24/09/22

BICENTENÁRIO DAS ARMAS NACIONAIS: CRÍTICAS

Bicentenário das armas nacionais: críticas.

A heráldica é uma arte e as artes, no sentido contemporâneo do termo, estão sujeitas ao gosto. Na postagem de 06/09/21, argui que há duas espécies de estilo: o da época e o pessoal. O mesmo direi do gosto, se é que seja possível desvinculá-lo do estilo. Penso que discernir esses fatos seja imprescindível a qualquer crítica racional.

Há quem critique os símbolos nacionais do Brasil desde o momento mesmo em que foram criados, tanto em 1822 como em 1889, mas alguns não passavam do não gostar de verde e amarelo, por exemplo. Não à toa, a palavra critério tem a mesma raiz de crítica: para se criticar algo, é preciso ter critério; preferir uma coisa à outra por mero gosto não parece promissor para se apresentar qualquer argumento.

Assim, creio que ao longo desta série de postagens demonstrei suficientemente que as primeiras armas nacionais são singelas, belas e representativas. Com efeito, há apenas dois conjuntos de figuras no campo, mais a coroa e os suportes. Eventualmente, acrescentavam-se outros ornamentos externos, mas isso se fazia com a licença poética e segundo a moda próprias da época.

Há quem julgue que o brasão do Império são armas a inquirir, isto é, descumprem a regra de iluminura, mas se se tomar a sentença "de verde com uma esfera armilar de ouro", ver-se-á que não: uma figura de metal em campo de cor. A cruz da Ordem de Cristo é, de fato, vermelha, mas não está diretamente no campo, e sim atravessando a esfera e formando com ela um conjunto de figura principal de metal com figura secundária de cor. É verdade que a orla de azul, esta sim, fica no campo, sobrepondo cor a cor, daí que com frequência se lhe acrescentem perfis de prata, mas me parece um preciosismo, pois além de ter uma posição secundária, sendo uma peça, pode estar cosida.

Ordenamento alternativo das armas nacionais no início da República.
Ordenamento alternativo das armas nacionais no início da República.

O caso do brasão da República é bem diferente. O escudo é simplicíssimo: de azul com cinco estrelas de prata postas como a constelação do Cruzeiro do Sul e uma bordadura de azul, perfilada de ouro e carregada de vinte estrelas de prata. Se a ele se tivessem apenas acrescentado os ramos de cafeeiro e tabaco por suportes e uma estrela por timbre, como se chegou a praticar no começo do regime (confira-se a postagem de 22/02/21), teria cabido aos artistas enfeitá-lo com bandeiras e troféus ao reproduzirem-no na moeda, em fachadas etc. Acontece, porém, que foi criado e adotado por desenho já com um excesso de ornamentos externos, alguns de heráldica bastante duvidosa.

Assim, a espada sob a estrela era claramente um afago aos militares que deram o golpe de estado contra a monarquia e pretendiam tutelar a república. O listel com o nome do país e a data da instauração do regime deu origem à jaboticaba da armaria brasileira: a adição do topônimo e/ou de datas magnas ao brasão no lugar de uma divisa, que é o elemento heráldico apropriado.

Adaptações das armas nacionais no início da República.
Adaptações das armas nacionais no início da República. (1)

De fato, os republicanos não precisavam criar novos símbolos nacionais e o Marechal Deodoro da Fonseca não tinha essa intenção, como a atestou num despacho de 17 de novembro de 1889, fac-similado por Luiz Marques Poliano em Heráldica (1986, p. 231):

Despacho do General Deodoro em uma proposta para a nova bandeira da República. 17-11-89. Henriques.
"A Bandeira Nacional, já tão conhecida, e reconhecidamente bela, continua, substituindo-se a coroa sobre o escudo pelo cruzeiro."
Manuel Deodoro da Fonseca

Na verdade, teria bastado tirar a coroa e fechar os ramos de cafeeiro e tabaco como uma grinalda, porém todos entendiam, como se constata, que era necessário trocá-la por um símbolo republicano, daí não só a ideia do Marechal Deodoro, mas também o barrete frígio e a estrela, mas nada disso ficava bem, evidentemente. Além disso, a cruz da Ordem de Cristo causava incômodo. Em 1822, representava a continuidade histórica do país desde o seu descobrimento e a sua conquista; em 1889, lembrava o padroado, que tantos dessabores dera tanto ao estado como à igreja, cujo divórcio os republicanos defendiam e consumaram já em janeiro de 1890.

A história prova, enfim, que às quedas de monarquias se seguem renovações dos símbolos nacionais: em Portugal (1910), manteve-se o brasão, mas se mudaram as cores da bandeira; na Alemanha (1918), manteve-se a águia, mas se mudaram as cores da bandeira; na Espanha (1931-1939), manteve-se o brasão, mas se mudou de bandeira; na Itália (1946), manteve-se a bandeira, mas se mudou de emblema. O do Brasil foi apenas o primeiro caso.

Brasão ou bandeira, mudou-se o que mais representava o regime deposto. No caso brasileiro, era o escudo que suportava a coroa e carregava figuras muito vinculadas à dinastia. Como o brasão estava presente na bandeira, inevitavelmente também esta se alterou. Outra vez, podem-se fazer várias críticas a Raimundo Teixeira Mendes e Artur Sauer, os criadores da bandeira e do brasão assumidos pelo governo provisório, mas é justo reconhecer que a República procurou manter os conceitos dos antigos símbolos nacionais.

A esfera armilar e a esfera celeste nos símbolos do Brasil.
A esfera armilar e a esfera celeste nos símbolos do Brasil.

Ora, a esfera armilar é o instrumento e a esfera celeste é o objeto que por ele se estuda. As estrelas da bandeira nacional simulam o céu no Rio de Janeiro quando o Cruzeiro do Sul atinge o zênite, como se fosse observado por uma esfera armilar. É por isso que as constelações não têm aí a forma que se vê da Terra, mas estão invertidas: a esfera armilar projeta o firmamento, isto é, a ideia de que as estrelas se firmam numa esfera dentro da qual se encerra a Terra. Ora, ao manejar um simulacro desse universo, o estudioso situa-se além do firmamento, observando-o pelo avesso.

É claro que Teixeira Mendes e os seus colaboradores tiveram de tomar fortes licenças poéticas ao transformar um trabalho técnico — a projeção de um aspecto do céu mediante certo instrumento  num símbolo nacional, licenças duramente atacadas pelos detratores desse símbolo. Seja como for, é razoável reconhecer que foi uma maneira inteligente, talvez sofisticada, de manter o conceito da esfera armilar — símbolo do Brasil desde o período colonial —, ao tempo que resolveu o problema de pôr uma figura de cor no centro do losango amarelo. A propósito, a mesma cor do escudo que Dom João VI deu ao reino do Brasil em 1816, que também era redondo.

Outra operação inteligente foi a troca da cruz da Ordem de Cristo pela constelação do Cruzeiro do Sul, a qual vou comentar mais detidamente no dia 1.º de dezembro, ocasião em que se celebrará o bicentenário da Imperial Ordem do Cruzeiro.

