como celebrado no primeiro verso e título do hino Ave, Maris Stella ('Ave, Estrela do Mar'), do século IX, e confirmado pela exortação apostólica Evangelii nuntiandi (1975), de São Paulo VI, e pela Evangelii gaudium (2013), do papa Francisco: a "Estrela da (Nova) Evangelização".

Dom Alcivan as saudações da delegação da paróquia de São Francisco, em João Pessoa, após a sua ordenação episcopal; observe-se a reprodução do seu brasão no backdrop (imagem disponível no perfil da paróquia no Instagram).
Dom Alcivan recebendo as saudações da delegação da paróquia de São Francisco, em João Pessoa, após a sua ordenação episcopal; observe-se a reprodução do seu brasão no backdrop (imagem disponível no perfil da paróquia no Instagram).

Até aqui, todo o razoado conclui que o brasão de Dom Alcivan é tecnicamente impecável, mas a heráldica também é uma arte visual. Depois de pintadas, espera-se que boas armas mostrem qualidades estéticas. Nas do bispo auxiliar da Paraíba, o olhar crítico facilmente as acha: não se podiam mudar os esmaltes dos quartéis gentilícios, mas sim aqueles dos devocionais. Acertadamente, puseram-se as armas dos Araújos no primeiro e as dos Gomes no segundo e inverteram-se os esmaltes dos contrários: o terceiro campo de azul com uma figura de prata e o quarto de prata com uma figura de azul. Abstraindo-se as gotas de sangue do pelicano, toda a iluminura do escudo reduz-se aos dois metais e à cor azul. Como reza a máxima, em heráldica menos é mais.

Para acabar, se a eleição de novos bispos inquieta a comunidade heráldica, as escolhas felizes deixam a esperança de infundirem no clero maior curiosidade sobre o código heráldico: o que é, como funciona. A semiótica constitui, afinal, uma parte importante da religião.

Notas:
(1) Dom Manuel do Rego Medeiros trazia em campo de azul uma cruz recruzetada de pé ancorado, acompanhada de quatro estrelas acantonadas e de uma cruz de Jerusalém em ponta, tudo de prata.
(2) As armas dos Câmaras são de negro com uma torre de prata entre dois lobos trepantes de ouro, tudo assente sobre um monte de verde, firmado em ponta.
(3) Na verdade, Dom Alcivan descende por linha direita masculina de Cipriano Lopes Galvão, outro dos primeiros colonizadores do Seridó, mas seu avô preferiu o sobrenome Araújo.
(4) Gome é um antropônimo de origem germânica cujo uso rareou até desaparecer.
(5) Formalmente, o suplicante recebia mercê do monarca por intermédio do rei de armas Portugal, mas na prática Frei Manuel fazia tudo, como também os escrivães que lhe sucederam.

08/02/24

O PROBLEMA DAS ARMAS DO DUQUE DE CAXIAS

Apesar da magna honorificência sob a monarquia e a república, permanecem várias questões sobre as armas do duque de Caxias.

O brasão do duque de Caxias é, quiçá, o mais conhecido dentre os concedidos pelos imperadores brasileiros, já que o nosso exército faz amplo uso dele em várias insígnias. Contudo, não poucos problemas o envolvem.

Em primeiro lugar, o ordenamento mesmo. As Ordenações do Reino (1603, liv. V, t. XCII) estabeleciam que se podiam trazer "até quatro armas [...], esquarteladas, e mais, não", porém o referido brasão se compõe das armas de seis linhagens dentro de um escudo partido de dois traços e cortado de um, o que dá um quartel para cada uma: no primeiro as dos Silvas, no segundo as dos Fonsecas, no terceiro as antigas dos Limas, no quarto as dos Brandões, no quinto as dos Soromenhos e no sexto as dos Silveiras.

Para entender a composição desse escudo, é preciso ascender à linhagem de Luís Alves de Lima e Silva: filho de Francisco de Lima e Silva e Mariana Cândida de Oliveira Melo, neto de José Joaquim de Lima e Silva e Joana Maria da Fonseca Costa, bisneto de João da Silva da Fonseca Lima e Isabel Josefa Maria Brandão Ivo, filha de Francisco Lourenço Brandão Ivo e Maria Rodrigues Soromenho, neta de Matias Lourenço Brandão Ivo, bisneta de outro Matias Lourenço Brandão Ivo e Isabel da Silveira.

Portanto, as armas dos Silvas e dos Limas vieram ao duque por seu avô paterno e as demais por sua avó paterna: as dos Fonsecas por seu bisavô, as dos Brandões por sua bisavó, as dos Soromenhos por sua terceira avó e as dos Silveiras por sua quinta avó. É, de fato, um exemplo ilustrativo da transmissão heráldica por linha feminina, tão própria da armaria portuguesa.

Quem terá sido o oficial de armas que cometeu tão flagrante infração da norma heráldica pátria? Eis o maior problema: não se sabe quando se passou carta de brasão ao duque de Caxias! A brica por diferença sugere que não são armas assumidas, mas obra do Juízo e Cartório da Nobreza. Como a negligência daqueles que superintenderam esse órgão perdeu a maior parte dos registros, resta recorrer às fontes indiretas.

Armas do duque de Caxias segundo o Arquivo nobiliárquico brasileiro (1918), dos barões de Vasconcelos e Smith de Vasconcelos.
Armas do duque de Caxias segundo o Arquivo nobiliárquico brasileiro (1918), dos barões de Vasconcelos e Smith de Vasconcelos.

