19/05/22

A POMPA FÚNEBRE DE CARLOS V: AS EXÉQUIAS

O cortejo que o desenho de Hieronymus Cock eternizou dirigia-se, propriamente, às celebrações religiosas do passamento de Carlos V.

Como eu disse na postagem de 01/05, La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... não retrata sequer o cortejo todo, mas a parte que aos autores pareceu mais espetacular. Ora, esse cortejo não era senão o deslocamento do rei, da sua Casa e de muitos oficiais administrativos dos Países Baixos e de outros domínios desde o paço do Coudenberg até a igreja de Santa Gúdula para a celebração das exéquias. Esta vem sucintamente descrita na última página de texto do livro:

Última página de texto de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da BnF).

Em português:

As exéquias e funeral desse máximo e vitoriosíssimo Imperador Carlos V, finalmente celebradas e solenizadas na dita Bruxelas, na grande Igreja Santa Gúdula, com tanta magnificência e suntuosidade que pela pompa fúnebre aqui representada se pode ver.

Para perpétua memória delas, foram fincadas e alinhadas por ordem e em igual distância e altura, ao longo de todo o coro e a nave e o cruzeiro da dita igreja, as bandeiras, corneta, pendão e estandartes levados na sobredita pompa fúnebre, juntamente com as bandeiras que estavam no navio triunfal. E as demais peças de honra foram também postas no mais alto e mais eminente lugar do coro, logo acima do altar-mor dessa igreja, na ordem designada na figura seguinte.

Armário com as insígnias imperiais e pessoais de Carlos V (exemplar da BnF).

Aqui convém voltar ao começo (postagem de 29/04) e lembrar que a capela-ardente foi erguida no cruzeiro da igreja e o altar, diante da porta do coro. Chegados aí por volta das quatro da tarde, os bispos sentaram-se à direita desse altar e os demais prelados, a ambos os lados. Para o rei, montou-se um estrado de três degraus à direita da capela-ardente e, sobre este, um assento. À direita do rei, também sobre um estrado, este de dois degraus, sentou-se o duque da Saboia. Em seguida e na mesma direção, outro estrado, este de um degrau, sustentava o assento dos príncipes e duques. Do outro lado, sentaram-se os embaixadores do Império, Portugal e Veneza, onde tinham aguardado o cortejo, e os cavaleiros do Tosão de Ouro, também sobre estrados de um degrau. Rente à nave, pôs-se um banco a cada lado: à direita ficaram os oficiais dos Países Baixos e demais domínios; à esquerda, os marqueses, condes, senhores e demais cavalheiros.

No primeiro dia, fincaram-se as bandeiras dentro da igreja, ao passo que a nave Vitória e os cavalos ficaram fora. O bispo de Liège celebrou, então, a vigília, depois da qual todos retornaram ao paço, salvo o clero, que os recebeu à entrada da igreja no dia seguinte, às onze horas, depois de terem refeito o cortejo. O mesmo bispo celebrou, então, a missa, em cujo ofertório os mesmos gentis-homens que levaram as bandeiras e os cavalos os apresentaram, cada trio conduzido por um rei de armas. Perante o féretro faziam uma grande reverência.

Não se apresentaram, todavia, as insígnias imperiais e pessoais de Carlos V, que se expuseram junto ao féretro, como se vê na imagem da capela-ardente. Para guardá-las de um dia para o outro, fabricou-se o armário que o livro mostra: a moldura era ladeada por duas colunas coríntias, assentes sobre rochedos e rematadas por coroas, a da esquerda imperial e a da direita real, sobre aquela um letreiro que dizia Plus e sobre esta, outro que dizia Oultre. Em suma, a empresa do imperador. Abaixo da moldura, outro letreiro dizia 1558 e, acima, a escultura de um coroamento ostentava as armas imperiais com o escudete da Áustria. Encima desse coroamento, esculpiram-se a um lado e ao outro dois leões sentados segurando bandeiras armoriadas, a da esquerda de Brabante e a da direita de Flandres; esses leões olhavam para o meio, onde se levantava o timbre das armas reais castelhanas: um castelo rematado por um leão nascente, empunhando uma espada. Dentro do armário, arrumaram-se meticulosamente as insígnias: a cota de armas no centro; à sua direita, o escudo com o colar do Tosão de Ouro e o elmo imperial, coroado, e à esquerda, a espada e a tarja com o elmo de justa; acima da cota, o orbe e a coroa entre a espada de honra e o cetro; nos cantos, as armas dos costados: em cima as de Maximiliano I e Fernando o Católico, ambas com o colar do Tosão de Ouro; embaixo, as de Maria da Borgonha e Isabel a Católica.

Após o ofertório, o bispo auxiliar de Arras pregou em francês um longo sermão louvando a vida do finado. Acabado esse sermão, rematou-se a missa e refez-se o cortejo de volta ao paço. Assim se concluiu a pompa fúnebre de Carlos V.

17/05/22

A POMPA FÚNEBRE DE CARLOS V: O FIM DO CORTEJO

A heráldica na pompa fúnebre de Carlos V não era apenas decorativa, mas representava efetivamente uma monarquia compósita.

Quem vê as pranchas finais de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre..., pensa que, tendo aparecido o rei, o cortejo era encerrado pelos cavaleiros do Tosão de Ouro. No entanto, atrás deles ainda havia bastante gente. O livro não os mostra, mas os menciona em uma página de texto:

Penúltima página de texto de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da BnF).
Penúltima página de texto de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da BnF).

Em português:

Depois seguia o duque de Francavilla, presidente dos Conselhos da Itália, e ao seu lado direito o conde de Chinchón, tesoureiro de Aragão, e do outro o Licenciado Menchaca, que é do Conselho da Câmara do Rei. Depois, os regentes de Nápoles, de Milão, de Aragão, da Sicília e da Catalunha e os secretários do Conselho de Estado desses países; o presidente, os conselheiros e secretários do Conselho de Estado dos Países de Baixo; os conselheiros, maitres des requêtes, secretários, meirinhos e outros oficiais do Conselho Privado. Na sequência, o tesoureiro, o recebedor-geral, os oficiais-mores, almoxarifes, escrivães e outros oficiais das finanças dos ditos Países de Baixo. E os oficiais do gabinete da Casa do Rei.

E para encerrar a ordem da pompa acima representada, o lugar-tenente do capitão do corpo de archeiros do Rei seguia atrás e esses archeiros em tropa.

Prancha n.º 33 do exemplar da BNE.
Prancha n.º 33 do exemplar da BNE.

Curiosamente, o exemplar colorido de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... conservado na Biblioteca Nacional de España contém uma prancha espúria, interpolada entre as de n.os 26 e 27, que mostra "[l]os señores de los consejos de España y [Italia]" e em tudo imita o estilo da obra. Essa prancha, numerada à mão com o n.º 33, está, infelizmente, rasgada, mas a parte preservada identifica as personagens seguintes: Diego Hurtado de Mendoza, duque de Francavilla e presidente do Conselho da Itália; Pedro Fernández de Cabrera y Bobadilla, conde de Chinchón e tesoureiro-geral da Coroa de Aragão; o Licenciado Francisco Menchaca do Conselho da Câmara; Lorenzo Polo e Marcello Pignone, marquês de Oriolo, regentes do Conselho da Itália por Nápoles; Juan Barahona e Gabriele Casati, regentes do mesmo conselho por Milão. Além disso, em dezembro de 1558, o presidente do Conselho de Estado dos Países Baixos era Viglius van Aytta; o tesoureiro-geral das finanças era Pierre Boisot; o recebedor-geral era Lievin Wouters.