Nota:
(1) A estrela vermelha tornou-se símbolo comunista a partir de 1918 na conjuntura da Revolução Russa. Portanto, não tinha nenhuma conotação esquerdista no ocaso da monarquia brasileira.

22/09/22

BICENTENÁRIO DAS ARMAS NACIONAIS: VARIAÇÕES E ERROS

Bicentenário das armas nacionais: variações e erros.

Uma coisa são as alterações que oficial ou oficiosamente sofreram os dois brasões do Brasil independente; outra coisa são as variações que acontecem naturalmente de uma reprodução para a outra, afinal a heráldica é uma arte. Das alterações tratei na postagem anterior; esta convém iniciar discernindo o que é variação e o que é erro.

Exemplar da bandeira nacional conservado no Museu Imperial (imagem disponível no acervo museológico).
Exemplar da bandeira nacional conservado no Museu Imperial (imagem disponível no repositório).

Como a heráldica é, precisamente, uma arte, não será errôneo reproduzir ramos de cafeeiro e tabaco menos ou mais frondosos, para dar um exemplo de elemento presente em ambos os brasões. Porém haverá, sim, erro em pôr dois ramos de cafeeiro, como se vê no exemplar da bandeira nacional conservado sob o n.º RG 1.184 pelo Museu Imperial, do qual diz que foi a derradeiro a tremular no Palácio Imperial de Petrópolis. A variação decorre, pois, da moda ou do estilo pessoal, ao passo que um erro constitui uma alteração indevida do brasonamento.

De modo geral, sob a monarquia reproduzia-se o brasonamento por meio da arte visual que fosse, pintura, escultura etc., tal como tem funcionado a heráldica desde a sua sistematização no fim da Idade Média. Daí que às vezes se tomasse bastante liberdade nessa reprodução, como expus nas postagens de 24/07/21 e 26/07/21. É fácil imaginar que um pintor ou escultor de requinte tinha tanto know-how que se permitia trocar o laço nacional pelo colar da Imperial Ordem do Cruzeiro ou acrescentar cetros ou um pavilhão ao conjunto. Isso está no limite da variação; não que se distinguissem pequenas e grandes armas, mas efetivamente se praticavam, como ainda se praticam, esses elementos na emblemática monárquica ocidental.

Exemplar da bandeira nacional conservado no Museu Imperial (imagem disponível no acervo museológico).
Exemplar da bandeira nacional conservado no Museu Imperial (imagem disponível no repositório).

Do mesmo modo, é fácil imaginar que um artesão menos hábil podia facilmente trocar o laço nacional por uma fita vermelha ou inverter os esmaltes da cruz da Ordem de Cristo ao fabricar um exemplar da bandeira nacional, como se vê no conservado sob o n.º RG 1.030 pelo Museu Imperial, do qual o proprietário antecedente diz estava hasteado no Paço de São Cristóvão aquando da queda da monarquia.

Divergências do brasonamento e do padrão das armas nacionais no Decreto-Lei n.º 5.545/1942.
Divergências do brasonamento e do padrão das armas nacionais no Decreto-Lei n.º 5.545/1942.

Em contraposição, sob a república tem-se procurado imitar o padrão que a legislação adota. Neste sentido, é incrível que em plena terceira década do século XXI o governo federal ainda não tenha criado um sistema de identidade visual para si, extinguindo a má prática da marca de gestão. Daí que na papelaria monocromática haja tantas variedades das armas nacionais quantos os órgãos da administração pública federal.

Divergências do brasonamento e do padrão das armas nacionais na Lei n.º 5.700/1971.
Divergências do brasonamento e do padrão das armas nacionais na Lei n.º 5.700/1971.

A própria Presidência da República mais confunde do que esclarece: a webpage sobre as armas nacionais, atualizada em 27 de setembro de 2021, dá primeiro a reprodução constante do anexo n.º 8 da Lei n.º 5.700/1971, a qual foi desenhada segundo o sistema de hachuras, isto é, aquele que distingue cada esmalte por um padrão de traços ou pontos. O problema é que essa reprodução mesma precisa de correção, pois os perfis da estrela e das guardas da espada,  também o seu punho e o resplendor aparecem em branco, o que denota iluminura de prata, quando tudo isso é de ouro, portanto deveria figurar pontilhado. Talvez por isso essa reprodução praticamente não se use: reduzindo-a a dois centímetros ou menos para pô-la num cabeçalho de ofício, vira um borrão.

Depois, o autor do conteúdo, visivelmente desprovido de qualquer rudimento heráldico, simplesmente coloriu a reprodução em hachuras! Ora, ou uma coisa ou a outra: esse sistema foi criado pelo padre Silvester de Petra Sancta em 1638 precisamente por causa da dificuldade de se reproduzir brasões em cores até o desenvolvimento da informática e, ainda assim, até hoje a chamada impressão colorida continua a ser muito mais cara que a monocromática.

Proposta de reprodução das armas nacionais em preto e branco.
Proposta de reprodução das armas nacionais em preto e branco.

A solução para uniformizar a reprodução monocromática das armas nacionais na papelaria oficial é tão singela que constrange dá-la: basta deixar os elementos de metal em branco, desenhados apenas os seus contornos, e pintar de preto todos os elementos de cor. Evidentemente, à medida que for crescendo o uso de documentos eletrônicos, será menos necessária essa espécie de reprodução, já que sem papel o arquivo eletrônico pode facilmente mostrar o padrão do brasão em cores.

20/09/22

BICENTENÁRIO DAS ARMAS NACIONAIS: ALTERAÇÕES

Bicentenário das armas nacionais: alterações.

O começo do Brasil como estado-nação foi tão conturbado quanto o de qualquer outro país americano, mas é indubitável que a permanência do herdeiro da Casa de Bragança e a constituição que ele mesmo, já como monarca, outorgou à nação permitiu que as crises políticas se resolvessem por um longo tempo, o mais longo do nosso direito constitucional. Parece, pois, pacífico que a monarquia caiu quando perdeu a capacidade de resolver essas crises.

Alterações das armas nacionais sob a monarquia.
Alterações das armas nacionais sob a monarquia.

A heráldica reflete isso. Diferentemente de alguns países hispano-americanos, que tiveram vários emblemas nacionais enquanto se uniam ou desuniam e acertavam a forma do estado, o Brasil independente teve apenas dois brasões, um sob a monarquia e o outro sob a república, os quais sofreram alterações pontuais. Sob o primeiro regime, essas alterações foram as seguintes:

  • A coroa real deu lugar à coroa imperial pelo Decreto de 1.º de dezembro de 1822;
  • eventualmente, o laço nacional obedeceu ao disposto no Decreto de 5 de outubro de 1831, passando a carregar uma estrela de ouro;
  • eventualmente, o número de estrelas na orla subiu de dezenove para vinte após a criação da província do Paraná em 1853, tendo a do Amazonas em 1850 sido compensada pela perda da Cisplatina em 1828.