Consultando, pois, o Arquivo nobiliárquico brasileiro (1918), a fonte mais extensa e acessível, não se resolve o problema, mas fica aumentado. Para começar, os barões Rodolfo e Jaime Smith de Vasconcelos confundem os brandões da linhagem homônima com flores de lis e as armas dos Silveiras com as dos Ferreiras, além de chamar pereira à árvore dos Soromenhos. (1)

Além disso, os autores também atribuem as armas do duque a José Joaquim de Lima e Silva, visconde de Magé, a Manuel da Fonseca e Silva, barão de Suruí, seus tios, e a José Joaquim de Lima e Silva Sobrinho, conde de Tocantins e seu irmão, mas isso é inaceitável, porque no mínimo cada um deve ter recebido uma diferença pessoal, na forma da brica carregada de figura individual.

A confusão da composição e a falta de datação sugerem que os barões de Vasconcelos e Smith de Vasconcelos acharam essas armas nalguma reprodução muito pequena. Daí concluíram erroneamente que todos os titulados da família as ganharam. Ora, num tempo em que o estado controlava a heráldica gentilícia, não é possível que um brasão confirmado quatro vezes não tenha deixado atestação melhor que alguma miudeza armorejada. (2)

Botão atribuído à libré da Casa do Duque de Caxias e leiloado pelo Escritório de Artes Miguel Salles em 2022.
Botão atribuído à libré da Casa do Duque de Caxias e leiloado pelo Escritório de Artes Miguel Salles em 2022.

Com efeito, em 2022 o Escritório de Artes Miguel Salles leiloou um botão que mostra o brasão do duque. Anuncia que fazia parte da libré de sua casa, isto é, do uniforme que os seus empregados vestiam. Informa, ainda, que procede da coleção de Heloísa e Celso Figueiredo Filho. Tudo merece toda a confiança, mas também não resolve os problemas. De um lado, comprova a composição: Silva, Fonseca, Lima antigo, Brandão, Soromenho e Silveira. Do outro, a brica é azul com uma estrela, cujo esmalte o alto-relevo não permite discernir, e o timbre não é um coronel, mas um elmo com penacho.

O botão armoriado enseja, assim, novas perguntas: ter-se-á desenhado o brasão que aí figura antes da concessão do primeiro título nobiliário a Luís Alves de Lima e Silva? E terá sido ele, de fato, o primeiro que recebeu esse brasão? O serviço que Francisco de Lima e Silva prestou a Dom Pedro I durante todo o seu império, ao ponto de ter participado da Regência Trina após a abdicação, torna perfeitamente plausível que o imperador lhe tenha dado brasão de armas, afinal possuía comenda da Ordem de Avis, herdada de seu pai, quem Dom João VI fizera, ademais, fidalgo-cavaleiro da Casa Real em 1819. Isso explicaria o elmo.

Por certo, um detalhe heráldico indica que o botão foi mesmo fabricado sob o Império. Anselmo Braamcamp Freire, na sua Armaria portuguesa (1908), seguindo o Tesouro da nobreza de Portugal (1783), de Frei Manuel de Santo Antônio e Silva, põe a flor de lis e o crescente dos Soromenhos no chefe. Porém, Antônio de Vilas Boas e Sampaio, na Nobiliarquia portuguesa (1676), brasona-os precisamente como se veem no botão: "Em campo vermelho um soromenho no meio de ũa flor de lis de ouro e de uma meia lua do mesmo". Sabe-se que os oficiais de armas brasileiros dispunham e usavam de um exemplar desse livro.

Armas do duque de Caxias segundo Domício da Gama na Revista Moderna (n.º 27, 1899).
Armas do duque de Caxias segundo Domício da Gama na Revista Moderna (n.º 27, 1899).

Em 1899, o n.º 27 da Revista Moderna publicou um artigo de Domício da Gama sobre a vida do duque de Caxias. Uma das ilustrações é o brasão: o mesmo escudo que está no botão, agora timbrado pelo coronel ducal. À estrela na brica deu-se a cor vermelha, o que infringe a regra dos esmaltes: cor sobre cor. É provável que seja, na verdade, de metal.

Mas se o Exército celebra tanto a memória de Caxias, por que rareiam testemunhos mais antigos das suas armas? Após a Guerra do Paraguai era Manuel Luís Osório, marquês do Herval, quem gozava da reputação de máximo herói, por ter comandado as forças brasileiras na Batalha de Tuiuti (1866). Morto o marquês em outubro de 1879 e o duque em maio de 1880, daquele encomendou-se em 1887 a estátua equestre que a República assentou em 1894 na Praça XV de Novembro, Rio de Janeiro.

O duque começou a ser lembrado mais de quatro decênios após a sua morte: desde 1923 na data do seu nascimento o Ministério da Guerra comemorou a Festa de Caxias e desde 1925 o Dia do Soldado. Em 1941, deu-se à sede nova desse ministério o nome de Palácio Duque de Caxias. Oito anos depois, diante desse edifício ergueu-se o panteão do duque, sobre o qual se reassentou a sua estátua equestre e sob o qual se depositaram os seus restos mortais e os da duquesa. O patronato do Exército, já consagrado, foi reconhecido pelo Decreto n.º 51.429, de 13 de março de 1962. (3, 4)

Armas do duque de Caxias segundo Egon Prates Pinto na Revista Militar Brasileira (n.º 3, 1936).
Armas do duque de Caxias segundo Egon Prates Pinto na Revista Militar Brasileira (n.º 3, 1936).