Esses nomes e ofícios dão uma ideia de como funcionava "o império onde o sol nunca se punha". Com efeito, a cada brasão nas postagens de 05/05 e 07/05, corresponde não só certo território, mas também certo ordenamento jurídico. É por isso que o próprio Carlos V teve de esperar pacientemente quase três anos para ser jurado rei pelas várias cortes hispânicas, como expus na postagem de 25/04. A relação soberano-vassalo era entendida, especialmente na Coroa de Aragão, como recíproca: o vassalo jurava lealdade e o soberano, a defesa do direito. O direito, em diferentes medidas, prevenia que a soberania se convertesse em tirania. À exceção da Coroa de Castela, cujos reinos — Castela, Leão, Granada, Toledo, Galiza, Sevilha, Córdova, Múrcia, Jaén, ilhas Canárias e Índias — não passavam, na prática, de províncias de uma monarquia autoritária (1), os demais estados tinham instituições aproximadamente análogas.

Assim, a soberania ou senhoria era exercida por um vicário do monarca diversamente intitulado: vice-rei, locotenente-geral, governadorHavia um corpo de direito civil, legislado pelos representantes dos três estamentos: nobreza, clero e burguesia. As assembleias dos estamentos denominavam-se Cortes em Aragão, Navarra, Valência, Sardenha e Catalunha; Parlamento na Sicília; Estados Gerais nos Países Baixos; Senado em Milão. Mas, como não funcionavam permanentemente, entre uma celebração e outra foi preciso instituir um órgão permanente, o qual acabou assumindo a maior parte da administração no seu território e se chamava Deputação do Reino em Aragão, Navarra e Sicília; Deputação do Geral em Valência e na Catalunha; Conselhos Colaterais nos Países Baixos. A instância judicial superior era a Real Audiência em Aragão, Valência, Maiorca, Sardenha e Catalunha; a Grande Corte na Sicília; o Sacro Régio Conselho em Nápoles; o Conselho Real em Navarra; o Grande Conselho nos Países Baixos; o mesmo Senado em Milão. (2)

Tamanha descentralização demandava uma instância que mediasse os interesses dos vassalos junto ao soberano, daí que se tenham criado os conselhos territoriais na corte: o Conselho de Castela abrangia o território peninsular da Coroa homônima e as ilhas Canárias; o das Índias (1524), os demais territórios ultramarinos dessa Coroa; o de Aragão (1494), o reino desse nome, os de Valência, Maiorca, Sardenha e o principado da Catalunha; o da Itália (1556), os reinos da Sicília e de Nápoles e o ducado de Milão; o de Flandres e Borgonha (1588), os Países Baixos. A única instância comum a toda a monarquia era o Conselho de Estado, ao qual competia a política exterior.

Foi precisamente a política exterior que desgastou pouco a pouco o sistema, já que nem sempre os diferentes estados se dispunham de bom grado a suportar os custos de guerras incessantes que pouco tinham a ver com eles. Em grande medida, restava à Coroa de Castela sustentar essa despesa, não só porque o rei residia aí, mas também porque era o domínio mais extenso e populoso e o que limitava menos o poder régio, tanto que tinha mais dois conselhos: o da Câmara (1518) e o da Fazenda (1523). Seja como for, a monarquia compósita que os avós de Carlos V lhe legaram e ele realizou durou até o fim da sua linha masculina, em 1700.

Nota:
(1) A exceção da exceção, por assim dizer, era o que depois seria chamado de províncias vascongadas e hoje forma o País Basco: o senhorio da Biscaia e as províncias de Álava e Guipúzcoa. Os seus forais escaparam à uniformização administrativa até o século XIX e, residualmente, até a atualidade. 
(2) O corpo de direito civil denominava-se forais (fueros em espanhol e furs em catalão) em Aragão, Navarra e Valência e franquezas em Maiorca. Além disso, os reinos de Nápoles e Maiorca não tinham parlamento, mas o Conselho Colateral daquele e os Conselhos Gerais deste acumulavam competências executivas e legislativas. Na Sardenha e em Milão não havia deputação permanente do parlamento. Enfim, cada senhorio dos Países Baixos tinha as suas próprias instiuições, as principais os parlamentos, chamados estados.

15/05/22

A POMPA FÚNEBRE DE CARLOS V: O REI E OS CAVALEIROS DO TOSÃO DE OURO

O Tosão de Ouro está entre as ordens de cavalaria em vigência mais antigas e prestigiosas, embora não se saiba bem ao que se propõe na atualidade.

Após o exuberante desfile de brasões, reproduzidos sobre bandeiras, cotas, gualdrapas e escudos, aparece, finalmente, na seção entre a prancha n.º 29 e n.º 32, o rei, chefe das honras ("chief du deuil"), com os cavaleiros do Tosão de Ouro e os oficiais dessa ordem.

Pranchas n.º 29 e n.º 30 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da BnF).
Pranchas n.º 29 e n.º 30 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da BnF).

Mais precisamente, abriam essa parte do cortejo os mordomos de Filipe II: adiante Pedro Dávila y Zúñiga, marquês de Las Navas, e Pedro de Guzmán, conde de Olivares, e atrás Fernando Álvarez de Toledo, duque de Alba e mordomo-mor. Cada um caminhava apoiando uma grande vara.

Logo à frente do monarca, ia Antoine de Beaulaincourt, senhor de Bellenville, rei de armas Tosão de Ouro e presidente do cerimonial. Vestia um tabardo armoriado com as armas imperiais, levava a sua potence e empunhava um bastão. Filipe II ia coberto por um capuz e um manto tão longo que o sustinham à sua direita o duque Henrique de Brunswick, à esquerda Luis Cristóbal Ponce de León, duque de Arcos, e atrás Rui Gomes da Silva, conde de Melito e primeiro sumilher de corps.

Pranchas n.º 31 e n.º 32 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da BnF).
Pranchas n.º 31 e n.º 32 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da BnF).

Seguiam-se os cavaleiros do Tosão de Ouro: primeiro o duque Manuel Filiberto da Saboia, só e encapuzado, por ser príncipe do sangue (era primo do rei, ambos filhos de infantas portuguesas). Depois, aos pares: Jean de Hénin, conde de Boussu, e o conde Lamoral de Egmont; Jean de Ligne, conde de Arenberg, e Jean de Lannoy, senhor de Molembais; Philippe de Croÿ, duque de Aerschot, e Charles de Berlaymont; Jean de Glymes, marquês de Berghes, e Jean de Montmorency, senhor de Courrières; o conde João da Frísia Oriental, e Antonio Doria, marquês de Santo Stefano.

Enfim, atrás dos cavaleiros iam os oficiais da ordem: Pierre Boisot, tesoureiro; Philippe Nigri, chanceler; Nicolas Nicolaï, escrivão.