Quanto às armas assumidas pelo governo provisório do Marechal Deodoro da Fonseca em 19 de novembro de 1889, recuso-me engrossar a infindável lamúria da literatura heráldica nacional contra elas. Pode-se acusar Artur Sauer, o criador delas, de não saber bulhufas de heráldica, mas não se pode negar que à época havia um gosto pela parafernália debaixo e ao redor do escudo: as monarquias com os seus cetros, colares de ordens honoríficas e pavilhões e as repúblicas com os seus louros, bandeiras e outros troféus. A quantidade de ornamentos externos é o maior abuso das segundas armas nacionais do Brasil e o brasonamento, a maior falha do estado nesta matéria.

Alterações das armas nacionais sob a república.
Alterações das armas nacionais sob a república.

Com efeito, quem brasonou as armas nacionais para o Decreto de 18 de setembro de 1822 dominava bem a linguagem heráldica que se usava então em Portugal. Em contraposição, quem lavrou o Decreto n.º 4, de 19 de novembro de 1889, recorreu a uma "estampa anexa" e assim ficou por 52 anos: reproduziam-se as armas nacionais por imitação de um desenho. Foi o Decreto-Lei n.º 5.545, de 4 de setembro de 1942, que pela primeira vez brasonou as armas da República, alterado pela Lei n.º 5.389, de 22 de fevereiro de 1968, que ajustou o número de estrelas na bordadura ao dos estados da União (o antigo Distrito Federal fora elevado a estado da Guanabara em 1960 e o território federal do Acre, em 1962) e trocou o nome oficial do país de Estados Unidos do Brasil para República Federativa do Brasil, ampliada no mesmo ano pela Lei n.º 5.443, de 28 de maio de 1968, que incluiu uma estrela na dita bordadura para representar o Distrito Federal, revogada pela Lei n.º 5.700, de 1.º de setembro de 1971, que fixou o número das estrelas em 22, daí que a Lei n.º 8.421, de 11 de maio de 1992, tenha novamente ajustado esse número ao das unidades federativas, refletindo o desmembramento do Mato Grosso do Sul em 1977, a elevação de Rondônia em 1981, a do Amapá e a de Roraima em 1988 e o desmembramento do Tocantins na mesma data. Eis o ordenamento vigente:

Art. 8.º A feitura das armas nacionais deve obedecer à proporção de quinze de altura por quatorze de largura e atender às seguintes disposições:
I – O escudo redondo será constituído em campo azul-celeste, contendo cinco estrelas de prata, dispostas na forma da constelação Cruzeiro do Sul, com a bordadura do campo, perfilada de ouro, carregada de estrelas de prata em número igual ao das estrelas existentes na bandeira nacional.
II  O escudo ficará pousado numa estrela partida-gironada, de dez peças de sinopla e ouro, bordada de duas tiras, a interior de goles e a exterior de ouro.
III  O todo brocante sobre uma espada em pala, empunhada de ouro, guardas de blau, salvo a parte do centro, que é de goles e contendo uma estrela de prata, figurará sobre uma coroa formada de um ramo de café frutificado, à destra, e de outro de fumo florido, à sinistra, ambos da própria cor, atados de blau, ficando o conjunto sobre um resplendor de ouro, cujos contornos formam uma estrela de vinte pontas.
IV  Em listel de blau, brocante sobre os punhos da espada, inscrever-se-á em ouro a legenda República Federativa do Brasil no centro e ainda as expressões 15 de Novembro na extremidade destra e as expressões de 1889 na sinistra.

Anexo n.º 2 do Decreto n.º 4, de 19 de novembro de 1889.
Anexo n.º 2 do Decreto n.º 4, de 19 de novembro de 1889.

O redator do Decreto-Lei n.º 5.545/1942 foi Gustavo Barroso, diretor do Museu Histórico Nacional, que não empregava a linguagem heráldica portuguesa, mas preferia a nomenclatura espúria goles, blau, sablesinople/a e era adepto de certo exagero descritivo, os quais a sua Introdução à técnica de museus (1946) difundiu muitíssimo no Brasil. Olhando o desenho publicado no primeiro fascículo dos Decretos do governo provisório (1890), brasono-o assim:

  1. De azul com cinco estrelas de prata postas como a constelação do Cruzeiro do Sul e uma bordadura de azul, perfilada de ouro, carregada de vinte estrelas de prata;
  2. o escudo, redondo e perfilado de ouro, é suportado por uma estrela gironada de dez peças de verde e ouro e perfilada de duas peças de ouro e vermelho;
  3. sob a estrela, uma espada de prata, com o escudete de vermelho, carregado de uma estrela de prata, as guardas de azul, perfiladas de ouro, o punho do mesmo e o pomo de prata;
  4. o conjunto é suportado por dois ramos, um frutado de cafeeiro à destra e o outro florido de tabaco à sinistra, ambos de sua cor, atados de azul sob a empunhadura da espada;
  5. abaixo, sobreposta ao punho da espada, a legenda ESTADOS UNIDOS DO BRAZIL e as datas 15 de Novembro, à destra, e de 1889, à sinistra, escritas de ouro em listel de azul;
  6. o todo é suportado por um resplendor de vinte pontas de ouro.

Além das diferenças na percepção do ordenamento e, consequentemente, no brasonamento, há um elemento sempre divergente: a espada. É tão complicada que o decreto-lei de 1942 não brasona exatamente a que se vê no decreto de 1889 e o padrão que a Presidência da República adota não obedece de todo à lei de 1971.

18/09/22

BICENTENÁRIO DAS ARMAS NACIONAIS BRASILEIRAS

Bicentenário das armas nacionais brasileiras.

As armas nacionais do Brasil.
As armas nacionais do Brasil.

Como eu disse na primeira postagem desta série, a celebração da efeméride propicia a perspectiva de quem viveu aqueles acontecimentos. Assim, quase sete anos após a elevação do Brasil a reino, mais de seis após a concessão de um brasão a esse reino, um ano após a adoção do tope branco e azul pelas Cortes, pouco mais de um mês após a declaração de independência e guerra a essas Cortes, dezesseis dias após a sessão decisiva do Conselho dos Procuradores-Gerais a respeito da separação, onze dias após o Grito do Ipiranga e há exatamente duzentos anos o príncipe regente Dom Pedro deu novas armas ao reino do Brasil:

DECRETO DE 18 DE SETEMBRO DE 1822
Dá ao Brasil um escudo de armas.
Havendo o Reino do Brasil, de quem sou Regente e Perpétuo Defensor, declarado a sua emancipação política, entrando a ocupar na grande família das nações o lugar que justamente lhe compete como nação grande, livre e independente, sendo, por isso, indispensável que ele tenha um escudo real de armas que não só se distingam das de Portugal e Algarves, até agora reunidas, mas que sejam características deste rico e vasto continente, e desejando eu que se conservem as armas que a este Reino foram dadas pelo Senhor Rei Dom João VI, meu augusto pai, na Carta de Lei de 13 de maio de 1816, e ao mesmo tempo rememorar o primeiro nome que lhe fora imposto no seu feliz descobrimento e honrar as dezenove províncias compreendidas entre os grandes rios, que são os seus limites naturais e que formam a sua integridade, que eu jurei sustentar, hei por bem e com o parecer do meu Conselho de Estado determinar o seguinte: será d'ora em diante o escudo de armas deste Reino do Brasil em campo verde uma esfera armilar de ouro, atravessada por uma cruz da Ordem de Cristo, sendo circulada a mesma esfera de dezenove estrelas de prata em uma orla azul, e firmada a coroa real diamantina sobre o escudo, cujos lados serão abraçados por dous ramos das plantas de café e tabaco, como emblemas da sua riqueza comercial, representados na sua própria cor e ligados na parte inferior pelo laço da Nação. A bandeira nacional será composta de um paralelogramo verde e nele inscrito um quadrilátero romboidal cor de ouro, ficando no centro deste o escudo das armas do Brasil.
José Bonifácio de Andrada e Silva, do meu Conselho de Estado e do Conselho de Sua Majestade Fidelíssima, o Senhor Dom João VI, e meu Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Reino e Estrangeiros, o tenha assim entendido e faça executar com os despachos necessários.
Paço, em 18 de setembro de 1822.
Com a rubrica de Sua Alteza Real, o Príncipe Regente.
JOSÉ BONIFÁCIO DE ANDRADA E SILVA

Esse brasão não pertence a nenhum pretendente a qualquer dignidade monárquica, nem a qualquer movimento monarquista, nem a qualquer um que queira fazer uso sectário dele. O texto é claro: esse brasão foi dado à nação brasileira, portanto pertence a todos e a cada um de nós que a integramos. Os monarcas mesmos o trouxeram enquanto foram imperadores constitucionais do Brasil.

Bandeira nacional do Brasil de 18 de setembro a 1.º de dezembro de 1822: "um paralelogramo verde e nele inscrito um quadrilátero romboidal cor de ouro, ficando no centro deste o escudo das armas do Brasil".
Bandeira nacional do Brasil de 18 de setembro a 1.º de dezembro de 1822: "um paralelogramo verde e nele inscrito um quadrilátero romboidal cor de ouro, ficando no centro deste o escudo das armas do Brasil".

Embora não sejam mais as armas nacionais, são as nossas primeiras como estado-nação, portanto parte especial do nosso patrimônio histórico. Na verdade, o primeiro de dois brasões e o segundo, com a bandeira, contém de certa maneira todos os elementos daquele, exceto a coroa, obviamente pela mudança de regime:

  • A esfera armilar tornou-se a esfera celeste da bandeira;
  • a cruz da Ordem de Cristo deu lugar ao Cruzeiro do Sul;
  • a orla de estrelas tornou-se a bordadura de estrelas;
  • os ramos de cafeeiro e tabaco mantiveram-se tal qual.

Portanto, monarquia ou república nesse assunto não faz diferença. Ao estudarmos criticamente as nossas armas nacionais, percebemos que os símbolos ou os sentidos permanecem os mesmos.

16/09/22

"LIGADOS PELO LAÇO DA NAÇÃO"

Bicentenário das armas nacionais"Será d'ora em diante o escudo de armas deste Reino do Brasil em campo verde uma esfera armilar de ouro, atravessada por uma cruz da Ordem de Cristo, sendo circulada a mesma esfera de dezenove estrelas de prata em uma orla azul, e firmada a coroa real diamantina sobre o escudo, cujos lados serão abraçados por dous ramos das plantas de café e tabaco, como emblemas da sua riqueza comercial, representados na sua própria cor e ligados na parte inferior pelo laço da Nação".

Como se lê na segunda parte da Coleção das leis de 1822, a 18 de setembro o regente Dom Pedro editou mais dois decretos sobre símbolos. Um versa sobre o laço nacional. Segue:

DECRETO DE 18 DE SETEMBRO DE 1822
Determina o tope nacional brasiliense e a legenda dos patriotas do Brasil.
Convindo dar a este Reino do Brasil um novo tope nacional, como já lhe dei um escudo d'armas, hei por bem e com o parecer do meu Conselho de Estado ordenar o seguinte: o laço ou tope nacional brasiliense será composto das cores emblemáticas — verde de primavera e amarelo de ouro — na forma do modelo anexo a este meu decreto. A flor verde no braço esquerdo, dentro de um ângulo de ouro, ficará sendo a divisa voluntária dos patriotas do Brasil que jurarem o desempenho da legenda Independência ou morte, lavrada no dito ângulo.
José Bonifácio de Andrada e Silva, do meu Conselho de Estado e do Conselho de Sua Majestade Fidelíssima, o Senhor Rei Dom João VI, e meu Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Brasil e dos Estrangeiros, o tenha assim entendido e o faça executar com os despachos necessários.
Paço, 18 de setembro de 1822.
Com a rubrica de Sua Alteza Real, o Príncipe Regente.
JOSÉ BONIFÁCIO DE ANDRADA E SILVA

O outro "[c]oncede anistia geral para as passadas opiniões políticas e ordena o distintivo Independência ou morte e a saída dos dissidentes". Na parte que concerne ao uso desse distintivo, diz que "[t]odo português europeu ou o brasileiro que abraçar o atual sistema do Brasil e estiver pronto a defendê-lo usará por distinção da flor verde dentro do ângulo de ouro no braço esquerdo com a legenda Independência ou morte".

"Em campo verde uma esfera armilar de ouro, atravessada por uma cruz da Ordem de Cristo, sendo circulada a mesma esfera de dezenove estrelas de prata em uma orla azul, e firmada a coroa real diamantina sobre o escudo, cujos lados serão abraçados por dous ramos das plantas de café e tabaco, como emblemas da sua riqueza comercial, representados na sua própria cor e ligados na parte inferior pelo laço da Nação".
"Em campo verde uma esfera armilar de ouro, atravessada por uma cruz da Ordem de Cristo, sendo circulada a mesma esfera de dezenove estrelas de prata em uma orla azul, e firmada a coroa real diamantina sobre o escudo, cujos lados serão abraçados por dous ramos das plantas de café e tabaco, como emblemas da sua riqueza comercial, representados na sua própria cor e ligados na parte inferior pelo laço da Nação".

O decreto da mesma data que ordenou as armas nacionais é muito bem escrito sob qualquer aspecto, inclusive o heráldico. Há apenas um elemento dúbio: o "laço da Nação", que ata os ramos de cafeeiro e tabaco. Não porque tenha faltado dizer como é esse laço, mas porque as reproduções do brasão nunca obedeceram ao decreto que criou tal laço e a este mesmo se deram tantas formas que desvirtuaram o seu propósito.

"Guarda de honra do imperador". Observe-se o tope nacional, conforme o Decreto de 18 de setembro de 1822, no braço esquerdo do guarda. Desenho de Jean-Baptiste Debret e litografia de Thierry Frères, 1839 (imagem disponível na Biblioteca Nacional Digital).