Voltando ao brasão de armas, em 1936 o mesmo ministério determinou que a Revista Militar Brasileira dedicasse ao duque uma edição comemorativa: a de n.º 3. A matéria heráldico-genealógica é tratada já no primeiro artigo, o texto de Egon Prates Pinto, tenente da Reserva, e a ilustração de Luís Gomes Loureiro, do Gabinete Fotográfico do Estado Maior, ambos do Exército. É daqui em diante que as armas dos Soromenhos aparecem corretas e — na esteira do Arquivo nobiliárquico brasileiro — a diferença como um farpão negro dentro de uma brica de prata, o que parece infringir igualmente a regra de iluminura, pois fica sobre as armas dos Silvas, portanto em campo do mesmo metal. Apesar disso, aponta-se somente uma fonte: um sinete, sobre o qual se diz ter pertencido a Caxias quando marquês e achar-se no acervo numismático do Museu Histórico Nacional. Contudo, como a consulta desse acervo não está completamente disponível na base eletrônica do museu, por enquanto não é possível conferi-lo. Vê-se, isto sim, um sinete do duque no Acervo do Exército Brasileiro, mas este não está armoriado, pois o emblema que imprime é a abreviatura D. de C., encimada do coronel ducal.

Chegamos, enfim, a um beco sem saída. No mínimo, há dois brasões, ainda que compostos da mesma forma: um traz por diferença uma estrela e o outro, um farpão, ambas as figuras dentro de uma brica. Tanto uma como a outra apresentam defeitos: suponho que talvez por imperícia heráldica o ilustrador da Revista Moderna tenha olhado as estrelas vermelhas dos Fonsecas e daí pintado a solitária da mesma cor; quanto ao trabalho de Pinto e Loureiro, não posso julgá-lo sem ver o objeto em que se baseiam.

Selo do duque de Caxias conforme o sinete conservado no Acervo do Exército Brasileiro.
Selo do duque de Caxias conforme o sinete conservado no Acervo do Exército Brasileiro.

Ficam, pois, algumas perguntas: se Pinto tomou o farpão do sinete a que refere e há mesmo aí um coronel de marquês, então esse brasão pertenceu de fato a Caxias, porque nem seus tios nem seu irmão alcançaram tal grau. Mas depois de ascender ao ducado, por que não mandou trocar o coronel no sinete novo, mas inscreveu uma abreviatura? E de quem era o brasão atestado pelo botão, com uma estrela por diferença?

Medalha do Pacificador.
Medalha do Pacificador.

Seja como for, o Exército tornou o desenho de Loureiro praticamente oficial: tem servido à cunhagem da Medalha do Pacificador desde 1953 e figura na bandeira-insígnia e no estandarte "histórico" do duque, conforme as Portarias n.os 1.277 e 1.278, de 21 de agosto de 2019, do Comando do Exército. Na verdade, a cópia excessiva acabou enfeando o original. Como hoje em dia nessa força reina a ignorância heráldica, não surpreende a confusão entre brasão e reprodução.

Notas:
(1) Os erros dos barões de Vasconcelos e Smith de Vasconcelos corroboram algumas observações ao longo desta postagem. Ora, se conhecessem a linhagem de Caxias, não teriam errado a composição das suas armas. Esse desconhecimento demonstra o quanto em 1918 estava esquecida a memória do único duque do Império sem parentesco com a casa imperante.
(2) Dom Pedro II deu a baronia de Caxias a Luís Alves de Lima e Silva e a de Barra Grande a seu pai na mesma data, 18 de julho de 1841, mas este a recusou. Os irmãos mais novos deste, José Joaquim e Manuel, receberam o viscondado de Magé e a baronia de Suruí em 2 de dezembro de 1854. Finalmente, o irmão mais novo de Caxias, José Joaquim Sobrinho, foi feito visconde de Tocantins em 1872 e conde do mesmo título em 1889. No Império do Brasil, as concessões dos títulos nobiliários e dos brasões gentilícios tramitavam e ficavam registradas em repartições diferentes. Além disso, um não implicava no outro. Não obstante, uma parcela substancial dos novos titulados requeria brasão de armas. É improvável que não tenha remanescido nenhum registro de mercê heráldica a um Lima e Silva após 1855, quando Luís Aleixo Boulanger começou a trabalhar junto ao Cartório da Nobreza, assim como o é que todos tenham recebido os seus brasões antes disso.
(3) Essa estátua de Caxias foi inaugurada em 1899 no Largo do Machado. No artigo citado, Pinto diz que as armas ducais no pedestal contêm cinco mosquetas, suponho que pelos cinco brandões. Talvez aí esteja a origem do erro dos barões de Vasconcelos e Smith de Vasconcelos, que teriam, então, convertido as mosquetas em flores de lis. Será, além disso, a origem do farpão por diferença?
(4) O marquês do Herval era louvado pela sua bravura, mas a carreira de Caxias fornecia os valores que os sucessivos regimes necessitavam incutir na tropa: a República Velha, a lealdade; os governos provisório e constitucional da Era Vargas, a unidade nacional; o Estado Novo, a autoridade.

02/02/24

SOBRE O ESTILO E MODO DE ESCREVER

Coroas e coronéis não são enfeites para quem quer que seja dispor deles a seu bel-prazer.

Em outubro do ano passado, estive a trabalho na Cidade Alta de Natal e aproveitei uma hora livre para dar uma volta pelo centro histórico. Perto da Igreja de Nossa Senhora da Apresentação, a sé velha, avistei um brasão: figura na placa que assinala a sede da Irmandade do Santíssimo Sacramento dessa paróquia.

Armas da Irmandade do Santíssimo Sacramento de Natal (RN).
Armas da Irmandade do Santíssimo Sacramento de Natal (RN).