Pranchas n.º 29 e n.º 30 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).
Pranchas n.º 29 e n.º 30 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

Por que a Casa Real toda andava à frente do rei e os cavaleiros iam atrás? Porque o 12.º capítulo da ordem (1473) assim o estabeleceu, precisamente. Ela fora fundada por Filipe o Bom, duque da Borgonha, em 1430. O preâmbulo dos seus estatutos expõe claramente as causas, a natureza e os fins:

Philippe, par la grâce de Dieu Duc de Bourgogne, de Lothier, de Brabant et de Limbourg, Comte de Flandres, d'Artois, de Bourgogne Palatin, de Hainaut, de Hollande, de Zélande et de Namur, Marquis du Saint-Empire, Seigneur de Frise, de Salins et de Malines. Savoir faisons à tous présents et à venir que, pour la très grande et parfaite amour qu'avons au noble estat et ordre de chevalerie, dont de très ardente et singulière affection désirons l'honneur et accroissement, parquoi la vraie foi catholique, l'estat de nostre mère Sainte église et la tranquillité et prospérité de la chose publique soient, comme estre peuvent, défendues, gardées et maintenues, Nous, à la gloire et louange du Toutpuissant, nostre créateur et rédempteur, en révérence de sa glorieuse Vierge Mère et à l'honneur de Monseigneur Saint Andrieu, glorieux apostre et martyr, à l'exaltation de la foi et de Sainte église et excitation des vertus et bonnes mœurs, le 10.e jour du mois de janvier l'an de nostre Seigneur 1429, qui fut le jour de la solennisation du mariage de Nous et nostre très chère et très aimée compagne, Elisabeth, en nostre ville de Bruges, avons pris, créé et ordonné et par ces présentes prenons, créons et ordonnons un ordre et fraternité de chevalerie ou amiable compagnie de certain nombre de chevaliers, que voulons estre appelée l'ordre de la Toison d'or. (1)

O nome foi inspirado pelo mito grego do velocino de ouro: a pele do carneiro Crisomalo, sacrificado por Frixo depois de tê-lo montado para fugir de Atamante, seu pai, que ia sacrificá-lo por uma artimanha de Ino, sua madrasta. Presenteado ao rei Eetes da Cólquide, Pélias o exigiu a Jasão, seu sobrinho, como resgate do trono que usurpara. Para tanto, Argos, filho de Frixo construiu, sob a guia de Atena, o navio que levou o seu nome: Argo. Graças à bravura dos seus companheiros — os argonautas  e a magia de Medeia, filha de Eetes, Jasão obteve o velocino. À luz da fundação da ordem, é fácil entender o que o mito evocava: como o herói antigo, o duque Filipe alistava uma companhia de paladinos para empreender uma demanda épica além-mar, a própria cruzada.

Contudo, a evocação de um mito pagão não agradou à igreja, ainda que plenamente de acordo com o gosto do momento, de modo que Jasão logo deu lugar a Gedeão, o forte que Deus escolheu para vencer os madianitas e, hesitante, Lhe pediu um sinal de confirmação, estendendo um velo sobre a eira, que primeiro ficou empapado de orvalho enquanto o chão estava seco e depois ficou enxuto enquanto o chão estava molhado (Juízes, 6, 36-40).

Com relação à insígnia, um carneiro abatido pende de um colar de fuzis que acendem pederneiras faiscantes. À sua vez, esses fuzis encadeiam-se à semelhança de letras bês (de Bourgogne), tudo como os próprios estatutos dispõem (capítulo III):

Item, pour avoir connoissance dudit ordre et des chevaliers qui en seront, Nous, pour une fois, donnerons à chascun des chevaliers d'icelui ordre un collier d'or, fait à nostre devise, c'est à savoir, par pièces à façon de fusils, touchants à pierres, dont partent estincelles ardentes, et au bout d'icelui collier, pendant la semblance d'une toison d'or. (2)

Como eu disse na postagem de 03/05, o fuzil e a pederneira faiscante eram o corpo da empresa de Filipe o Bom, quem também cedeu a alma dela à ordem: Ante ferit quam micet ('Fere antes de acender'). No colar do rei de armas, as pederneiras pendiam de duas fileiras de placas, engatadas por dobradiças, as quais ostentavam as armas e a empresa de Carlos V e os brasões dos cavaleiros: a chamada potence.

Embora a ascensão e expansão dos otomanos tenham alimentado o ideal cruzado, como razoei na mesma postagem, a verdade é que no começo do século XV o tempo das cruzadas tinha passado. Mais que isso: a própria cavalaria começava a assumir a sua forma moderna, isto é, o código de conduta de um estamento nobiliário cada vez menos guerreiro e mais cortesão. Efetivamente, as ordens que tinham surgido da luta contra o Islã, tanto na Terra Santa como na Espanha, combinavam bellatores e oratores, já que os seus membros professavam votos e obedeciam a certa regra, de modo que tais ordens eram igualmente militares e religiosas. Em contrapartida, as ordens cavalheirescas eram laicas, portanto o juramento de lealdade aos seus soberanos era o que unia os seus membros. Isso pareceu especialmente estratégico ao duque borguinhão, que possuía muitos estados, dispersos sob a suserania ou do imperador ou do rei francês.

Pranchas n.º 31 e n.º 32 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).
Pranchas n.º 31 e n.º 32 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

Não obstante, longe de ser uma inovação, a fundação de ordens de cavalaria vinha-se desenvolvendo havia mais de cem anos e nem todas as iniciativas obtinham sucesso. Para garantir, então, o prestígio e a perenidade, Filipe o Bom estatuiu, à semelhança da Ordem da Jarreteira, um número fechado de cavaleiros e que estes sempre trouxessem o colar e não aceitassem tomar parte de outra ordem.

Com o tempo, abrandaram-se essas disposições: o terceiro capítulo (1433) aumentou o número de cavaleiros de 24 para 30 e o 18.º (1519), para 51; o quinto (1436) permitiu o ingresso de príncipes que tivessem as suas próprias ordens e 12.º (1473), de qualquer príncipe, independentemente do vínculo com outra ordem; também o 18.º deu aos cavaleiros a opção de trazer a insígnia pendurada por uma fita vermelha ou corrente de ouro em vez do pesado colar. Em dezembro de 1558, quando se celebrou a pompa fúnebre de Carlos V, a Ordem do Tosão de Ouro tinhaalém do soberano, 41 cavaleiros viventes:

130. O imperador Fernando I;
164. o rei Cristiano II da Dinamarca, então deposto e prisioneiro;
171. Pedro Fernández de Velasco, duque de Frías;
174. Beltrán de la Cueva, duque de Albuquerque;
175. Andrea Doria, príncipe de Melfi;
182. Jean de Hénin, conde de Boussu;
192. o arquiduque Maximiliano da Áustria, primogênito do imperador Fernando I;
193. Íñigo López de Mendoza, duque do Infantado;
194. Fernando Álvarez de Toledo, duque de Alba;
195. Cosme de Médici, duque de Florença;
196. o duque Alberto da Baviera;
197. o duque Manuel Filiberto da Saboia;
198. Otávio Farnésio, duque de Parma;
200. o conde Frederico de Fürstenberg;
202. Joachim de Rye;
204. o conde Lamoral de Egmont;
205. Claude de Vergy, conde de Gruères;
207. Maximiliano de Borgonha, marquês de Veere;
209. o conde Pedro Ernesto de Mansfeld;
210. Jean de Ligne, conde de Arenberg;
212. Jean de Lannoy, senhor de Molembais;
213. Pedro Fernández de Córdoba, conde de Feria;
214. o duque Henrique de Brunswick;
215. o arquiduque Fernando da Áustria, filho segundo do imperador Fernando I;
216. Philippe de Croÿ, duque de Aerschot;
217. Gonzalo Fernández de Córdoba, duque de Sessa;
218. o príncipe Carlos, primogênito do rei Filipe II;
219. Luis Enríquez de Cabrera, duque de Medina de Rioseco;
220. Alfonso de Aragón y Portugal, duque de Segorbe;
221. Charles de Berlaymont;
222. Philippe de Stavele, senhor de Chaumont;
223. Charles de Brimeu, conde de Meghem;
224. Philippe de Montmorency-Nivelle, conde de Horn;
225. Jean de Glymes, marquês de Berghes;
226. o príncipe Guilherme de Orange;
227. Jean de Montmorency, senhor de Courrières;
228. o conde João da Frísia Oriental;
229. Wratislaw von Pernstein;
230. Alfonso de Dávalos de Aquino, marquês de Pescara;
231. Antonio Doria, marquês de Santo Stefano;
232. Sforza Sforza, conde de Santa Fiora.