Com efeito, o tope, cocar ou roseta é um laço de fitas em forma de flor, daí que o decreto citado refira a uma "flor verde". Até a Revolução Francesa, era um mero adorno de chapéu, mas coincidindo com a difusão da ideia de nação (leia-se a segunda postagem desta série), tornou-se um símbolo de adesão a essa ideia. Assim, até 1796 o laço que os soldados portugueses traziam nos seus chapéus era preto, mas por decreto de Dona Maria I desse ano em diante teve as cores escarlate e azul-escura, as mesmas da libré da Casa Real. Foram essas cores que as Cortes mudaram para branco e azul pela Lei de 23 de agosto de 1821 e foi o laço dessas segundas cores que Dom Pedro arrancou às margens do Ipiranga. Hoje se usa sob o broche da faixa presidencial e, com duas ínfulas, no topo dos mastros das bandeiras de interior ou de desfile.

"Uniforme militar". Observe-se o tope verde e amarelo no alto da barretina. Desenho de Jean-Baptiste Debret e litografia de Thierry Frères, 1839 (imagem disponível na Biblioteca Nacional Digital).

O primeiro problema é que o decreto que criou o laço nacional "brasiliense" não é propriamente claríssimo, pois começa dizendo que este é "composto das cores emblemáticas — verde de primavera e amarelo de ouro —", mas em seguida deixa claro que a flor, isto é, o laço propriamente dito, é verde; amarelo é o tal ângulo: uma peça na forma de filactério em com a legenda Independência ou morte. Seja como for, segundo Joaquim Norberto de Sousa Silva em artigo de 1890:

Anos depois, deixou-se de trazer esse laço no braço esquerdo e passou para o chapéu, sem o ângulo legendário, constando apenas de círculos verdes com centro amarelo ou vice-versa.
Nos dias agitados, próximos à revolução de 7 de abril e ainda depois, o laço nacional, sem mudar de cores, variou segundo a distribuição das mesmas e, bem assim, a sua colocação mais abaixo ou mais acima da copa do chapéu, como distintivo dos partidos corcunda, exaltado, moderado, republicano e, depois, restaurador e caramuru.

A revolução a que o autor refere é a agitação no Rio de Janeiro que levou à abdicação de Dom Pedro I nessa data de 1831. Alguns meses depois, a regência editou um decreto pondo fim a esse uso sectário do laço nacional:

DECRETO DE 5 DE OUTUBRO DE 1831
Designa o padrão do tope nacional brasileiro.
Acontecendo que o Decreto de 18 de setembro de 1822, que criou o tope nacional brasileiro, não tivesse apresentado o tipo que prometia e sendo mui conveniente e até necessário que este se determine e marque, a fim de que de sua alteração e diferença se não siga algum princípio de distinções e discórdias entre os súditos de um só e mesmo Império, como desgraçadamente já hoje se observa, a Regência, em nome do Imperador, querendo acabar com uma semelhante ofensa da união brasileira e fixar de uma vez o padrão do tope nacional, há por bem, esclarecendo o referido decreto, determinar o seguinte.
1.º O tope nacional será de ora em diante composto de uma superfície circular verde com uma estrela de cinco pontas amarela no centro e colocado do meio da copa do chapéu para cima, sendo redondo, e nos outros, no lugar do costume.
2.º O cidadão que contravier a disposição do artigo antecedente fica sujeito às penas do art. 301 do título 7.º do Código Penal, impostas aos que usam de um distintivo que lhes não compete.
José Lino Coutinho, do Conselho do mesmo Imperador, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império, o tenha assim entendido e faça executar com os despachos necessários.
Palácio do Rio de Janeiro, em 5 de outubro de 1831, décimo da Independência e do Império.
FRANCISCO DE LIMA E SILVA
JOSÉ DA COSTA CARVALHO
JOÃO BRÁULIO MONIZ

O segundo problema e o principal é que os ramos de cafeeiro e tabaco das armas nacionais jamais foram atados por um tope, cocar ou roseta. Sempre os atou um laço de fitas em forma de borboleta. Nas moedas a partir de 1851 aparece uma estrela no centro desse laço, adequando-se, pois, ao citado decreto de 1831, mas a forma de borboleta se manteve até o fim da monarquia.

"Bandeira e pavilhão brasileiros". Desenho de Jean-Baptiste Debret e litografia de Thierry Frères, 1839 (imagem disponível na Biblioteca Nacional Digital).

Outra vez, faltam-nos reproduções coetâneas com o colorido original, se bem que, à diferença dos pormenores da coroa, no caso do laço não é necessário um desenho grande para divisar a sua cor. Assim, na bandeira desenhada por Jean-Baptiste Debret e gravada por Thierry Frères no Voyage pittoresque et historique au Brésil (tomo III, 1839), vê-se um laço todo verde, o que — é forçoso reconhecê-lo — obedece estritamente ao Decreto de 18 de setembro de 1822: "a flor verde".

De todo modo, parece aceitável iluminar o laço "das cores emblemáticas — verde de primavera e amarelo de ouro —", seja porque o laço das armas nunca foi propriamente o tope nacional, seja porque este mesmo foi oficiosamente trazido com essas cores durante o primeiro império, tanto pelos militares como pelos cidadãos. O que não parece aceitável é pintá-lo de vermelho, ainda que se veja assim em certas reproduções do período monárquico, talvez porque, como nunca teve a forma de um tope, tenha sido tomado por mero adorno.

14/09/22

"CUJOS LADOS SERÃO ABRAÇADOS POR DOUS RAMOS DE CAFÉ E TABACO"

Bicentenário das armas nacionais"Será d'ora em diante o escudo de armas deste Reino do Brasil em campo verde uma esfera armilar de ouro, atravessada por uma cruz da Ordem de Cristo, sendo circulada a mesma esfera de dezenove estrelas de prata em uma orla azul, e firmada a coroa real diamantina sobre o escudo, cujos lados serão abraçados por dous ramos das plantas de café e tabaco, como emblemas da sua riqueza comercial, representados na sua própria cor...".

Como eu disse na postagem de 02/09/2021, o suporte é raro na armaria portuguesa. As cartas de brasão davam com muita regularidade o ordenamento das armas, o elmo, o paquife e o timbre. No entanto, as armas reais eram habitualmente reproduzidas com algum suporte: anjos, a cruz da Ordem de Cristo, ramos de louro e carvalho.

Assim, em setembro de 1822 a ideia de acrescentar suportes às novas armas do Brasil absolutamente não era inovadora. Na verdade, das moedas que se vinham cunhando desde 1818, as espécies de prata mostravam as armas do Reino Unido sobre a cruz da Ordem de Cristo e a espécie de ouro, entre ramos de louro e oliveira. A inovação estava na escolha de plantas não europeias e desconhecidas da heráldica até então, pois nem mesmo na vizinhança hispano-americana ainda se tinha experimentado isso. Por exemplo, o escudo das Províncias Unidas do Rio da Prata, hoje Argentina, era, como ainda o é, rodeado de ramos de louro. Dessa escolha podem-se destacar alguns aspectos interessantes.