Não vivemos no melhor tempo da armaria eclesiástica, então a minha reação inicial foi a surpresa de topar com boas armas: de vermelho com um ostensório de ouro, carregado de uma hóstia de prata, sobrecarregada do monograma IHS de negro, o todo sustido por um livro fechado de prata, encadernado de ouro e com sete selos pendentes do mesmo, ladeado de dois ramos, um de videira e o outro de trigo, ambos de sua cor e com os pés passados sob o livro, e acompanhado em chefe de um cometa de prata. Um tanto complicado, é verdade, mas ainda assim boas armas, não fosse o coronel acima do escudo: "É uma irmandade ou um ducado?", perguntei-me jocosamente.

Com efeito, o Evangelho vincula-se à forma de governo mais inteligível para aqueles a quem foi primeiro anunciado: o reino. Ora, se o Cristo é o rei desse reino, sua mãe é, pois, rainha, daí que na iconografia de Nosso Senhor e de Nossa Senhora sobeje a coroa real, seja a antiga (aberta) seja a moderna (fechada com diademas). Até aqui, tudo certo, nada a censurar.

O que é, então, censurável? Respondo: a confusão de figura com timbre. Se no referido brasão a coroa estivesse dentro do escudo, seria figura e teria o sentido que se lhe quisesse dar. O timbre tem natureza diferente: não está ao dispor de qualquer um para embelezar as suas armas. Ele já surgiu, na verdade, para distinguir dignidades. Uma regra fácil é: se na vida real você não pode usar de certa insígnia, na heráldica também não.

Na verdade, o abuso de se assinalar sem direito, especialmente com coronéis, acontece há muito tempo, tanto que foi objeto de regulação em Portugal: em 1597, Dom Filipe I ordenou a Provisão de como se há de falar e escrever. Depois de estabelecer os tratamentos que cabiam às várias dignidades e ofícios do Reino e antes de enunciar as penas do descumprimento, enxertou-se o seguinte:

Outrossi por atalhar os excessos que se vão introduzindo, pondo coronéis nos escudos de armas e sinetes e reposteiros as pessoas que os não podem pôr, ordeno e mando que nenhũa pessoa possa pôr coronéis nos tais selos ou reposteiros nem em outra parte algũa em que houver armas, exceto os duques e seus filhos, marqueses e condes, pondo-os, porém, regulados conforme à calidade do título de cada um, que mandarei declarar por Rei de Armas Portugal, a quem para isso se dará ordem, tomando-se dele e doutras pessoas práticas na nobreza as informações necessárias.

A inserção de uma norma heráldica noutra de caráter linguístico é, por si, interessante. Mostra que o brasão perdera a analogia ao nome próprio (cf. a postagem de 11/01/2021) e era agora análogo ao "estado" da pessoa, como se dizia. Atesta, além disso, a modernidade dos títulos nobiliários: menciona duques, marqueses e condes; omite viscondes e barões. Ainda mais recentes são as suas insígnias, cuja "declaração" encarregava ao rei de armas principal.

De fato, esses títulos foram concedidos em Portugal pela primeira vez durante o século XV: o ducado de Coimbra em 1415, o marquesado de Valença em 1451, a baronia de Alvito em 1475 e o viscondado de Vila Nova de Cerveira em 1476. O título de conde é exceção, afinal o pai do rei Dom Afonso I foi o conde Dom Henrique. Mas mesmo a primeira concessão territorial antecede: o condado de Barcelos em 1298.

Quanto aos coronéis, a fixação da sua forma deve-se aos armistas modernos. No Livro da nobreza e perfeição das armas (séc. XVI), percebe-se que Antônio Godinho segue a vaga regra de diminuir a riqueza do coronel conforme o grau do título. Nos Troféus lusitanos (1632), de Antônio Soares de Albergaria, já se vislumbra certa semelhança ao sistema que, no Tesouro da nobreza de Portugal (1783), de Frei Manuel de Santo Antônio e Silva, aparece consolidado.

Nas armarias ibéricas, tanto as coroas de imperador, rei e príncipe como os coronéis de infante e dos títulos têm alguns elementos comuns: são de ouro e a sua base é um aro engastado de pedraria. Convém ressaltar que não estamos falando de objetos concretos, mas sim abstratos, de modo que tanto faz desenhar rubis e esmeraldas como outras gemas.

Os títulos nobiliários têm origens diversas, mas todos denominaram ofícios administrativos antes do desenvolvimento do feudalismo, quando passaram a designar os senhores de certos territórios numa teia de laços de vassalagem. Tombado esse regime desde a Revolução Francesa, tornaram-se cada vez mais honoríficos. Efetivamente, essa era a sua natureza no Império do Brasil. (1)

Armas de Luís Alves de Lima e Silva, duque de Caxias: partido de dois e cortado de um: o primeiro de prata com um leão de púrpura, armado e lampassado de vermelho (Silva); o segundo de ouro com cinco estrelas de vermelho (Fonseca); o terceiro de ouro com quatro palas de vermelho (Lima antigo); o quarto de azul com cinco brandões de ouro, acesos ao natural (Brandão); o quinto de vermelho com um soromenho de verde, arrancado e frutado de prata, acompanhado de uma flor de lis e um crescente, ambos de ouro, em chefe (Soromenho); o sexto de prata com três faixas de vermelho (Silveira); coronel de duque.
Armas de Luís Alves de Lima e Silva, duque de Caxias: partido de dois e cortado de um: o primeiro de prata com um leão de púrpura, armado e lampassado de vermelho (Silva); o segundo de ouro com cinco estrelas de vermelho (Fonseca); o terceiro de ouro com quatro palas de vermelho (Lima antigo); o quarto de azul com cinco brandões de ouro, acesos ao natural (Brandão); o quinto de vermelho com um soromenho de verde, arrancado e frutado de prata, acompanhado de uma flor de lis de ouro e um crescente do mesmo em chefe (Soromenho); o sexto de prata com três faixas de vermelho (Silveira); por diferença, uma brica de prata com um farpão de negro; coronel de duque. (2, 3)