Apesar do abrandamento, a ordem cumpriu os seus fins estatutários até 1559, quando se celebrou o 23.º capítulo e derradeiro. Desde então, começou, porém, a se descaracterizar: em 1578, o papa Gregório XIII dispensou a eleição capitular para a admissão de cavaleiros novos, a qual, desde então, coube inteiramente ao soberano; em 1773, Gregório XIV derrogou o impedimento de se pertencer a outra ordem; em 1817, Pio VII permitiu a investidura de não católicos como cavaleiros supranumerários; de 1833 a 1868, a chefia foi exercida por uma mulher, Isabel II da Espanha (3); em 1847, o Real Decreto de 26 de julho situou o Tosão de Ouro entre "[l]as órdenes reales de España, en la esfera civil" e suprimiu a condição e as provas de nobreza para todas; em 1870, Francisco Serrano, duque da Torre e regente do reino após a queda da rainha, outorgou o Tosão ao sultão otomano Abdulaziz, escancarando que a ordem perdera todos os seus propósitos originários.

Hoje em dia, o Tosão de Ouro é uma ordem anômala. Na verdade, duas ordens, porque malgrado todos os tratados de paz que se seguiram à Guerra de Sucessão Espanhola (1701-1713), tanto o rei Filipe V como o imperador Carlos VI se intitularam soberanos e assim ficou: de um lado, o Tosão espanhol, uma ordem que se tornou da Coroa; do outro, o Tosão austríaco, uma ordem que permaneceu dinástica, até mesmo sob a República, que reconheceu, ainda, à Casa de Habsburgo-Lorena a posse do seu tesouro, transferido de Bruxelas para Viena quando os franceses invadiram os Países Baixos em 1794. Seja como for, nenhuma nunca atualizou os estatutos, de modo que não se sabe ao certo a que se propõem na contemporaneidade.

Notas:
(1) "Filipe, pela graça de Deus Duque da Borgonha, da Lotaríngia, de Brabante e de Limburgo, Conde de Flandres, de Artois, da Borgonha Palatino, de Hainaut, da Holanda, da Zelândia e de Namur, Marquês do Sacro Império, Senhor da Frísia, de Salins e de Mechelen. Saber fazemos a todos os presentes e por virem que, pelo máximo e perfeito amor que temos ao nobre estado e ordem de cavalaria, cuja honra e acrescentamento com ardentíssima e singular afeição desejamos, para que a verdadeira fé católica, o estado da nossa mãe Santa Igreja e a tranquilidade e prosperidade da coisa pública sejam, como puderem, defendidas, guardadas e mantidas, Nós, para a glória e louvor do Todo-Poderoso, nosso criador e redentor, em reverência da sua gloriosa Virgem Mãe e para a honra do Senhor Santo André, glorioso apóstolo e mártir, para a exaltação da fé e da Santa Igreja e excitação das virtudes e bons costumes, aos 10 dias do mês de janeiro do ano de Nosso Senhor de 1429, que foi o dia da solenização do casamento de Nós e nossa caríssima e muito amada companheira, Isabel, em nossa cidade de Bruges, tomámos, criámos e ordenámos e por estas presentes tomamos, criamos e ordenamos uma ordem e fraternidade de cavalaria ou amigável companhia de certo número de cavaleiros, que queremos seja chamada a Ordem do Tosão de Ouro." (tradução minha)
(2) "Para ter conhecimento da dita ordem e dos cavaleiros que serão dela, Nós, por uma vez, daremos a cada um dos cavaleiros dessa ordem um colar de ouro, feito com a nossa empresa, a saber, por peças à feição de fuzis, encostando em pedras, das quais saem centelhas ardentes, e na ponta desse colar, pendente a imagem de um tosão de ouro." (tradução minha)
(3) Em contraposição à duquesa Maria da Borgonha, que teve de ceder interinamente a chefia da ordem ao arquiduque Maximiliano da Áustria, seu marido, até que seu filho Filipe atingisse a maioridade.

13/05/22

A POMPA FÚNEBRE DE CARLOS V: AS INSÍGNIAS IMPERIAIS (II)

Há uma relação dialética entre a heráldica e as instituições às quais ela serve.

Na postagem de 29/04/2021, expus que a águia negra em campo de ouro era, na cultura heráldica da Idade Moderna inicial, atribuída a Júlio César. Hoje sabemos que a armaria surgiu no século XII e, portanto, se tratava de uma atribuição imaginária. Não obstante, a figura tem, sim, origem antiga: após as reformas de Mário (107 a.C.), era a insígnia das legiões, representando Júpiter, o deus tutelar de Roma.

Pranchas n.os 21, 22 e 23 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

Com efeito, o caso ilustra algo que razoei na postagem de 12/02/2021: uma águia remata o cetro no selo imperial desde 1029 (sob Conrado II) até 1106 (sob Henrique IV), portanto é exemplo de figura sigilar que acabou convertendo-se em figura heráldica. As armas imperiais apareceram um centênio e meio depois: por volta de 1180 em Maastricht, sob Frederico Barba-Ruiva, cunhou-se um dinheiro cujo reverso mostra um escudo com uma águia e a legenda Scutum imperatoris ('Escudo do imperador').

Pranchas n.os 24 e 25 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

Liber ad honorem Augusti (à folha 109r), escrito por Pedro de Eboli em 1196, sob Henrique VI, sugere que o campo era de prata. O testemunho remanescente mais antigo do campo de ouro está nas obras de Mateus Paris. À folha 22r da segunda parte da Chronica majora (códice MS 016II, conservado no Corpus Christi College, Cambridge), escrita entre 1240 e 1255, dá as armas de Otão IV: um escudo de ouro com uma águia de duas cabeças de negro e outro, dimidiado dessas mesmas armas, com três leopardos de ouro no primeiro, de vermelho. A cada um apôs-se uma legenda: àquele, "Otto creatur in imperatorem Romanorum" ("Otão é investido imperador dos romanos"); a este, "Scutum mutatum pro amore regis Angliæ" ("Escudo mudado por amor ao rei da Inglaterra"). Otão pertencia à Casa de Welf, mas entroncava com os Plantagenetas pela linhagem materna e, por doação de Ricardo Coração de Leão, tio seu, era duque da Aquitânia quando foi eleito imperador em 1198. À folha 76v, o cronista dá as armas de Frederico II, eleito em 1212, e brasona-as: "Scutum imperatoris: scuti campus aureus aquila nigra" ("Escudo do imperador: o campo do escudo de ouro com uma águia negra"). Parece que o recurso à dimidiação o levou a cair no engano de atribuir a águia bicípite aos imperadores ocidentais bem antes de eles mesmos a terem adotado.

Prancha n.º  26 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

Com efeito, a águia bicípite (ou dicéfala) tem uma história singular. A sua origem é turcomana: aparece nas moedas dos zênguidas de Sinjar e dos artúquidas de Âmida, mas foi por intermédio dos seljúcidas da Anatólia que foi transmitida aos bizantinos. O seu significado primitivo coincide com o da águia monocéfala romana: é a ave que voa mais alto e, portanto, se aproxima mais ao Pai Céu. Na indumentária imperial, a atestação remanescente mais antiga remonta à bula de ouro de Andronico II em 1301: o imperador está em pé sobre um coxim vermelho (souppédioncom duas águias bicípites douradas. Todavia, como a heráldica no Oriente não passou de uma tentativa de emular esse sistema semiótico ocidental, faltam critérios que distingam claramente o que era decorativo e o que era emblemático.