O primeiro é que as novas nações americanas vinham adotando os louros não só para assinalar os seus triunfos na guerra contra a Espanha, mas também com conotação republicana, já que a sua origem remonta à Grécia e à Roma antigas, inspirações das repúblicas que se estavam constituindo. No Brasil, não se dizia, porém, que se queria a separação, mas que a animosidade das Cortes contra o projeto do Reino Unido a tornara inevitável. Como o próprio rei era tido por cativo dessas Cortes, a permanência do príncipe na América e a fundação da monarquia brasileira chegaram a ser defendidas como a salvação da Casa de Bragança. Assim, embora os louros estivessem presentes na emblemática régia portuguesa, o momento poderia dar-lhes uma significação que não se pretendia.

O segundo é que escolher plantas não europeias equilibrou um brasão cujas figuras principais foram tiradas da emblemática metropolitana. Ainda que fosse um recurso tão velho quanto a conquista do Novo Mundo (nas armas que em 1523 Carlos V deu à Cidade do México aparecem talos de figueira-da-índia), em armas nacionais foram as brasileiras que abriram esse precedente (ao menos no reino vegetal, já que a águia do grande selo norte-americano é de uma espécie nativa), tão bem aproveitado depois pela armaria britânica na criação de emblemas para os domínios ultramarinos da Grã-Bretanha, demonstrando que a heráldica é um sistema semiótico transcultural, não obstante a sua origem na Europa ocidental da baixa Idade Média.

"Em campo verde uma esfera armilar de ouro, atravessada por uma cruz da Ordem de Cristo, sendo circulada a mesma esfera de dezenove estrelas de prata em uma orla azul, e firmada a coroa real diamantina sobre o escudo, cujos lados serão abraçados por dous ramos das plantas de café e tabaco, como emblemas da sua riqueza comercial, representados na sua própria cor".
"Em campo verde uma esfera armilar de ouro, atravessada por uma cruz da Ordem de Cristo, sendo circulada a mesma esfera de dezenove estrelas de prata em uma orla azul, e firmada a coroa real diamantina sobre o escudo, cujos lados serão abraçados por dous ramos das plantas de café e tabaco, como emblemas da sua riqueza comercial, representados na sua própria cor".

O terceiro é que apesar de o Decreto de 18 de setembro de 1822 justificar os "dous ramos das plantas de café e tabaco" nas novas armas do Brasil por serem "emblemas da sua riqueza comercial", pode-se duvidar. Frei José Mariano da Conceição Veloso em O fazendeiro do Brasil (1798-1806) dedica duas das três partes do primeiro tomo à cultura canavieira e até hoje o percurso de Natal a Aracaju pela BR-101 atravessa quase um canavial contínuo, de modo que se pode afirmar com bastante segurança que a cana-de-açúcar merecia figurar no nosso brasão, quiçá mais que o tabaco, para o qual esse autor sequer reserva uma seção na obra citada. É que talvez a riqueza comercial não tenha, afinal, sido o único critério. Com efeito, o desenho de um ramo frutado de cafeeiro pode semelhar o de um ramo frutado de loureiro: ambos têm folhas elípticas e bagos vermelhos. Já o tabaco, tem folhas lanceoladas que favorecem o desenho de uma grinalda, ao contrário das folhas lineares da cana-de-açúcar, presas à própria cana.

É razoável concluir, portanto, que além do equilíbrio simbólico se procurou o equilíbrio estético. Trocando em miúdos, escolheram-se plantas que efetivamente representavam a "riqueza comercial" da nação, mas ao mesmo tempo as formas das suas folhas não causavam tanta estranheza a quem estava afeiçoado às de louros, carvalhos ou oliveiras.

12/09/22

"FIRMADA A COROA REAL SOBRE O ESCUDO"

Bicentenário das armas nacionais"Será d'ora em diante o escudo de armas deste Reino do Brasil em campo verde uma esfera armilar de ouro, atravessada por uma cruz da Ordem de Cristo, sendo circulada a mesma esfera de dezenove estrelas de prata em uma orla azul, e firmada a coroa real diamantina sobre o escudo...".

A coroa timbra regularmente as armas dos príncipes desde o século XV. Tal qual o elmo, resulta do gosto pela alegoria que então vogava com máximo vigor: o brasão não era mais mero identificador, como um nome ou uma marca, mas uma representação do próprio titular, como se ele estivesse detrás do escudo, segurando-o. No caso da coroa, representava-se também a própria Coroa, com letra maiúscula, a qual durante todo o Antigo Regime se confundia com o estado.

Curiosamente, na península Ibérica o abstrato preponderou ao concreto. Os reis da Espanha não são nem nunca foram coroados, até porque até a primeira constituição (1812) não eram, oficialmente, reis da Espanha, mas sim de Castela, Leão, Aragão e um longo etcétera. Com efeito, o derradeiro monarca hispano coroado foi Fernando I de Aragão em 1414. Em Portugal, é um fato bem conhecido que em 1646 Dom João IV tomou Nossa Senhora da Conceição por padroeira de Portugal, se fez vassalo dela e desde então nenhum rei português cingiu coroa.

Se não havia coroação, como os príncipes ibéricos assumiam a dignidade régia (no caso do espanhol, até o presente)? Por uma cerimônia denominada proclamação na Espanha e aclamação em Portugal. Sob o Antigo Regime, ela exprimia que a sucessão ficava legitimada pelos estamentos que formavam a sociedade; sob a monarquia constitucional, que a nação lhe confere tal legitimidade. A coroa, com letra minúscula, repousa sobre uma almofada durante a cerimônia.

Assim, não é de se admirar que nas monarquias ibéricas o objeto concreto se tenha tornado secundário em relação ao objeto heráldico. No caso da Espanha, esse objeto é, na verdade, bastante singelo: uma coroa de prata dourada sem pedraria, fabricada por encomenda de Carlos III em 1775. No caso de Portugal, a coroa que chegou até os dias de hoje é aquela que Dom João VI mandou fazer em 1817 para a sua aclamação no começo do ano seguinte, tudo no Rio de Janeiro.

"Em campo verde uma esfera armilar de ouro, atravessada por uma cruz da Ordem de Cristo, sendo circulada a mesma esfera de dezenove estrelas de prata em uma orla azul, e firmada a coroa real diamantina sobre o escudo".
"Em campo verde uma esfera armilar de ouro, atravessada por uma cruz da Ordem de Cristo, sendo circulada a mesma esfera de dezenove estrelas de prata em uma orla azul, e firmada a coroa real diamantina sobre o escudo".

Segue-se daí que nas armarias ibéricas a coroa real ganhou definições muito precisas. Uma delas está na lei que ordenou a forma vigente das armas estatais da Espanha:

Al timbre, corona real, cerrada, que es un círculo de oro, engastado de piedras preciosas, compuesto de ocho florones de hojas de acanto, visibles cinco, interpoladas de perlas y de cuyas hojas salen sendas diademas sumadas de perlas, que convergen en un mundo de azur o azul, con el semimeridiano y el ecuador de oro, sumado de cruz de oro. La corona, forrada de gules o rojo. (1)

Não custa enfatizar que isso não é a descrição de um objeto concreto, mas uma figura heráldica.