Em latim, a palavra dux,ducis tem a mesma raiz do verbo ducere 'conduzir' (4). Portanto, dux era alguém que conduzia homens. Ao fim do Império no Ocidente, o dux exercia o comando militar de uma província e por vezes acumulava o governo civil, daí que, ao decair o domínio bizantino sobre a Itália durante a primeira metade do século VIII, o chefe do estado emergente na Venécia tenha continuado a se intitular dux, donde doxe (pronunciado /'doze/) em vêneto. Os doges encabeçaram a República de Veneza pelos próximos dez séculos. (5)

Fora do domínio bizantino, as monarquias germânicas procuraram preservar a administração imperial, porém durante a emergência das línguas românicas a palavra dux deve ter caído em desuso, porque o francês duc não foi transmitido pelo latim vulgar, mas tomado do latim literário. Da França exportou-se a palavra às ilhas Britânicas (duke em inglês) e à península Ibérica (duc em catalão, duque em espanhol e português), enquanto o italiano duca vem do grego bizantino doúkas.

Em Portugal, os ducados mais antigos foram dados por Dom João I a seus filhos: o de Coimbra a Dom Pedro, o de Viseu a Dom Henrique, ambos em 1415, e o de Bragança a Dom Afonso em 1442. Destes, os dois primeiros eram títulos de cortesia, já que os seus recebedores estavam num grau mais alto de dignidade, o de infante. Sendo Dom Afonso filho natural, o seu é o ducado hereditário mais antigo. (6)

De modo semelhante, Dom Pedro I deu em 1826 o título de duquesa de Goiás a Isabel Maria de Alcântara, sua filha bastarda, e em 1829 o de duque de Santa Cruz ao príncipe Augusto de Beauharnais, seu cunhado e irmão da imperatriz Dona Amélia, depois também seu genro e marido da rainha Dona Maria II. Em 1869, Dom Pedro II elevou Luís Alves de Lima e Silva, então marquês de Caxias, à honra ducal, a única concessão de tal a alguém sem parentesco com a Casa Imperial.

O coronel de duque tem cinco florões aparentes. Isso o torna muito semelhante à coroa real antiga, também dita aberta, por lhe faltarem diademas sobre o aro.

Armas de Pedro de Araújo Lima, marquês de Olinda, concedidas por Dom Pedro I em 1828: esquartelado: o primeiro de vermelho com quatro palas de prata, carregadas de seis mosquetas de arminho, postas duas, uma, duas, uma (Casado); o segundo contraesquartelado: o primeiro e quarto de prata com um leão de púrpura, armado e lampassado de vermelho; o segundo e terceiro do mesmo metal com três faixas xadrezadas de vermelho e ouro de três tiras; adestrado de ouro com quatro palas de vermelho (Lima); o terceiro de prata, mantelado de vermelho, semeado de quadrifólios do primeiro, e uma asna de azul, brocante sobre a partição (Cavalcanti); o quarto de prata com uma aspa de azul, carregada de cinco besantes de ouro (Araújo); por diferença, uma brica de azul com uma estrela de prata; coronel de marquês. (7)
Armas de Pedro de Araújo Lima, marquês de Olinda, concedidas por Dom Pedro I em 1828: esquartelado: o primeiro de vermelho com quatro palas de prata, carregadas de seis mosquetas de arminho, postas duas, uma, duas, uma (Casado); o segundo contraesquartelado: o primeiro e quarto de prata com um leão de púrpura, armado e lampassado de vermelho; o segundo e terceiro do mesmo metal com três faixas xadrezadas de vermelho e ouro de três tiras; adestrado de ouro com quatro palas de vermelho (Lima); o terceiro de prata, mantelado de vermelho, semeado de quadrifólios do primeiro, e uma asna de azul, brocante sobre a partição (Cavalcanti); o quarto de prata com uma aspa de azul, carregada de cinco besantes de ouro (Araújo); por diferença, uma brica de azul com uma estrela de prata; coronel de marquês. (7)

A palavra marquês deriva de marca, a qual está presente em todas as línguas românicas ocidentais, apesar da origem germânica. Supõe-se, pois, que tenha passado do frâncico ao latim no começo da Idade Média. A marca era a fronteira e, por metonímia, a região fronteiriça de um domínio. Por exemplo, os condes de Barcelona seguiram intitulando-se marchiones (marchio no singular) mesmo após a decadência do poderio franco, afinal ainda estavam na fronteira da cristandade com o Islã. É possível que a preferência do sufixo -ês se tenha originado na Itália (marchese em italiano) e daí passado às demais línguas românicas (marquis em francês, marquès em catalão, marqués em espanhol e marquês em português).

Em Portugal, os marquesados mais antigos foram criados para honrar a Casa de Bragança: o de Valença foi dado por Dom Afonso V em 1451 a Dom Afonso e o de Vila Viçosa em 1455 a Dom Fernando, ambos filhos de Dom Afonso, primeiro duque, e o de Montemor-o-Novo em 1478 a Dom João, filho do mesmo Dom Fernando, então segundo duque. Seguiu-se a elevação do condado de Vila Real em favor de Dom Pedro de Meneses em 1489.