Pranchas n.os 27 e 28 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).
Pranchas n.os 27 e 28 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

Ora, entre 1269 e 1280 em Flandres, sob a condessa Margarida II, cunharam-se grossos cujo reverso mostra uma águia dicéfala. Sendo filha de Balduíno IX, conde de Flandres, um dos comandantes da Quarta Cruzada e primeiro imperador latino de Constantinopla, é razoável supor que, ao evocar tão augusta ascendência, essa figura estava então não só vinculada aos imperadores orientais, mas também era interpretada no Ocidente exatamente como a águia monocéfala: o emblema da monarquia. Essa interpretação é confirmada algum tempo depois por Giovanni Villani, que resolveu a diferença de uma águia e da outra na sua Nuova cronica (livro segundo, capítulo terceiro) assim:

Iulio Cesare la portò, il campo vermiglio e l'aquila ad oro, come fa menzione Lucano in versi, dicendo: "Signa, pares aquilas et pila minantia pilis" (1). Ma poi Ottaviano Agusto, suo nipote e successore imperadore, la mutò e portò il campo ad oro e l'aquila naturale, di colore nero, a similitudine della signoria dello imperio, che, come l'aquila è sovra ogni uccello e vede chiaro più ch'altro animale e vola infino al cielo dell'emisperio del fuoco, così lo 'mperio dé essere sopra ogni signoria temporale. E appresso Ottaviano tutti gli imperadori de' romani l'hanno per simile modo portata; ma Gostantino e poi gli altri imperadori de' greci ritennono la 'nsegna di Iulio Cesare, cioè il campo vermiglio e l'aquila ad oro, ma con due capi. (2)

Tanto é uma visão ocidental que os imperadores orientais nunca figuraram a águia dicéfala em moeda ou bandeira, ao menos não em fonte coeva e bizantina. Parece que para eles esse emblema não era estatal, mas dinástico ou, o que vale o mesmo, era distintivo dos Paleólogos.

Villani escreveu a sua crônica desde os anos vinte até a sua morte, em 1358. Enquanto isso, entre 1338 e 1347 em Antuérpia, o duque João III de Brabante emitiu um escudo de ouro cujo anverso mostra Luís IV sentado num trono, empunhando uma espada com a mão direita e repousando a esquerda sobre um escudo, o qual traz uma águia de duas cabeças. Essa peça não contradiz o cronista florentino, pois convém tomá-la por iniciativa do duque brabanção e obra do seu cunhador, que contou com o precedente do grosso de Margarida II de Flandres.

Apesar de ter sido uma iniciativa de outrem, a circulação de uma espécie de alto valor a partir de uma cidade comercial certamente contribuiu com a difusão da águia bicípite. Com efeito, pouco tempo depois, desde 1341, Lübeck, capital da Liga Hanseática, foi a primeira cidade imperial que a ostentou na sua moeda. Mesmo assim, demorou até que o próprio imperador assumisse o já difuso emblema: foi Sigismundo de Luxemburgo, eleito em 1410, quem a escolheu para o seu contrasselo em 1417, vindo a usá-lo após a sua coroação em 1433. Gustav Seyler na Geschichte der Siegel (1894,p. 213) dá o registro da encomenda:

Arnoldus facere debebit dua magna sigilla Imperialis Majestatis: unum in quo persona imperialis cum pomo et sceptro sedet super duabus aquilis, quarum quælibet habet duo capita, et debent esse quinque clypei circumcirca personam et in circumferentia tituli etc.; item et aliud in quo simpliciter sculpta sit imperialis aquila habens duo capita etc. (3)

Como se confere na base Sigilla, no selo do imperador Sigismundo as duas cabeças já aparecem nimbadas e daí em diante também se ordenaram de vermelho o bico (e a língua) e os tarsos e dedos (e as unhas), mas por muito tempo a reprodução desses pormenores dependeu do tamanho do espaço e da habilidade do artista. 

Após o imperador Sigismundo, os Habsburgos conseguiram deter a sucessão imperial, apesar de o regime ter permanecido eletivo. Contudo, o primeiro expoente dessa casa, o duque Alberto V da Áustria, faleceu um ano e meio depois da sua eleição em 1438. Assim, é no reinado de Frederico III, eleito em 1440, que se observam as próximas inovações em matéria heráldica.

Enquanto rei dos romanos, Frederico trouxe a águia monocéfala, como se vê no seu pequeno selo e contrasselo à época. Depois de coroado imperador pelo papa Nicolau V em 1452, adotou a dicéfala, como se vê no seu selo e contrasselo desde então. Trocando em miúdos: plenamente de acordo com a ideologia heráldica do momento, a segunda cabeça foi entendida como acrescentamento em honra, de modo que as armas antigas se ativeram à dignidade de rei dos romanos, que a eleição conferia e o arcebispo de Colônia em seguida sagrava, ao passo que as armas modernas distinguiram a dignidade imperial, que dependia da coroação pelo romano pontífice.

Ainda durante o reinado de Frederico III, começou a sobreposição do escudete dinástico ao peito da águia, como já o atesta o armorial de Hans Ingeram (códice A 2302, conservado no Kunsthistorisches Museum, Viena), feito em 1459 para o arquiduque Alberto VI da Áustria, irmão e rival do imperador. Esse uso difundiu-se, não obstante, sob Maximiliano I, eleito em 1486, como o demonstra a magnífica moeda de apresentação que mandou cunhar em Hall, no Tirol, por ocasião da sua ascensão à dignidade imperial em 1508 (4) e a belíssima gravura da bandeira imperial no Triumphzug Kaiser Maximilians I., de Albrecht Altdorfer (1512-1515).

Nem Frederico III nem Maximiliano I sobrepunham as suas armas plenas às imperiais, mas uma forma reduzida: aquele, tão somente as armas de Áustria moderno; este, estas partidas com as de Borgonha antigo. Em contraposição e como se vê ao longo de toda La magnifique et sumptueuse pompe funèbre..., Carlos V não fez essa redução, o que demandou um escudete maior, como se constata nos seus selos. Mais que isso: por toda a Espanha acham-se reproduções em que a águia de duas cabeças não é a figura das armas imperiais, mas o suporte das armas pessoais de Carlos V, como se aprecia na fachada da Universidade de Alcalá, cuja escultura data de 1552. Talvez essa variação tenha sido influída pelo escudo dos Reis Católicos, cujo suporte é a águia de São João (a Porta do Perdão da Catedral de Granada exibe ambos os brasões).

Enfim, cabe ressalvar que sob o próprio Carlos V o império sofreu mudanças substanciais. A Reforma fez com que ele tenha sido o derradeiro imperador coroado pelo papa, de modo que os seus sucessores se intitularam, como ele mesmo e Maximiliano I o tinham feito, electus Romanorum imperator ('imperador dos romanos eleito'). Por conseguinte, o título de rei dos romanos refuncionalizou-se, passando a distinguir o "herdeiro eleito". O próprio Fernando de Habsburgo foi eleito rei dos romanos em 1531 e após a abdicação de seu irmão, foi ratificado pelo colégio eleitoral e coroado pelo arcebispo de Mogúncia em Frankfurt em 1558. A maioria dos imperadores pósteros ascendeu a uma dignidade e à outra dentro de pouco tempo ou até no mesmo dia. Tudo isto tornou obsoleta a águia monocéfala pelo resto da existência do Sacro Império.