Em 7 de setembro de 1822, o príncipe Dom Pedro era o regente do reino do Brasil. O rei era, obviamente, seu pai, Dom João VI, daí que assumir o título de rei do Brasil parecesse uma usurpação e se tenha preferido o de imperador. Duzentos anos depois, sabemos perfeitamente que a separação pouco a pouco se consolidou, mas para quem vivia aqueles dias esse título permitia, inclusive, a possibilidade de o Reino Unido se recompor com o status de império.

Dom João VI na pompa real e Dom Pedro I na pompa imperial. Observe-se o uso distinto da coroa: a portuguesa sobre uma almofada e a brasileira sobre a cabeça do monarca. Desenho de Jean-Baptiste Debret e litografia de Thierry Frères, 1839 (imagem disponível na Biblioteca Nacional Digital).
Dom João VI na pompa real e Dom Pedro I na pompa imperial. Observe-se o uso distinto da coroa: a portuguesa sobre uma almofada e a brasileira sobre a cabeça do monarca. Desenho de Jean-Baptiste Debret e litografia de Thierry Frères, 1839 (imagem disponível na Biblioteca Nacional Digital).

Dom Pedro I foi solenemente aclamado imperador constitucional e defensor perpétuo do Brasil pela Câmara do Rio de Janeiro em 12 de outubro de 1822. Plenamente de acordo com o direito português, foi a aclamação que efetivou a sucessão do título de regente ao de imperador e, por isso mesmo, lavrou-se uma ata. Não obstante, talvez porque a cerimônia tivesse sido pouco majestosa, talvez porque coroados eram os imperadores dos romanos na Idade Média e, muito mais recentemente, Napoleão Bonaparte, imperador dos franceses, para Dom Pedro I também se preparou uma coroação, que se celebrou no 1.º de dezembro do mesmo ano.

Coroa de Dom Pedro I (imagem disponível no repositório do Museu Imperial).
Coroa de Dom Pedro I (imagem disponível no repositório do Museu Imperial).

Nessa ocasião, encomendou-se ao ourives Manuel Inácio de Loiola a coroa que hoje está guardada no Museu Imperial, o qual a descreve assim:

Coroa elíptica em ouro com motivos curvilíneos e folhagens gravados no diadema com friso cinzelado no bordo superior e aplicações de escudos das armas do Império do Brasil ao centro. Entre os escudos, orifícios com cercadura cinzelada, onde estavam incrustados, originalmente, chuveiros de brilhantes. Sobrepostas aos escudos, folhas de acanto estilizadas entremeadas com pontas em volutas. No centro das folhas, orifício onde estaria engastado um solitário. Hastes largas na base, que se afilam em direção ao ponto de junção, saem por trás das folhas de acanto. Decoração similar até o meio do seu comprimento e lisa até o ponto de convergência. Acima da coroa, esfera armilar sob a cruz de Cristo.

Portanto, dessa coroa conserva-se, mais precisamente, a armação, já que a sua pedraria foi desengastada para a fabricação da coroa de Dom Pedro II, guardada no mesmo museu, que a descreve assim:

Coroa em ouro amarelo e verde cinzelado. Cinta larga em forma ovalada que tem, no bordo inferior, dois frisos em forma de folhas de louro. Entre os frisos, fio de pérolas cultivadas. Na parte superior, festão de dezesseis pontas e, abaixo deste, outro friso idêntico ao da base. Abaixo de cada ponta do festão, um solitário montado em prata. Na cinta, na mesma direção das pontas dos festões, chuveiros formados por brilhantes, sendo que, no eixo principal da coroa, o chuveiro é formado por pedra maior, de formato retangular, circundado por pedras menores. Cada chuveiro é circundado pelo mesmo friso de folhas de louro que circundam a cinta. Nas pontas dos festões, dispostos alternadamente, trifólios em ouro verde arrematados por laço e, em cada ponta, roseta formada por brilhantes de diferentes tamanhos. De cada uma dessas composições sobe haste com as seguintes características: ouro polido em forma de gomos e, nas extremidades, friso de folhas de louro; no centro de cada haste, fio de brilhantes montados em prata. Na parte superior da coroa, globo de ouro polido, cintado por guarnição cinzelada e recortada, cravejada por brilhantes, da qual se eleva semicírculo montado de forma idêntica. Como suporte da esfera, florão de ouro cinzelado. No topo do círculo, cruz de Cristo cravejada de brilhantes. Forro original em veludo verde-escuro com acolchoado em cetim branco. No interior do globo, gravação das iniciais do ourives "C.M.C." e etiqueta em papel com a inscrição manuscrita "ESTA COROA FOI FEITA EM CAZA DE CARLOS MARIN & CIA, À RUA DO OUVIDOR, 139 – JULHO DE 1841".

À monarquia brasileira não faltaram, pois, coroas, com letra minúscula, os objetos concretos. Mas como é a figura heráldica da coroa imperial? Na armaria espanhola, tem um só diadema, rematado pelo mundo e ladeado por duas pontas semelhantes a uma mitra, tudo assente sobre um aro igual ao da coroa real, com os seus florões de folhas de acanto. Trata-se da coroa imperial dos Habsburgos, que entrou na dita armaria por meio de Carlos V, seguiu sendo cingida pelos imperadores austríacos após o fim do Sacro Império e chegou a servir de modelo a algumas reproduções das armas nacionais brasileiras, como mostrei na postagem de 24/07/2021.

Coroa de Dom Pedro II (imagem disponível no repositório do Museu Imperial).
Coroa de Dom Pedro II (imagem disponível no repositório do Museu Imperial).

Como é raro encontrar reprodução das armas imperiais brasileiras com o colorido original e em tamanho que deixe ver detalhes, é difícil precisar quando se trata de um desenho ou escultura do objeto real e quando se pretendeu adotar uma figura heráldica. Em outras palavras, falta um estudo que responda à pergunta: teve a coroa imperial brasileira uma representação heráldica? Porque desenhar a coroa de Dom Pedro II e trocar o verde do forro por vermelho não a transforma em objeto heráldico!

Proposta de representação heráldica para a coroa imperial do Brasil.
Proposta de representação heráldica para a coroa imperial do Brasil.

Provisoriamente, proponho a operação seguinte: um aro igual ao das coroas de rei, príncipe e infante, engastado de rubis e esmeraldas, com os seus florões de folhas de acanto e pérolas. Quanto aos diademas, é o que diferencia a coroa imperial brasileira: não se recurvam como os da coroa real, mas completam a arqueadura até convergirem sob o mundo, tomando uma forma bulbosa, semelhante à mitra oriental. Tratando-se de um objeto abstrato, convém, sim, dar a cor vermelha ao forro.

Nota:
(1) "Timbre: coroa real, que é um círculo de ouro, engastado de pedras preciosas, composto de oito florões de folhas de acanto, visíveis cinco, interpoladas de pérolas e de cujas folhas saem diademas rematados de pérolas, um de cada, os quais convergem num mundo de azul, com o semimeridiano e o equador de ouro, rematado de cruz de ouro. A coroa, forrada de vermelho." (tradução minha)

10/09/22

"CIRCULADA DE 19 ESTRELAS DE PRATA EM UMA ORLA AZUL"

Bicentenário das armas nacionais: "Será d'ora em diante o escudo de armas deste Reino do Brasil em campo verde uma esfera armilar de ouro, atravessada por uma cruz da Ordem de Cristo, sendo circulada a mesma esfera de dezenove estrelas de prata em uma orla azul...".