No Brasil, o almirante Thomas Cochrane foi feito marquês do Maranhão por Dom Pedro I em 1823, o que gerou polêmica na Assembleia Constituinte, porque ainda não tinha legislado sobre a concessão de títulos nobiliários. Em 1825, elevou Francisco de Assis Mascarenhas, conde de São João da Palma por mercê do príncipe regente Dom João em 1810. No ano seguinte, criou nada menos que 23 marquesados.

O coronel de marquês tem três florões aparentes e entre eles três pérolas. Semelha, pois, a coroa que costuma cingir a cabeça de uma águia ou de um leão, porque o tamanho reduzido demanda maior singeleza.

Armas de Francisco do Rego Barros, conde da Boa Vista, concedidas por Dom Pedro II em 1870: partido: o primeiro de verde com um rio ao natural em banda, carregado de três vieiras de ouro (Rego); o segundo de vermelho com três bandas de prata, acompanhadas de nove estrelas de ouro de seis raios, postas uma, três, três, duas (Barros); pé de ouro, carregado de uma cana-de-açúcar e um ramo de cafeeiro, ambos de sua cor e passados em aspa; coronel de conde.
Armas de Francisco do Rego Barros, conde da Boa Vista, concedidas por Dom Pedro II em 1870: partido: o primeiro de verde com um rio ao natural em banda, carregado de três vieiras de ouro (Rego); o segundo de vermelho com três bandas de prata, acompanhadas de nove estrelas de ouro de seis raios, postas uma, três, três, duas (Barros); pé de ouro, carregado de uma cana-de-açúcar e um ramo de cafeeiro, ambos de sua cor e passados em aspa; coronel de conde. (8)

Em latim, a palavra comes,comitis compõe-se do prefixo com-, da raiz do verbo ire 'ir' e do sufixo -t-, que expressa agência, portanto significa 'aquele que vai com outra pessoa' ou, simplesmente, 'companheiro'. O seu sentido evoluiu de 'companheiro do imperador' para 'oficial'. Por exemplo: o comes rerum privatarum cuidava 'das coisas privadas', isto é, das propriedades do imperador. Graças a essa latitude semântica, o termo permaneceu em uso sob as monarquias germânicas e os seus estados sucessores, daí o italiano conte, o francês e o catalão comte, o espanhol e o português conde.

Com efeito, Ordonho I das Astúrias delegou por volta de 850 a administração da parte mais oriental do reino a um magnata, que a exerceu com o título de conde. Afonso III, seu filho e sucessor, fez o mesmo da parte mais ocidental em 868. Este condado deu origem ao reino de Portugal; aquele, ao de Castela.

Em Portugal, consta que Dom Sancho I concedeu o título de conde a Mem Gonçalves de Sousa, seu mordomo-mor. Tinha ainda caráter administrativo. O primeiro condado territorial foi o de Barcelos, dado por Dom Dinis a João Afonso de Meneses em 1298. Mas tampouco era hereditário. Tornou-se tal em 1385, quando Dom João I o deu, juntamente com os de Ourém e Arraiolos, a Nuno Álvares Pereira, o Santo Condestável.

No Brasil, o primeiro condado foi criado em 1825 por Dom Pedro I, quando elevou o viscondado de Baependi, que dera no ano antecedente a Manuel Jacinto Nogueira da Gama.

O coronel de conde tem nove pontas aparentes, cada uma rematada por uma pérola. Isso o torna o mais distintivo dos coronéis nobiliários.

Armas de Cândido Antunes de Oliveira, visconde de Messejana, concedidas por Dom Pedro II em 1867: de azul com uma banda de prata, carregada de três arruelas de vermelho e acompanhada de um caduceu e um encontro de boi, ambos de ouro; coronel de visconde.
Armas de Cândido Antunes de Oliveira, visconde de Messejana, concedidas por Dom Pedro II em 1867: de azul com uma banda de prata, carregada de três arruelas de vermelho e acompanhada de um caduceu de ouro e um encontro de boi do mesmo; coronel de visconde. (9)

A primeira sílaba da palavra visconde é outra forma do prefixo vice-, portanto na ausência do conde o visconde fazia as suas vezes. Com o tempo, o encargo de certas funções em dado território tornou alguns viscondados, originariamente administrativos, senhorios próprios, daí o título nobiliário.

Em Portugal, após o de Vila Nova de Cerveira a Leonel de Lima em 1476, deram-se apenas oito viscondados até o fim do século XVIII. Por outro lado, no XIX e especialmente sob a monarquia constitucional tornou-se uma forma interessante de honorificência para a Coroa, porque enobrecia o sujeito sem necessariamente o alçar à grandeza do Reino.

No Brasil, Dom Pedro I reconheceu em 1822 o viscondado de Rio Seco, que seu pai dera em 1818 a Joaquim José de Azevedo, acrescentando-lhe a grandeza do Império. Dois anos depois, criou dezessete viscondados.

O coronel de visconde tem cinco pontas aparentes, três maiores com pérolas grandes e entre elas duas menores com pérolas pequenas.