Notas:
(1) Esses versos encerram o exórdio da Farsália, poema épico sobre a guerra civil entre César e Pompeu (49-45 a.C.): "infestisque obvia signis / signa, pares aquilas et pila minantia pilis" ("[cantamos] estandartes que encontram estandartes enristados, águias iguais e dardos que ameaçam dardos"; tradução minha). Obviamente, o poeta não refere a brasões, mas às insignia militares romanas (leia-se a postagem de 27/01/21).
(2) "Júlio César trouxe-a, o campo vermelho e a águia em ouro, como faz menção Lucano em versos, dizendo: 'Signa pares aquilas et pila minantia pilas'. Mas depois, Otaviano Augusto, seu sobrinho e sucessor imperador, mudou-a e trouxe o campo em ouro e a águia natural, de cor negra, à semelhança do senhorio do império, que, como a águia está acima de todas as aves e vê claro mais que nenhum outro animal e voa até o céu do hemisfério do fogo, o império deve estar acima de todos os senhorios temporais. E após Otaviano todos os imperadores dos romanos trouxeram-na de semelhante modo, mas Constantino e depois os demais imperadores dos gregos retiveram a insígnia de Júlio César, ou seja, o campo vermelho e a águia em ouro, mas com duas cabeças." (tradução minha)
(3) "Arnoldo deverá fazer dois grandes selos da Majestade Imperial: um em que a pessoa imperial com o pomo e o cetro está sentada sobre duas águias, cada uma das quais tem duas cabeças, e deve haver cinco escudos em volta da pessoa e na circunferência os títulos etc.; e outro em que simplesmente esteja esculpida a águia imperial tendo duas cabeças etc." (tradução minha)
(4) Em 1508, o estado da Igreja e a república de Veneza disputavam o domínio sobre a Romanha. Maximiliano I estava no Tirol e, a pretexto de viajar a Roma para ser coroado imperador, pretendeu atravessar o território veneziano escoltado por um exército, mas a república lhe negou passagem. Foi, então, aclamado electus Romanorum imperator ('imperador dos romanos eleito') por Matthäus Lang, bispo de Gurk e chanceler seu, na catedral de Trento, com a subsequente aprovação do papa Júlio II.

11/05/22

A POMPA FÚNEBRE DE CARLOS: AS INSÍGNIAS IMPERIAIS (I)

Desde o próprio Carlos V, o imperador era pouco mais que um primus inter pares, mas as insígnias ainda exprimiam a ideia de um autocrata universal.

A seção de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... que se estende da prancha n.º 21 à n.º 28 mostra alguns gentis-homens e grandes senhores carregando as insígnias imperiais, a começar pelas bandeiras. As formas dessas bandeiras correspondem perfeitamente às insígnias pessoais que se veem às pranchas n.os 3, 4 e 6: grandes, longas e de cauda arredondada, a do grande estandarte bífida, à exceção da "grande bandeira imperial" ("grande bannière impériale"), quadrada. Todas eram armoriadas com as armas imperiais.

Pranchas n.os 21, 22 e 23 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar do INHA).
Pranchas n.os 21, 22 e 23 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar do INHA).

Pedro López de Ayala, conde de Fuensalida, levava o pendão imperial, menor, e Maximilien de Melun, visconde de Gand, o guião, maior. O grande estandarte era levado por Giovan Battista Carafa, conde de Policastro, e a grande bandeira, por Juan Arias de Saavedra, conde de Castellar e gentil-homem da Boca. Atrás do guião, Don Pedro de Ulloa, gentil-homem da Casa, e Antoine de Rubempré, senhor de Vertaing e gentil-homem da Boca, levavam um cavalo com uma gualdrapa que o cobria até os joelhos, e atrás do grande estandarte, havia outro, cuja gualdrapa lhe alcançava os tornozelos, levado por Don Pedro de las Roelas, gentil-homem da Boca, e Camillo da Correggio, gentil-homem da Câmara. Ambas as gualdrapas, como as bandeiras, eram armoriadas com as armas imperiais.

Pranchas n.os 24, 25 e 26 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da BnF).
Pranchas n.os 24, 25 e 26 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da BnF).

Em seguida, quatro grandes senhores ostentavam as armas dos costados do finado imperador.

Jean de Croÿ, conde de Rœulx, levava o escudo da duquesa Maria da Borgonha, avó paterna de Carlos V: esquartelado, o primeiro e quarto de azul, semeado de flores de lis de ouro, com uma bordadura composta de prata e vermelho (que é de Borgonha moderno); o segundo e terceiro partidos, o primeiro bandado de ouro e azul com uma bordadura de vermelho (que é de Borgonha antigo); o segundo de negro com um leão de ouro, armado e lampassado de vermelho (que é de Brabante); sobre o todo, de ouro com um leão de negro, armado e lampassado de vermelho (que é de Flandres).

Luis Sarmiento de Mendoza, conde de Ribadavia, levava o escudo da rainha Isabel de Castela, avó materna de Carlos V: esquartelado, o primeiro e quarto de vermelho com um castelo de ouro, aberto e iluminado de azul (que é de Castela); o segundo e terceiro de prata com um leão de púrpura, armado e lampassado de vermelho e coroado de ouro (que é de Leão).

Rodrigo Pachecho Osorio, marquês de Cerralbo, levava o escudo do imperador Maximiliano, avô paterno de Carlos V: de ouro com uma águia de duas cabeças de negro, nimbadas de ouro, e um escudete brocante sobre o peito da águia, partido: o primeiro de vermelho com uma faixa de prata (que é da Áustria); o segundo bandado de ouro e azul com uma bordadura de vermelho (que é de Borgonha antigo, jure uxoris).

Lorenzo Suárez de Mendoza, conde de Coruña, levava o escudo do rei Fernando de Aragão, avô materno de Carlos V: esquartelado, o primeiro e quarto contraesquartelados, o primeiro e quarto de vermelho com um castelo de ouro, aberto e iluminado de azul; o segundo e terceiro de prata com um leão de púrpura, armado e lampassado de vermelho e coroado de ouro (que é de Castela e Leão, jure uxoris); o segundo e terceiro partidos, o primeiro de ouro com quatro palas de vermelho; o segundo franchado, o primeiro e quarto de ouro com quatro palas de vermelho; o segundo e terceiro de prata com uma águia de negro (que é de Aragão e Sicília), embutido em ponta de prata com uma romã de verde, sustida e folhada do mesmo, aberta de vermelho (que é de Granada, jure uxoris).

O escudo de Maximiliano I ia timbrado com a coroa imperial e os demais, com coroa real, a qual para o de Maria da Borgonha devia de ser ducal. Seguiam-se as insígnias imperiais.

Giovan Girolamo Acquaviva, duque de Atri, carregava o elmo imperial: de ouro com paquifes do mesmo metal e prata, coroado e sustentado por uma vara.

Carlo Spinelli, duque de Seminara, levava o escudo imperial: a águia de duas cabeças de negro, nimbadas de ouro, em campo do mesmo, com as armas pessoais de Carlos V sobrepostas, a saber, cortado, o primeiro partido e o primeiro esquartelado de Castela e Leão; o segundo partido de Aragão e Sicília; embutido em ponta de Granada; o segundo esquartelado de Áustria, Borgonha moderno, Borgonha antigo e Brabante; sobre o todo do esquartelado, de Flandres. Ia timbrado com a coroa e rodeado pelo colar da Ordem do Tosão de Ouro, tudo também sustentado por uma vara.