A locução Brasil colônia foi forjada pela nossa historiografia nacionalista para dotar o país de um passado coeso. Não à toa, a historiografia mais recente tem preferido a locução América portuguesa, já que os domínios americanos de Portugal não foram coeridos sob o nome de Brasil senão pela Lei de 16 de dezembro de 1815. E, ainda assim, pode-se duvidar, pois no preâmbulo se diz "dando ao mesmo tempo a importância devida à vastidão e localidade dos meus domínios da América", mas no artigo 1.º se ordena que "o Estado do Brasil seja elevado à dignidade, preeminência e denominação de Reino do Brasil".

A dúvida é razoável, pois a essa altura Portugal tinha três domínios no continente americano: o Brasil, o Maranhão e o Grão-Pará. Cada um se denominava estado e era governado por um alto oficial que respondia diretamente à Coroa. O estado do Brasil foi criado em 1548. Dele foi desmembrado em 1619 o estado do Maranhão, abrangendo o território do cabo de São Roque para o norte, renomeado estado do Maranhão e Grão-Pará em 1655, por volta de quando o limite foi deslocado até o delta do Parnaíba. Em 1751, transferiu-se o governo-geral de São Luís para Belém, pelo que se inverteu a denominação: estado do Grão-Pará e Maranhão. Mas o governo-geral de São Luís foi restabelecido em 1772. Desde então, o norte da América portuguesa cindia-se em dois estados: o do Maranhão e Piauí a leste e o do Grão-Pará e Rio Negro a oeste. Além disso, no espiritual as dioceses de São Luís e Belém, criadas em 1677 e 1720, não eram sufragâneas da arquidiocese de Salvador, mas do patriarcado de Lisboa.

O problema é que enquanto a Corte estava no Rio de Janeiro, não fazia diferença se o reino do Brasil se restringia ao antigo estado do Brasil ou abrangia este e os do Maranhão e do Grão-Pará, porque para o primeiro se tornou desnecessário um governador-geral ou vice-rei já em 1808 e aqueles que governavam os outros dois deviam, de todo modo, reportar-se a superiores que então se achavam no Rio. Seja como for, ao aderirem à revolução liberal em janeiro e abril de 1821, o Grão-Pará e o Maranhão reconheceram-se integrantes do reino do Brasil.

Aí está. Quando os deputados brasileiros começaram a tomar assento nas Cortes a partir de agosto de 1821absolutamente não representavam o Brasil, mas as suas províncias. O que os uniu foi a crescente animosidade da maioria parlamentar europeia contra o status do reino americano e, mesmo assim, nem todos, pois um dos dois deputados paraenses e ambos os maranhenses votavam alinhados à maioria europeia. Ninguém sabia, afinal, qual forma a constituinte daria ao Reino Unido e, dependendo de qual fosse, o Grão-Pará e Maranhão podiam preferir a subordinação a Lisboa do que ao Rio.

Enquanto isso, depois de a Lei de 1.º de outubro de 1821 ter estabelecido em cada província brasileira uma junta provisória e um comando militar, independentes entre si e responsáveis ao governo do Reino e às Cortes, Dom Pedro teve de sair recebendo ou conquistando a lealdade de cada uma à sua regência. Assim, no ano de 1822 até o ato da separação houvera conflitos em fevereiro na Bahia (que aí se arrastaria até julho do ano seguinte), em abril em Minas, em junho em Pernambuco e a 7 de setembro o príncipe se achava em São Paulo precisamente para apaziguar as agitações que estavam ocorrendo lá. O próprio Conselho dos Procuradores-Gerais só empossara até então os do Rio de Janeiro, Cisplatina, Minas Gerais, Santa Catarina e Espírito Santo.

"Em campo verde uma esfera armilar de ouro, atravessada por uma cruz da Ordem de Cristo, sendo circulada a mesma esfera de dezenove estrelas de prata em uma orla azul".
"Em campo verde uma esfera armilar de ouro, atravessada por uma cruz da Ordem de Cristo, sendo circulada a mesma esfera de dezenove estrelas de prata em uma orla azul".

Nessa conjuntura, a esfera armilar assinalava a continuidade política do reino do Brasil após a separação e a cruz da Ordem de Cristo, a continuidade histórica desde o descobrimento e a conquista da terra de Santa Cruz. Pode-se, portanto, qualificá-las de elementos "pré-nacionais". Daí que a orla de estrelas talvez seja o elemento mais inteligente e importante do escudo, por exprimir o projeto de uma só nação "do Amazonas ao Prata", como diz a Proclamação de 1.º de agosto de 1822.

Também do ponto de vista heráldico a forma da orla é inovadora. A rigor, a orla é uma peça de segunda ordem que circunda o campo, assim como a bordadura, mas, à diferença desta, não se firma no bordo, mas dele fica a uma distância igual à da sua largura. A orla mede, normalmente, um doze avos da largura do escudo, metade da bordadura. Acertadamente, o Decreto de 18 de setembro de 1822 precisa que a esfera com a cruz está "circulada de dezenove estrelas de prata em uma orla azul". Ora, o termo circulada deixa claro que essa orla não está traçada rente aos bordos do escudo, mas tem forma circular.

Pode-se afirmar com bastante segurança que a inspiração dessas figuras foi a bandeira dos Estados Unidos, o único símbolo nacional que naquele momento mostrava estrelas representando os estados que se tinham unido para formar a nação. As armas brasileiras têm, não obstante, um arranjo mais eloquente, pois "uma esfera armilar de ouro, atravessada por uma cruz da Ordem de Cristo, sendo circulada a mesma esfera de dezenove estrelas de prata em uma orla azul" é como dizer que o reino do Brasil é integrado de forma inquebrantável pelas suas "dezenove províncias compreendidas entre os grandes rios, que são os seus limites naturais e que formam a sua integridade".

Mapa do Império do Brasil por C. Brockes e C. Held, 1878.
Mapa do Império do Brasil por C. Brockes e C. Held, 1878 (imagem disponível Biblioteca Nacional Digital).

Em 1822, essas dezenove províncias eram o Grão-Pará, o Maranhão, o Piauí, o Rio Grande do Norte, o Ceará, a Paraíba, Pernambuco, Alagoas, a Bahia, Sergipe, o Espírito Santo, o Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina, o Rio Grande do Sul, a Cisplatina, Minas Gerais, Goiás e o Mato Grosso. Desde 1828, quando a Lei de 30 de agosto reconheceu a independência da Cisplatina, hoje Uruguai, até 1850, quando a Lei n.º 582 elevou a comarca do Alto Amazonas, no Grão-Pará, à categoria de província com a denominação de Amazonas, houve dezoito províncias, mas o número subiu para vinte em 1853, quando a Lei n.º 704 elevou a comarca de Curitiba, em São Paulo, a província com a denominação de Paraná. Essa alteração refletiu-se desde então no brasão, embora não se tenha oficializado.