Armas de Domingos Ribeiro de Guimarães Peixoto, barão de Iguaraçu, concedidas por Dom Pedro II em 1845: esquartelado: o primeiro xadrezado de ouro e vermelho de cinco peças em faixa e seis em pala (Peixoto); o segundo e terceiro de vermelho com um leão de ouro; o quarto de prata, fretado de negro de dez peças em banda e nove em barra, com uma pala de vermelho, brocante sobre o fretado, e um leão de arminho, brocante sobre tudo (Guimarães); coronel de barão. (10)
Armas de Domingos Ribeiro de Guimarães Peixoto, barão de Iguaraçu, concedidas por Dom Pedro II em 1845: esquartelado: o primeiro xadrezado de ouro e vermelho de cinco peças em faixa e seis em pala (Peixoto); o segundo e terceiro de vermelho com um leão de ouro; o quarto de prata, fretado de negro de dez peças em banda e nove em barra, com uma pala de vermelho, brocante sobre o fretado, e um leão de arminho, armado e lampassado de azul e brocante sobre tudo (Guimarães); coronel de barão. (10)

A palavra barão tem a mesma origem de varão. Esta vem diretamente do latim baro,baronis; aquela, pelo francês baron. Possivelmente, foram os germanos que a transmitiram ao baixo-latim. Chamando-se eles 'homens livres' no seu idioma, os romanos deram ao vocábulo novo sentido, consoante o trabalho que esses homens lhes prestavam: 'mercenário'. A partir disso, o sentido foi-se ampliando: 'homem corajoso', 'homem nobre', 'senhor de terra'.

Em Portugal, as baronias foram ainda menos numerosas que os viscondados até o século XVIII. Depois de se ter dado em 1475 a de Alvito a João Fernandes da Silveira, só mais três foram criadas: a da Ilha Grande de Joanes em 1666, a de Mossâmedes em 1779 e a de Alverca em 1795. Com efeito, foi desde a regência do príncipe Dom João que tanto os viscondados como as baronias se multiplicaram.

Se em Portugal o título de visconde foi o mais concedido sob a monarquia constitucional, no Brasil o foi o de barão, ao ponto de uma parte da aristocracia ter ficado conhecida como "os barões do café". O baronato da Torre de Garcia d'Ávila foi o primeiro e também o título nobiliário mais antigo do Império, dado a Antônio Joaquim Pires de Carvalho e Albuquerque por Dom Pedro I na ocasião da sua coroação, ao 1.º de dezembro de 1822.

O coronel de barão não tem pontas, mas consiste simplemente do aro, no qual se enrosca um fio de pérolas.

Armas de Irineu Evangelista de Sousa, visconde de Mauá, concedidas por Dom Pedro II em 1855: cortado: o primeiro de ouro com uma locomotiva de negro sobre trilho do mesmo; o segundo de azul com um navio a vapor de prata, navegando num mar também de azul; bordadura de vermelho, carregada de quatro lampiões a gás de ouro, acesos de vermelho; coronel de conde.
Armas de Irineu Evangelista de Sousa, visconde de Mauá, concedidas por Dom Pedro II em 1855: cortado: o primeiro de ouro com uma locomotiva de negro sobre trilho do mesmo; o segundo de azul com um navio a vapor de prata, navegando num mar também de azul; bordadura de vermelho, carregada de quatro lampiões a gás de ouro, acesos de vermelho; coronel de conde. (11)

A multiplicação de viscondados e baronias na Idade Contemporânea vincula-se ao conceito de grandeza. Em Portugal, os duques, marqueses e condes eram os grandes do Reino, portanto esse conceito se assemelha mais ao pariato britânico que à grandeza de Espanha, já que esta não é inerente a título, nem mesmo ao de duque, assim como o pariato francês.

A única concessão de grandeza na Idade Moderna foi feita por Dom José a Martim Correia de Sá, quarto visconde de Asseca. Os demais viscondados e baronatos criados durante esse período ou se extinguiram ou foram elevados, exceto o viscondado de Fonte Arcada e o de Vila Nova de Souto d'el-Rei.

Sob a monarquia constitucional, a grandeza compensou, de certo modo, a extinção dos senhorios, já que ampliou o sistema honorífico. A alta nobreza, agora despojada dos seus privilégios, permaneceu acima da nova nobreza, composta por um número cada vez maior de viscondes e barões, aos quais se dava a expectativa de subir àquela ou pela concessão da grandeza ou pela elevação do título. (12)

Armas de Flávio Clementino da Silva Freire, barão de Mamanguape, concedidas por Dom Pedro II em 1860: de ouro com uma banda de azul, carregada de três flores de cana-de-açúcar do campo; coronel de conde.
Armas de Flávio Clementino da Silva Freire, barão de Mamanguape, concedidas por Dom Pedro II em 1860: de ouro com uma banda de azul, carregada de três flores de cana-de-açúcar do campo; coronel de conde. (13)

No Brasil, como não havia nobreza antiga, nem mesmo títulos de juro e herdade, a honraria de grande do Império foi concedida com maior largueza, pois até mesmo barões a ganhavam, o que não se praticava em Portugal. Isso propiciou que o número de marqueses e condes ficasse relativamente reduzido, conferindo equilíbrio ao conjunto da nobreza titulada.

Assim, Dom Pedro I ainda na ocasião da sua coroação fez as primeiras concessões da grandeza do Império: a Pedro Dias Pais Leme, barão de São João Marcos, a Manuel Inácio de Andrade, barão de Itanhaém, e a Joaquim José de Azevedo, visconde de Rio Seco. Todos títulos criados por Dom João VI em 1818 e 1819.

Tem-se dito que os viscondes e barões com grandeza faziam jus ao coronel do título superior nos seus brasões, mas isso não é exato. Na verdade, o grau mais baixo da grandeza era o condado, então era o coronel desse título que todo grande do Reino ou do Império abaixo dele, fosse titulado ou não, podia apor às suas armas.