Luis de Leiva, príncipe de Ascoli, levava a espada imperial.

Carlo di Lannoy, príncipe de Sulmona, levava a cota, armoriada com as armas imperiais.

Atrás da cota de armas, iam dois maceiros com maças rematadas por coroas imperiais e, em seguida, três reis de armas do imperador.

Continuando, Carlo Ventimiglia e Don Manrique de Lara, gentil-homem da Boca, levavam um cavalo cuja gualdrapa manifestava o luto pelo falecido: era negra com uma cruz vermelha, cantonada por escudos das armas imperiais, tal como o carregado pelo duque de Seminara, também reproduzido sobre a fronte desse cavalo.

Pranchas n.os 27 e 28 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da BnF).
Pranchas n.os 27 e 28 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da BnF).

O conde Alberto de Schwarzburg, capitão dos alemães, levava o colar da Ordem do Tosão de Ouro sobre um coxim preto.

Luis Fernández Manrique de Lara, marquês de Aguilar, levava o cetro imperial.

Martín de Gurrea y Aragón, duque de Villahermosa, levava a espada de honra.

O príncipe Guilherme de Orange levava o orbe imperial.

Antonio de Toledo, prior da Ordem Hospitalária no reino de Leão e escudeiro-mor, levava a coroa imperial.

Como fiz em relação às armas dos estados, deixarei o comentário às insígnias imperiais para a próxima postagem.

09/05/22

A POMPA FÚNEBRE DE CARLOS V: AS ARMAS DOS ESTADOS (II)

Além da qualidade estética, La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... é um documento singular da história da heráldica.

Texto introdutório do cortejo dos gentis-homens (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).
Texto introdutório do cortejo dos gentis-homens (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

Nas postagens de 25/04 e 01/05, eu disse que o arauto Pierre de Vernois custeou em parte a publicação de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... e o rei de armas Tosão de Ouro presidiu ao cerimonial do funeral e das exéquias que esse livro descreve e retrata. Com efeito, o arranjo de tantos objetos armoriados deixa ver o refinamento que fazia a fama da corte borguinhona. Assim, a sequência dos títulos que os cavalos e as bandeiras representavam no cortejo dos gentis-homens não era nada aleatória. Atentemos à variante castelhana da intitulação régia que o próprio Filipe II veio estabelecer:

Rey de Castilla, de León, de Aragón, de las Dos Sicilias, de Jerusalén, de Navarra, de Granada, de Toledo, de Valencia, de Galicia, de Mallorcas, de Sevilla, de Cerdeña, de Córdoba, de Córcega, de Murcia, de Jaén, de los Algarbes, de Algecira, de Gibraltar, de las Islas de Canaria, de las Indias Orientales y Occidentales, Islas y Tierra Firme del Mar Océano, Archiduque de Austria, Duque de Borgoña, de Brabante y de Milán, Conde de Habsburgo, de Flandes, de Tirol y de Barcelona, Señor de Vizcaya y de Molina. (1)

Percebe-se que houve uma inversão exata e muito inteligente: como o rei ia quase ao fim do cortejo, quanto maior a precedência do título, mais perto dele andavam as respectivas armas. Ao mesmo tempo, ao estarem à dianteira e entre arautos, as armas não hispânicas não só ganharam destaque, mas também, sendo de feudos, se igualaram às de reinos.

Pranchas n.os 7 e 8 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).
Pranchas n.os 7 e 8 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

Observa-se, ademais, o cuidado em se fazer uma seleção de tantos títulos. Como a nave Vitória arvorava as bandeiras das armas borguinhonas e austríacas de menor precedência e que não figuravam, portanto, nas armas pessoais de Carlos V, bastou representar os títulos hispânicos até o reino de Córdova. Mesmo assim, cabe lembrar que ao redor do castelo da popa a nave tinha escudos armoriados e a gravura de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... permite reconhecer aí as armas da Córsega e da Biscaia, entre outras. Como o desenho mostra apenas um lado, não se sabe quais armas estavam no resto do contorno, de modo que a seleção acaba sendo uma hipótese.

Pranchas n.os 9 e 10 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).
Pranchas n.os 9 e 10 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

Seja como for, alguns fatos tornam certo que a reprodução de tantos brasões se apoiou na consulta de um armorial. Como eu já disse, apenas os títulos de maior precedência compunham as armas pessoais do soberano, logo alguns dos demais brasões não se viam facilmente em selos, bandeiras ou moedas. Um arauto neerlandês do século XVI não os podia conhecer senão pelo estudo e, de fato, aqueles da corte borguinhona estavam entre os mais versados na sua arte, de tal modo que folheando o armorial do marechal de armas Charolais (2), descobrem-se sem demora coincidências com a pompa fúnebre de Carlos V.

Pranchas n.os 11 e 12 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).
Pranchas n.os 11 e 12 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

Neste ponto, é preciso distinguir como as monarquias dos avós do imperador se expandiram e essas expansões se refletiram no plano heráldico.

As Casas da Áustria e da Borgonha dilataram-se principalmente por alianças dinásticas. Mesmo quando disputavam domínios pelas armas, procuravam dar à aquisição a aparência de uma transmissão por direito. Daí que os Habsburgos tenham preterido as suas próprias armas (de ouro com um leão de vermelho, armado, lampassado e coroado de azul) por aquelas dos Babenberge (a faixa de prata em campo de vermelho) quando lhes sucederam no ducado em 1278 e Filipe o Ousado tenha esquartelado as suas armas pessoais (de azul, semeado de flores de lis de ouro, com uma bordadura composta de prata e vermelho) com aquelas da primeira dinastia ducal (o bandado de ouro e azul com uma bordadura de vermelho) quando recebeu a Borgonha em 1363. Trocando em miúdos, cada título que os dinastas austríacos e borguinhões adquiriam ou pretendiam aportava-lhe as armas de uma linhagem que governara o respectivo senhorio.

Pranchas n.os 13 e 14 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).
Pranchas n.os 13 e 14 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

Muito diferente é o caso dos reinos hispanos. Primeiro, porque alguns já se tinham unido antes de a heráldica surgir: os reinos de Leão e da Galiza desde 914; o reino de Aragão e o condado de Barcelona desde 1137. Depois, porque todas as terras ao sul dos rios Ebro e Douro foram conquistadas ao Islã. Em mais de um momento, esse domínio fragmentava-se em vários estados  — as taifas —, cujos chefes se estabeleciam nas cidades maiores e se intitulavam mulūk (malik no singular), isto é, 'reis' em árabe. Ao vencê-los, os príncipes cristãos tomavam-lhes os títulos, mas não tinham brasões, pois, por mais que os armoriais fantasiassem, a heráldica era um sistema semiótico da Europa ocidental. Na verdade, alguns títulos  como os reinos dos Algarves, de Algeciras e Gibraltar  sequer correspondiam a unidade administrativa alguma. Ademais, tanto a Coroa de Aragão como a Coroa de Castela também se expandiram além-mar, aquela no Mediterrâneo e esta no oceano.

Pranchas n.os 15 e 16 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).
Pranchas n.os 15 e 16 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

As armas reais aragonesas ilustram bem essa problemática. Estão entre as mais antigas de toda a heráldica e, fosse como conde de Barcelona, rei de Aragão, de Valência, de Maiorca ou da Sardenha, eram as únicas que o seu titular trazia: era o senyal reial. Assim, todas as suas combinações com outros emblemas foram inventadas pela literatura heráldica para distinguir cada um desses títulos e foram difundidas pela mudança de percepção que cada vez mais desvinculava certas armas da pessoa de um príncipe ou senhor e as vinculava ao território: a composição com a cruz de São Jorge (de vermelho em campo de prata) para a Catalunha; com a cruz de Alcoraz (de São Jorge cantonada de quatro cabeças de mouro; ela mesma para a Sardenha) e de Íñigo Arista (pátea e de pé aguçado de prata no cantão destro do chefe em campo de azul) para Aragão; com a cidade de prata em campo de azul para Valência; a sobreposição da cotica de azul para Maiorca.

Pranchas n.º 17 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).
Pranchas n.º 17 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

A exceção confirma a regra: a Sicília foi o único estado aragonês que teve genuinamente armas próprias. É fácil de explicar: em 1282, quando o parlamento desse reino elegeu Pedro o Grande para suceder aos extintos Hohenstaufen, estes tinham trazido uma águia de negro em campo de prata. Como cadetes da linhagem real aragonesa governaram a ilha por longo tempo (de 1296 a 1409), houve efetiva necessidade de um brasão diferente, daí a esquarteladura em aspa do senyal reial com as armas dos Hohenstaufen sicilianos. (3)

Pranchas n.º 18 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).
Pranchas n.º 18 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

Por todo o razoado, é justo reconhecer que La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... não é apenas uma bela obra da perspectiva estética, mas também um documento relevante para a história da heráldica, pois além de testemunhar a consolidação da mudança referida, pela qual se passou a perceber que certas armas pertenciam ao principado ou senhorio, não mais ao príncipe ou senhor, independentemente da sucessão dinástica, revela que foram ocasiões como os funerais régios, em que se empregava a heráldica para se exibir a extensão da monarquia, que tiravam certas invenções dos armoriais, trazendo-as para a vida real.

Pranchas n.os 19 e 20 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).
Pranchas n.os 19 e 20 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

Precisamente, é isso que permite saber qual armorial se consultou. As armas de que os príncipes e senhores usavam eram tão reproduzidas que até variações aceitáveis na armaria clássica deram lugar a um ordenamento fixo. Por exemplo, o número das palas do senyal reial dependia do espaço para reproduzi-lo, mas depois se fixou em quatro. Em contrapartida, brasões oriundos da própria erudição heráldica continuaram a divergir grandemente de uma reprodução para outra, porque as fontes permaneciam manuscritas, raras e a sua qualidade refletia a perícia do autor. Por exemplo, a figura principal das armas galegas é um cálice, mas há reproduções em que aparece coberto ou um cibório ou uma custódia, com o acompanhamento de cruzetas, contáveis ou incontáveis, ou sem ele.

Voltando, pois, ao Armorial Charolais, ao se topar aí com as armas do rei da Galiza ("le roi de Galice", f. 79r), logo se desconfia de que tenha servido de fonte à pompa fúnebre de Carlos V: "azur à le galice couvert, l'escu semé de croix recroisetées au pied fiché", isto é, "azul com um cálice coberto, o escudo semeado de cruzes recruzetadas de pé aguçado". É claro que se acham mais coincidências:

  • Para representar a Frísia, na pompa fúnebre de Carlos V preferiram-se as bandas de prata, carregadas de folhas de nenúfar de vermelho, em campo de azul, em vez dos dois leopardos de ouro em campo de azul, semeado de bilhetas deitadas do mesmo (depois fixadas em sete, postas duas, duas e três). O armorial Charolais dá ambas (folhas 4v e 72r), mas remonta as primeiras aos paladinos de Carlos Magno (f. 110v).
  • O escudo da Biscaia na nave Vitória traz as armas da Casa de Haro (4), tal como se dão no Armorial Charolais (f. 79r): de prata com dois lobos passantes de negro, alinhados em pala, e uma bordadura de vermelho, carregada de aspas de ouro ("argent à deux loups de sable, à la bordure de gueules, chargée de sautoirs d'or"). Quando Carlos V morreu, já se usava o ordenamento que se consolidou na Idade Moderna: os lobos sobrepostos a uma árvore (ou esta entre eles), a bordadura de ouro e, no lugar das aspas, leopardos (aleonados) de vermelho.
  • As armas dos reinos andaluzes eram as mesmas das cidades que lhes davam nome, as quais traziam, por concessão régia, uma bordadura composta de Castela e Leão. Na pompa fúnebre de Carlos V, a bordadura das armas de Córdova é castelada, assim como no Armorial Charolais (f. 79r), ainda que este a brasone de azul, castelada de prata.
  • Também na nave Vitória, há um escudo com uma tartaruga que o Armorial Charolais (f. 91v) atribui ao rei de Bugia (5). Ora, essa cidade foi ocupada por Castela de 1510 a 1555. 

Enfim, quanto à qualidade, o desenho de Hieronymus Cock está à altura da melhor iluminura heráldica no seu tempo e é na coloração dessas bandeiras, maiores que as da nave Vitória, e gualdrapas que se aprecia o excepcional trabalho feito no exemplar da Bibliothèque nationale de France, no qual se observa o esmero em pormenores como os esmaltes diferentes das línguas e unhas dos leões e as portas e frestas do castelo.

Notas:
(1) "Rei de Castela, de Leão, de Aragão, das Duas Sicílias, de Jerusalém, de Navarra, de Granada, de Toledo, de Valência, da Galiza, de Maiorcas, de Sevilha, da Sardenha, de Córdova, da Córsega, de Múrcia, de Jaén, dos Algarves, de Algecira, de Gibraltar, das Ilhas de Canária, das Índias Orientais e Ocidentais, Ilhas e Terra Firme do Mar Oceano, Arquiduque da Áustria, Duque da Borgonha, de Brabante e de Milão, Conde de Habsburgo, de Flandres, do Tirol e de Barcelona, Senhor da Biscaia e de Molina." (tradução minha)
(2) O próprio autor apresenta a obra assim: "Ce livre traite des armoiries des grands du monde, assemblés de maints pays par le commandement de Monseigneur le Duc l'an 1425" ("Este livro trata dos brasões dos grandes do mundo, reunidos de muitos países pelo comando do Senhor Duque no ano de 1425"). Não obstante, é conhecido apenas pela cópia que Philippe-Nicolas d'Aumale, marquês de Haucourt, fez em 1658 (códice 4150, conservado na Bibliothèque nationale de France). O marechal de armas Charolais em 1425 era ninguém menos que Jean Lefèvre de Saint-Rémy, o primeiro rei de armas Tosão de Ouro (1430).
(3) O mesmo se pode dizer sobre as armas do reino de Nápoles. Na verdade, quando o parlamento siciliano elegeu Pedro o Grande, o reino da Sicília abrangia tanto a ilha que lhe dava nome como também o sul da península e era governado pelo conde Carlos de Anjou, filho póstumo de Luís VIII da França, o qual trazia o semeado de flores de lis de ouro em campo de azul, diferençado por um lambel de vermelho, mais as armas reais de Jerusalém, cujo título comprara a Maria de Antioquia em 1277. Fora coroado rei da Sicília em 1266, depois de destronar Manfredo, o derradeiro dos Hohenstaufen, com o apoio do papa Urbano IV, mas mesmo depois de ser vencido por Pedro o Grande na ilha, preservou sob o seu domínio a parte peninsular, continuando a usar o mesmo título, ao qual se somou a pretensão à coroa húngara desde 1390, daí o faixado de vermelho e prata.
(4) O senhorio da Biscaia foi incorporado na Coroa em 1370, quando Afonso XI de Castela o recebeu de Joana Manuel de Villena, sua mãe.
(5) Hoje Béjaïa (Bijāya em árabe), Argélia.