Esse derradeiro apontamento confirma o argumento inicial: coroas e coronéis não são meros enfeites, mas sinais de dignidades, formalmente reconhecidas.

Notas:
(1) Os títulos nobiliários e as suas insígnias variam de um país a outro. Por exemplo, na Espanha abaixo de barão há o título de senhor, que tem o seu coronel heráldico, assim como o estado de fidalgo. Não obstante, os títulos de duque, marquês, conde, visconde e barão são, por assim dizer, o núcleo da nobreza titulada em toda a Europa ocidental. São, afinal, os títulos concedidos pelos reis portugueses e imperadores brasileiros.
(2) Nasceu em 1803 na Fazenda São Paulo, freguesia de Inhomirim, termo da vila de Magé, hoje no município de Duque de Caxias, Rio de Janeiro. Foi presidente do Maranhão (1841), do Rio Grande do Sul (1842-46 e 1851) e do Conselho de Ministros (1856-57, 1861-62 e 1875-78) e ministro da Guerra (1855-57 e 1861-62). Promovido a marechal do Exército em 1866, exerceu o comando-geral das forças brasileiras na Guerra do Paraguai desde esse ano até 1869. Barão desde 1841, elevado a conde em 1845, a marquês em 1852 e a duque em 1869. Morreu em 1880 na Fazenda Santa Mônica, termo da vila de Valença, Rio de Janeiro.
(3) As armas do duque de Caxias são um problema da heráldica brasileira, que pretendo abordar proximamente.
(4) O verbo ducere não teve continuidade direta em português, mas está presente nos numerosos derivados prefixados: aduzir, abduzir, conduzir, deduzir, induzir etc.
(5) Em 1339, a República de Gênova começou a intitular dux (duxe em genovês, pronunciado /'dyʒe/) o seu chefe de estado. Em italiano, doge é adaptação da palavra vêneta. Em 1919, Benito Mussolini assumiu a forma duce para intitular a sua chefia do fascismo, o que inspirou os movimentos afins, o principal o nazismo, cujo chefe, Adolf Hitler, se intitulava Führer.
(6) Essa espécie de titulação continua a ser praticada: na Espanha, a infanta Helena, irmã do rei, é duquesa de Lugo; na Grã-Bretanha, o príncipe André, irmão do rei, é duque de York; na Suécia, o príncipe Carlos Filipe, segundo filho do rei, é duque de Värmland.
(7) Nasceu em 1793 em Sirinhaém, Pernambuco. Foi deputado às Cortes de Lisboa (1821-22) e à Assembleia Constituinte (1823), ministro dos Negócios do Império (1823, 1827-28, 1837, 1857-58, 1862-64 e 1865-66), da Justiça e dos Negócios Estrangeiros (1832), senador (desde 1837) e regente do Império (1837-40) e presidente do Conselho de Ministros (1848-49, 1857-58, 1862-64, 1865-66). Visconde desde 1841, elevado a marquês em 1854. Morreu em 1870 no Rio de Janeiro.
(8) Nasceu em 1802 no Engenho Trapiche, freguesia do Cabo, termo da vila do Recife, hoje no município de Cabo de Santo Agostinho. Foi presidente de Pernambuco (1837-44) e do Rio Grande do Sul (1865-67) e senador do Império (desde 1850). Barão desde 1841, elevado a grande do Império em 1854, a visconde em 1858 e a conde em 1860. Morreu no Recife em 1870.
(9) Nasceu por volta de 1825 em Aracati, Ceará. Foi fazendeiro, comerciante e major da Guarda Nacional. Morou no Recife desde 1878. Barão desde 1867, elevado a visconde em 1885. Morreu em 1891 em Paris.
(10) Nasceu em 1790 no Recife. Foi cirurgião da Casa Real (1817) e da Real Câmara (1820), cirurgião-mor do Império (1824) e diretor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (1832-39). Morreu em 1846 no Rio de Janeiro.
(11) Nasceu em 1813 na freguesia do Arroio Grande, termo da Vila do Rio Grande, hoje no município de Arroio Grande, Rio Grande do Sul, e morou no Rio de Janeiro desde a idade de nove anos. Comprou a Fundição e os Estaleiros da Ponta da Areia em 1846, fundou a Companhia de Rebocadores da Barra do Rio Grande em 1849, a Companhia de Iluminação a Gás do Rio de Janeiro em 1851, o segundo Banco do Brasil no mesmo ano, a Companhia de Navegação a Vapor do Amazonas em 1852, a Mauá, McGregor e Cia. em 1854 (Banco Mauá desde 1866), construiu a via férrea do porto de Mauá, no fundo da baía da Guanabara, à raiz da serra de Petrópolis em 1856, a primeira do país, e instalou o cabo telegráfico submarino até Portugal em 1872, o primeiro ligando o Brasil ao resto do mundo, entre outros vários empreendimentos, todos falidos. Foi deputado pelo Rio Grande do Sul (1856, 1859-66 e 1872-73). Barão desde 1854, elevado a visconde com grandeza em 1874. Morreu em 1889 em Petrópolis, Rio de Janeiro.
(12) Em Portugal sob a Constituição de 1826, também gozavam da grandeza os pares do Reino, isto é, os membros da câmara alta do parlamento.
(13) Nasceu em 1816 em Montemor-o-Novo, depois Mamanguape, Paraíba. Foi presidente dessa província (1853, 1854, 1855, 1861 e 1876-77), deputado por ela (1857-64) e senador do Império (desde 1869). Barão desde 1860, elevado a grande do Império em 1888. Morreu em 1900 na cidade da Paraíba, hoje João Pessoa.